Alice Munro: o talento conciso da essência da vida sob a forma de contos.
Eu nunca tinha ouvido falar do Último Olhar. (…)A organista estava a tocar uma peça que eu conhecia bastante bem «Jesu, Joy of Man’s Desiring.»«Oremos», diz o Pastor.
Recordei para um passado de há muito, um muito quando eu simplesmente achava que cada um tinha a sua ideia de Deus. Em que a vida de todos girava à volta de todos, até ao dia em que um saía. Desarrumava-se e saía.
Ao final da tarde já estavam a dizer que alguém tinha fugido e devia ser punido pelo atrevimento. Afinal quem quereria sair do abrigo que era porto seguro? Que traição! Com que direito se fazia à diferença? Teria ido de bicicleta? Teria sido droga? Más companhias? A escola fizera-lhe mal? Fora à procura de quê? Tudo tinha, não precisava de nada. Ah!, já se ouvira dizer que tinha fama de nunca desistir, tinha fama de uma teima estranha. No dia seguinte, já os parentes próximos e longínquos sabiam do assunto. Na semana seguinte, o mundo do bairro confundia-se. Esperava-se em silêncio uma vinda em contrição.
Mas ela partira depois de um Último Olhar, e alojara-se num endereço nómada, com selo de expectativa e carimbo indecifrável. Mais tarde, demasiado tarde?, para o tempo de uma ida, apercebeu-se que tudo lhe tinha chegado ao mesmo tempo, tudo estava mesclado até das coisas das quais levara tempo a resolutamente se despedir. Não imaginara que esta situação pudesse existir quando saísse depois do Último Olhar. E ali estava ela, firme na sua fé à lágrima. Tolerando algumas realidades das quais se separara e, ocupada no apartado onde vivia, só sabia que continuaria a cavar fundo, pois fosse como fosse, era sempre necessário encontrar água.
Agora com “Amada Vida”, livro de Alice Munro, entendia melhor os consolos fora de todas as proporções.
Alice Munro, sublinhe-se, trabalha as saibreiras dos contos que escreve de modo a poder dizer sempre: tudo o que recordo é o papel da parede do meu quarto, com ursos de peluche. Não sabia que quando se falava de bombas atómicas não se estava a falar de bombons atómicos.
Assim, tomando nota do tempo, sempre que se passa por um marco de correio coloca-se dentro a carta da “Amada Vida”, mesmo quando não haja notícia alguma para dar. Sabe-se que o comboio abrandará para fazer a curva, sabe-se que o único passageiro dele não saltará, antes lhe pedirá à entrada do túnel uma luz que aconchegue o desconhecido. Ou poderá pedir a mão de Deus, mais segura do que uma estrada conhecida?
Dizemos que certas coisas não têm perdão – ou que nunca nos perdoaremos a nós próprios. Mas perdoamos – fazemo-lo a todo o momento. Não há muito tempo para esperar do futuro.
Assim “Amada Vida” também se lê persistente às ideias que Alice Munro nos propõe: algo de pedra e de Deus, algo arriscado e belo como as pequenas vilas em redor do Lago Huron, no Canadá, sua terra natal.
Teresa Vieira
Sec. XXI