Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

JOSÉ VEIGA SIMÃO, HOMEM DE EQUIPA

 

Por Guilherme d’Oliveira Martins


Desde cedo, aprendi a admirá-lo, a compreender a vivacidade do seu espírito, sempre dotado da inquietação própria de quem combate todos os fatalismos, todas as tentações de indiferença e imobilismo. Sendo um homem de pensamento e de reflexão teve a capacidade de acreditar na transformação da sociedade, no sentido de um mundo melhor, de justiça e de conhecimento, de liberdade e de solidariedade. Em todas as funções que desempenhou deixou marca de movimento e de mudança – e, além dos impulsos que deu, soube, como poucos, partilhar responsabilidades e criar equipas em que estiveram por exemplo, Adelino Amaro da Costa e António Sousa Franco.

Ministro da Educação Nacional de 1970 a 1974, o Professor José Veiga Simão, crente na inevitabilidade da democracia, rompeu com a ideia de que o atraso educativo era uma fatalidade de um país atrasado e pobre. Idealizou, assim, um processo de transição, que retomasse a orientação da Primeira República, alargando a escolaridade obrigatória para oito anos, acabando com uma escolha prematura e discriminatória aos dez anos entre o liceu e o ensino técnico, abrindo o caminho para um ensino secundário, onde houvesse liceus clássicos, liceus técnicos e liceus artísticos e para novas universidades. Haveria que prosseguir com mais audácia o Plano do Mediterrâneo da OCDE em que se empenhara o Ministro Leite Pinto. A sociedade portuguesa tinha de se preparar.  

Veiga Simão afirmou, por isso, emblematicamente: “Um princípio fundamental que não me canso de repetir (…) é o da necessidade de uma autêntica democratização do ensino que, sem exceção, permita a qualquer jovem ocupar na sociedade o lugar que lhe compete em exclusiva dependência da sua capacidade intelectual e sem condicionalismos sociais e económicos”. Não  esqueceu o que Aquilino Ribeiro disse sobre “a inteligência congelada nos ribeiros do interior”. Havia que abrir as mentes e que dar resposta aos jovens das periferias das cidades.

 

E permitam-me que invoque a importância atribuída à política cultural de Veiga Simão. Tratava-se de entender a cultura como fonte de desenvolvimento e como fator de abertura e de liberdade, contando com a participação de pessoas de horizontes largos e com liberdade de espírito, como António Alçada Baptista, Ruben Andresen Leitão, Miller Guerra, Lindley Cintra ou Maria de Lourdes Belchior. O diálogo entre saberes foi para o Professor Veiga Simão uma exigência permanente, do mesmo modo que o seu humanismo universalista reclamava a cooperação internacional.

 

Licenciado em Ciências Físico-Químicas na Universidade de Coimbra, obteve os Doutoramentos em Física Nuclear pela Universidade de Cambridge no Cavendish Laboratory, pela Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Em 1961, assume a cátedra da Universidade de Coimbra. Dois anos depois é nomeado reitor da Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique, cargo que desempenha até 1970. E depois de 1974 e em coerência com o seu empenhamento pela mudança do País, é embaixador de Portugal nas Nações Unidas – reconhecimento singular da sua independência e genuíno sentido de cidadania. Seria ainda, numa carreira exemplar de serviço público, Ministro da Indústria e Energia, Presidente do Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial e Ministro da Defesa Nacional.

 

A história da transição democrática portuguesa tem de reconhecer o papel fundamental de Veiga Simão, que nos deixa inesperadamente, e que ainda tinha entusiasmo para continuar a servir Portugal.

EVOCAÇÃO DE VASCO GRAÇA MOURA DRAMATURGO

 

Evoco aqui Vasco Graça Moura como dramaturgo, que o foi com o talento e a qualidade de toda a sua obra literária e poética. Evoco também o dirigente cultural, a quem muitíssimo se deve e devo eu, numa colaboração de dezenas de anos, desde a INCM ao CCB: mas mais do que isso, evoco um amigo que, no espaço de poucas semanas, se juntou agora na morte a outros dois grandes amigos, – o Augusto de Athayde, o Mário Quartin Graça…

Figuras relevantes na vida pública, politica e diplomática, cultural e intelectual portuguesa, escritores e gestores da cultura, ao mais alto nível, com projeção e carreira internacional, todos eles foram: e o Vasco, ainda, poeta, romancista e dramaturgo.

Escreveu três peças: “Ronda dos Meninos Expostos” (1986), “Auto de Mofino Mendes” (1994) e “Banksters” (2011), libreto e texto da ópera homónima de Nuno Corte Real, que de certo modo remonta ou evoca, num contexto atual, o “Jacob e o Anjo” de José Régio – só que, repita-se, numa atualidade critica e desencantada de banqueiros e homens de negócio: o Rei é o banqueiro Santiago Malpago e o Anjo chama-se Angelino Rigoletto, o que logo remete para um trágico-cómico operístico… 

A “Ronda dos Meninos Expostos” é uma belíssima e extremamente sensível transcrição/dramatização dos bilhetes de identificação alegórica, enigmática, oculta, dos recém – nascidos abandonados anonimamente na roda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no seculos XVIII/XIX. Esses bilhetes serviriam para eventual identificação posterior. A dramatização decorre assim da transcrição articulada desses bilhetes pungentes e termina com uma mensagem, essa obviamente criada por Vasco.

É o diálogo entre o Escrivão, o 1º Secretario e a 2º Secretario, perante a leitura de um bilhete com uma dolorosa carga evocativa: “1º Secretário – Este menino nasceu / foi no dia vinte e cinco de Dezembro. Nada mais. /2º Secretário – Não diz mais nada o bilhete? / Escrivão – E não traz nenhum sinal?/ 2º S - E ao menos é batizado?/ 2º S- Mas assim não pode entrar! / 1º S – Isso não sei, ó colega / pergunte-se ao provedor / que terá de apresentar / o assunto à hierarquia… /talvez mesmo ao Intendente… / talvez mesmo ao Cardeal…”

O “Auto de Mofino Mendes” retoma e reconstitui, com grande mestria literária, a linguagem arcaizante, num ritmo vicentino – e não há maior elogio! – Aplicado a uma situação contemporânea, que Vasco bem conhecia – dois políticos, o “Secretario Geral Mofino Mendes que veste seu fato-macaco assaz engomado” e Brígido Vaz “presidente do partido Xiz com sua capa e batina de cheviote mui dereitamente alinhada”, um Diabo “a brandir sempre seu tição, que veste saiote de escarlata e cheira e enchofre” e ainda “uma eminencia parda que traz um camuflado de campanha guarnecido com ricos debruns”… todos eles “mui compenetrados” e retomando o teor vicentino numa evocação moderna!

E finalmente o “Banksters”, cujo nome diz tudo – e o banqueiro no final perde perdão ao Diabo: “Sempre te via, sempre estavas / A meu lado o tempo todo / e fiz mal, contrariei / O que me vinhas dizer / (…) que só depois percebi / Quanta luz vinha de ti / A esta pobre humanidade / Que agora em mim recomeça / entre mentira e verdade”…

Repare-se como estas transcrições / atualizações revelam o sentido cénico, a qualidade literária e a cultura teatral de quem as escreveu!

 

DUARTE IVO CRUZ