Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Na tradição portuguesa a Quinta-feira da Espiga era o dia de ir aos campos para colher as primícias da Primavera. Subia-se às colinas, invocando a Ascensão de Jesus Cristo aos céus, quarenta dias depois da Ressurreição. Assim se recordava a última aparição aos discípulos. O ramo das espigas juntava o trigo para que houvesse fartura de pão, as folhas de oliveira para que prevalecesse a paz e entendimento, flores para que houvesse alegria, malmequeres simbolizando o ouro e a prata, papoilas em nome do amor e da vida e alecrim para que o ano fosse de saúde e força. O ramo era guardado na porta de casa, até ao ano seguinte e assim haveria prosperidade, abastança, afeto e amizade. Era, pois, o dia de louvar e de esperar!
Sempre pressenti, ao ler Maria Judite de Carvalho, a transmissão de uma solidão profunda, tão faúlha queimada que só o vento conhecia. Sem barulho, o ar mais forte da cidade levantava uma cinza que lhe passava pelos belíssimos olhos sentados no rosto que, cedo, se não se diziam breves a nada.
O desencanto fora um lugar que acabaria por conquistar sem que para ele tivesse dado um passo. E escrevia, mesmo insegura, escrevia sempre, ensinando as palavras a insinuarem-se ao leitor, a sugerirem que o leitor fosse parte activa das personagens e do lugar onde caminhavam.
Quando a reli, julgo ter entendido a dor de uma incompreensão selada. A dor de constantes monólogos que de tão surdos se tornariam mudos também, e, por esta razão, me surgia o silêncio agora tão forte na obra de Maria Judite. Horas antes – quando? - fora-lhe amargamente consolador saber que o seu companheiro, um dia, concordara com a sua escrita. E de novo o silêncio.
Este silêncio total que vinha de muito fundo, julgo. Interpretei-o com o viver numa casa vazia de estrelas que aquecessem aquele frio imolado pelo dia-a-dia. E a idade vinha vindo. Chegava tão imperdoável que nunca lhe diria quem fora ou quem seria ou o que levaria com ela.
Já doente pareceu-me que não chamaria nunca uma ambulância inútil. Ali, sentada num dos quartos da velha casa, a Maria Judite de Carvalho seria uma lição. Uma ave que bebia uma alegria que já secara, e ainda assim peregrina, no erguer de palavras exactas, objectivas, pois que nelas descansaria, em breves tréguas, as suas ideias, no tudo quanto perseguisse.
Desconheço se soube a Maria Judite, que por ela também aceitámos e acolhemos manhãs que, a pouco e pouco nos ajudaram e ajudam a vermos melhor onde moramos. Que a negatividade e a depressão também se aternuram como bem dizia António Alçada. Que morrer longe de Jerusalém é difícil, ó anjos, que os homens se organizaram para se afastarem uns dos outros, não sabendo que cada um morre por sua conta, não carecendo de prévio desamor.
Porque há gente que acerta e há gente que erra mesmo que, tal como na realidade de Sartre em Les Mots, à falta de gostar o bastante de mim, fugi para a frente; resultado, ainda gosto menos de mim, esta inexorável progressão vai-me desqualificando aos meus próprios olhos.
E chamei Sartre pois que Maria Judite de Carvalho é associada à herança do existencialismo e do chamado “novo romance” , na sua obra de escritora de actualidade renovada , tão difícil de catalogar.
Mas perto de ti, Maria Judite, a verdade será sempre a de que, o tempo que passa e seta despedida não voltam ao arco.
Em 1998, ano em que faleceu Maria Judite de Carvalho, talvez tenha compreendido melhor que o sofrimento surge também como coração de mudança, quando aduba, merecidamente a alma que pede o sonho em casamento.