MORRO LASSO, DE DÓ DE MIM…
Minha Princesa de mim:
Morro, lasso, de dó de mim,
e quem podia dar-me vida,
ai! me mata sem socorro, assim!
Ó dolorosa sorte:
podia dar-me vida,
mas dá-me morte!
É do próprio compositor, Príncipe de Venosa, a letra, que traduzo, deste madrigal de Carlo Gesualdo. Uxoricida, o príncipe assassino matou, com suas mãos e a participação de cúmplices, Maria d´Alvallos, sua prima e mulher, surpreendida in flagrante delicto di fragrante peccato com Fabrizio Carafa, duque de Andria. Este madrigal diz muito do drama obsessivo que o seu autor terá vivido ao longo de muitos dos seus cinquenta e dois anos (1561-1613): teria tendências homossexuais, ele que pertencia à alta nobreza de Nápoles e Duas Sicílias, e era sobrinho de Carlo Borromeo, figura grande na Igreja e,depois, no panteão dos santos... Sentir-se-ia mal na sua pele, mas a motivação do uxoricídio poupou-lhe condenações judiciais, e até lhe permitiu segundas núpcias com Leonora d´Este, da casa de Ferrara. Teve uma relação de ódio mútuo com o seu único filho, cuja morte presenciou. Personagem tenebrosa, encontrava refúgio na música e, apesar de compositor muito conservador, talvez por isso - por teimosia obsessiva - tenha conseguido atingir uma expressão musical inigualável para textos ou poemas que nos falam de sofrimento, ou do tormento físico do amor. Não escutarei hoje, em Tempo da Paixão, nenhum madrigal de amor humano sofrido. Antes ouvirei os Responsoria dos ofícios das Tenebrae de quinta, sexta e sábado santos. Talvez motivado pelo poema de Paul Celan, que para ti traduzo, a abrir o excelente registo do Hilliard Ensemble:
Somos próximos, Senhor,
próximos e abraçáveis.
Já presos, Senhor,
encaixados um no outro, como
se a carne de cada um de nós fosse
a tua carne, Senhor.
Reza, Senhor,
invoca-nos,
somos próximos.
Íamos desviados pelo vento,
íamo-nos curvar
ao lamaçal tão oco dos pântanos.
Íamos à fonte, Senhor.
Era sangue, era
o que tinhas derramado, Senhor.
Brilhava.
Atirava-nos a tua imagem aos olhos, Senhor.
Olhos e bocas tão abertos, tão vazias, Senhor.
E nós bebemos, Senhor,
O sangue e a imagem que nele estava, Senhor.
Reza, Senhor.
Somos próximos.
Paul Celan (1920-1950) nasceu judeu e romeno, numa cidade que hoje é ucraniana, foi um grande poeta em língua alemã, morreu francês, afogando-se no Sena (suicídio). Tal como Gesualdo, viveu obcecado pela morte e pela culpa: a morte dos pais, assassinados pelos nazis, a culpa de não ter conseguido salvá-los. Todos nós nos embrulhamos com morte e culpa, mas quase sempre evitamos o brilho do sangue derramado, que nos cega. Gesualdo procurou a harmonia das vozes, só vozes humanas, para cantar serenamente, em sábado santo, o choro do povo, coberto de cinza, ferido pelo cilício: Quia venit dies domini magna et amara valde. Porque chegou o dia do Senhor, dia terrível e cheio de amargura... E eu estou em crer que, na hora da sua morte, o judeu Celan se terá lembrado desses versículos do Miserere, salmo 50 da Bíblia hebraica:
Livra-me, Senhor, do sangue derramado,
Deus meu, Deus meu Salvador.
E a minha língua proclamará a tua justiça.
Abre,Senhor, os meus lábios.
E a minha boca anunciará o teu louvor.
Pois se quisesses sacrifício´
eu te lo daria.
Mas não te agrada o holocausto.
O sacrifício agradável a Deus
é um coração atribulado:
Deus não despreza um coração
contrito e humilhado.
Afinal, na Paixão de Cristo, é a humanidade toda que pergunta Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? E que, depois, dirá Nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito. Escutando a harmonia serena das Tenebrae do Príncipe de Venosa, já não me lembro do tenebroso assassino, nem do louco solitário. Apenas me maravilho com a paz que um coração contrito pode conseguir. E dou-te uma mão cheia dela.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira