Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
«Notre Nihilisme» é o tema central do número de março-abril de 2014 da revista «Esprit», que assinala, de algum modo, os 100 anos do início da Primeira Grande Guerra, interrogando o paradoxo contemporâneo da obsessão dos valores e do triunfo do nada - para o que conta com a coordenação de Michaël Foessel (como o apoio de Olivier Mongin, Jean-Louis Schlegel e Joël Roman) e com uma entrevista do pensador francês Jean-Luc Nancy, para além de um muito interessante inquérito sobre o difícil tema.
SOB O SIGNO DA PALAVRA CRISE «Na semântica contemporânea da inquietude, a palavra crise é que domina» - quem o diz é Michaël Foessel no pórtico deste dossiê. O niilismo entra, assim, na ordem do dia, segundo o diagnóstico de Nietzsche, coincidindo o seu aparecimento com um momento em que os valores superiores se degradam. A informação em tempo real retira importância à encenação, a «aceleração dos ritmos dá a sensação de se dançar sobre um abismo, donde nada de decisivo pode emergir». No fundo, a sociedade renuncia à composição hierárquica do sentido. Cem anos depois do inesperado e impensável início da Guerra de 14-18, revemos na nossa memória o último século, que Éric Hobsbawm considerou um século curto, numa sucessão perturbadora e desafiante: um período de catástrofes (1914-1944), a que sucedeu a «idade de ouro» europeia dos «trinta gloriosos» de Fourastié (1945-1975). Depois disso, impor-se-ia um «capitalismo intratável», que tomou como refém o movimento democrático saído da queda do muro de Berlim e da abertura política no centro e leste da Europa. Compreendemos, afinal, ainda melhor aqueles que consideraram a Guerra de 14 um autêntico suicídio do velho continente – Jünger, Patocka e Valéry. Deste modo, a pergunta certa a fazer tem a ver com saber-se por que razão se fala de niilismo quando, paradoxalmente, o mundo está saturado de sentido, sendo atravessado por uma lógica de eficiência técnica. Como insiste M. Foessel, «o niilismo não é sinónimo de falta de sentido (o absurdo), mas designa a redução deste a um modelo único: o da eficiência. E é no meio do século XIX (…) que o tema se impõe, numa época em que triunfam o positivismo e a fé na ciência. A crença na convergência entre os progressos da técnica e os da humanidade moral atingiu o seu pleno. Desde essa época, poderíamos admirar-nos que o niilismo emergisse num contexto marcado por tanto otimismo». Contudo, o niilismo não designa tanto o «desencantamento do mundo», mas uma reação negativa a este. O ponto de situação do atual debate europeu revela, por isso, uma reedição de todas essas perplexidades. Mesmo os partidários da União Europeia descobrem que um perigoso sentimento de indiferença e de demissão atinge tanto os cidadãos como as instituições europeias. Há quem declare querer a Europa, mas não se sabe o que a Europa quer. Aliás, na sequência de Husserl, Jan Patocka diz-nos que o niilismo provém da naturalização do sentido, que postula o primado do quantificável e do representável, mais do que um outro entendimento ligado ao sentido. A racionalidade extrema, que procurámos aplicar à ação humana e à economia simbolizam a ingenuidade que consiste em tentar submeter ao real as categorias da razão abstrata.
EVOCAR O NIILISMO DO PRESENTE O indivíduo contemporâneo não sofre de descrença, ele é, ao contrário, convidado a crer no nada, como umas espécie de alimento que resulta da convergência entre metafísica e literatura. «Evocar o niilismo do presente (diz ainda M. Foessel) leva menos ao deplorar da falta de sentido do que ao pôr em dúvida a certeza de o encontrar na esquina da rua ou no resultado de uma equação». Afinal, vivemos perante o predomínio da tagarelice mediática e o risco do isolamento e do circuito fechado, que caracterizam a organização contemporânea do saber. Por isso, há o apelo aos valores, eclipsados sob o peso do relativismo e do individualismo. Paradoxalmente, o mercado dos valores é tanto mais fulgurante quanto é certo que faltam hierarquias e crenças sólidas. Confunde-se amiúde o cidadão com o «homo economicus», não se compreendendo a importância da prevalência da incerteza sobre a racionalidade cega. «A modernidade elaborou normas que, não emanando de uma razão instrumental, podem aspirar a uma universalidade não autoritária». Não podemos esquecer, no fundo, que a lógica democrática assenta no conflito, na regulação, no equilíbrio de poderes e influências, na incerteza e na imperfeição. Com efeito, para além dos valores e normas, há as convicções, com as suas próprias fragilidades, mas com influência positiva na determinação e na vontade para afrontar o futuro. Nietzsche tem de ser invocado neste ponto. A resposta ao «nada» não se encontra no excesso de certeza, mas na atitude de quantos preferem a dúvida ao nada. Aqui está o cerne da questão, que nos leva a interrogar e a pôr em causa, por exemplo, o gnosticismo como identificação do mundo com o mal, que hoje renasce até quando os produtos da tecnologia moderna tornam o homem estranho ao mundo que habita, do mesmo modo que afirmamos a condição moderna como o pluralismo de sentido e de valores. Perante o ceticismo, por outro lado, torna-se necessário, não responder com novos dogmas, mas voltar a investir no que Paul Ricoeur insistiu, muito justamente, um elo estável entre a crítica e a convicção. Ora, como disse Camus: «cada geração, sem dúvida, crê-se votada a refazer o mundo. A minha sabe, porém, que não o refará. Mas a sua tarefa é porventura maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça».
A CRENÇA NESTE MUNDO Assim, a crença neste mundo basear-se-á na necessidade de fazer surgir, sob a diversidade dos acontecimentos, uma questão escondida, que permita ver no desconhecido mais do que uma ameaça. Jean-Luc Nancy afirma, aliás, que é tentado a substituir os valores pelo sentido, uma vez que este sentido encontra valor no que vale para quem é comunicado. Mas, se o niilismo é a desvalorização dos valores superiores, essa desvalorização não suprime o pensamento que subjaz à palavra valor. Não estamos, contudo, a falar de valor em sentido económico – até porque o que tem mais valor é o que não tem preço. Referimo-nos, sim, à dignidade (Würde), que Kant considerava como fundamento do imperativo categórico, e que se relacionava etimologicamente com valor (Wert). E é neste ponto que devemos insistir em que a resposta ao «nada» não se encontra no excesso de certeza, mas na atitude dos preferem a dúvida ao nada.
Está cinzenta e fria esta manhã, um tanto estranha assim no avanço da Primavera... Vou assomando a janelas várias, procuro junto aos beirais da casa, perscruto o céu indiferente sobre campos adormecidos pela longa espera de um sol quente que tarda... quero ver uma andorinha e sonhar que voo com ela! Vi, há dias atrás, um bando delas em voo bailado, sobre o silêncio dos campos. Lancei-lhes um Bem hajam! de agradecida saudade. Mas não voltei a vê-las. Talvez se escondam noutra Primavera. Gosto das aves do céu, sobretudo das de arribação: porque me fazem estar sempre à espera delas, sem que saiba o dia e a hora certos, e porque, depois, partirão, sem que eu saiba certamente quando, nem exactamente para onde... Saberei, então, apenas, que esperar um regresso é a quintessência da condição humana. E pensarsenti-lo torna-me mais livre: a fé e a esperança são o único controlo que eu posso ter do meu destino. Amar é o único modo de poder preenchê-lo. As aves voadoras dão-nos uma lição de humildade. Posso correr e saltar, pendurar-me nas árvores, e mesmo armar-me em quadrúpede, pondo-me de gatas e bufando como um touro ou dando coices de mula. Posso ainda, rastejar como verme ou réptil, não necessariamente como o Yul Brynner a avançar para a Gina Lollobrigida no Salomão e a Rainha de Sabá do King Vidor (1953), nem repetindo penosos exercícios de recruta militar... Posso nadar nos lagos e rios e no mar... Mas erguer-me ao céu, levantar-me no ar, isso só metaforicamente ou com auxílio mecânico. Imagina-me a tentar voar, batendo energicamente os braços, ou levantando-os em ondulações de bailarina do Covent Garden... Pareceria, mais provavelmente, uma assustada, cacarejante galinha! Assim sendo, antes ser chorosa ave de capoeira do que Ícaro precipitado no mar, ao largo de Samos...ou talvez não, nem uma coisa nem outra! Aproveitei, no fim de semana passado, uma breve estadia na nossa Bruxelas, para um salto aos Museus Reais de Belas Artes, melhor dizendo, àquele que está defronte da sede social do Banco de Bruxelas, antes palácio do Conde de Flandres, que o nosso avô Camilo frequentava. Lembro-me de ter encontrado ali, contigo e quando jovens, duas representações da queda de Ícaro, feitas com a distância de 80 anos: uma de Pieter Brueghel o Velho, em 1558; outra de Pieter Paul Rubens,de 1638. Para lá da diferença de estilos, com clara influência italiana em Rubens, ambos estes mestres flamengos nos contam a mesma história num modo diferente. Na Paisagem com a queda de Ícaro, Brueghel deixa-nos uma última perna do herói fora de água, perante ou, melhor, nas costas ou indiferença de todos: de um pescador, de um rebanho de ovelhas que pasta e seu pastor (rezando o Angelus?), de um lavrador que lavra. Cada qual em seu ofício. Só uma espécie de dragão, lagarto alado, parece agitar-se, como que a despertar o pescador à linha para um acidente que o céu, os montes, o mar e os navios nele, impassivelmente ignoram. O sonho de Ícaro -- ambição de subir ou curiosidade de experimentar descobertas - é- lhes indiferente. Já em Rubens, se Ícaro cai desamparado - derretida a cera que lhe segurava as asas, por ter querido aproximar-se demasiado do sol - Dédalo, seu pai, surge na precipitação da queda, igualmente voando, mas seguro em suas asas, pois não quis subir alto demais... Aqui, já não há, apenas, uma lição de moral sobre humildade e ambição. Há uma intenção prática: a de que a experimentação deve ser cautelosa e só depois sábia, nunca sabichona para ser atrevida. Assim caminhará o pensamento europeu, da renascença às luzes... Dédalo, o pai de Ícaro, era arquitecto. Por ordem de Minos, rei de Creta e pai de Ariana, concebera e construíra o labirinto, para encerrar Teseu e impedi-lo de fugir. Não contava o rei com a fidelidade inventiva de Ariana, que ao ingrato Teseu entregaria a ponta do fio libertador. Não contava Dédalo com que seu filho Ícaro se quedasse perdido e preso no labirinto de seu pai... Coisas! Para o livrar, o mesmo pai apõe a seu filho asas coladas com cera, para lhe permitir voar e fugir do labirinto. Afinal, todos nós, há milénios -- ou simplesmente desde pequeninos -- sonhamos com essas asas brancas que um anjo qualquer nos desse... Cada um terá de aprender o modo do seu sonho, na certeza, porém, de que será sempre uma viagem. Pus-me esta tarde de sábado a ouvir, de janelas abertas sobre a quietude dos campos sem vento e sem vizinhos, O Navio Fantasma do Wagner, gravado em Londres, em 1968, pelo Otto Klemperer. Lembrei-me desta ópera, talvez por querer ouvir a abertura, essa tempestade de um mar que soberanamente comanda tudo e todos e faz ecoar nas falésias os clamores dos marinheiros resistentes e aflitos, mas é sobretudo vencido pelos temas musicais da vontade de libertação do Holandês Voador - fantasma condenado a eterno naufrágio, por ter um dia desafiado as forças do além - e do que virá a ser o resgate final de Senta, a mulher cuja paixão vencerá o demónio, depois da morte. Não te repetirei a história, já a conheces. Lembro apenas que, ao ver gorada mais uma oportunidade de se libertar do purgatório ambulante e infindável em que navega, Der fliegende Holländer confessa a sua identidade e parte no seu navio fantasma. Mas Senta, a mulher amada, o porto final da sua navegação derrotada, precipita-se no mar, do alto de uma falésia, gritando: Preis deinen Engel und sein Gebot! Louva o teu anjo e o seu decreto! Aqui me tens, a ti fiel até à morte! E então se afunda também a nave do Holandês. E ao longe, transfigurados e abraçados, das águas do mar se elevam os dois apaixonados... Deixo-te a pensar se será dilema ou não: Liberdade ou morte! -- Morte e liberdade! Dou-te uma mão pacífica, vou lá fora ver se descubro as andorinhas. Tenho aprendido muito com elas.
Desde cedo, aprendi a admirá-lo, a compreender a vivacidade do seu espírito, sempre dotado da inquietação própria de quem combate todos os fatalismos, todas as tentações de indiferença e imobilismo. Sendo um homem de pensamento e de reflexão teve a capacidade de acreditar na transformação da sociedade, no sentido de um mundo melhor, de justiça e de conhecimento, de liberdade e de solidariedade. Em todas as funções que desempenhou deixou marca de movimento e de mudança – e, além dos impulsos que deu, soube, como poucos, partilhar responsabilidades e criar equipas em que estiveram por exemplo, Adelino Amaro da Costa e António Sousa Franco.
Ministro da Educação Nacional de 1970 a 1974, o Professor José Veiga Simão, crente na inevitabilidade da democracia, rompeu com a ideia de que o atraso educativo era uma fatalidade de um país atrasado e pobre. Idealizou, assim, um processo de transição, que retomasse a orientação da Primeira República, alargando a escolaridade obrigatória para oito anos, acabando com uma escolha prematura e discriminatória aos dez anos entre o liceu e o ensino técnico, abrindo o caminho para um ensino secundário, onde houvesse liceus clássicos, liceus técnicos e liceus artísticos e para novas universidades. Haveria que prosseguir com mais audácia o Plano do Mediterrâneo da OCDE em que se empenhara o Ministro Leite Pinto. A sociedade portuguesa tinha de se preparar.
Veiga Simão afirmou, por isso, emblematicamente: “Um princípio fundamental que não me canso de repetir (…) é o da necessidade de uma autêntica democratização do ensino que, sem exceção, permita a qualquer jovem ocupar na sociedade o lugar que lhe compete em exclusiva dependência da sua capacidade intelectual e sem condicionalismos sociais e económicos”. Não esqueceu o que Aquilino Ribeiro disse sobre “a inteligência congelada nos ribeiros do interior”. Havia que abrir as mentes e que dar resposta aos jovens das periferias das cidades.
E permitam-me que invoque a importância atribuída à política cultural de Veiga Simão. Tratava-se de entender a cultura como fonte de desenvolvimento e como fator de abertura e de liberdade, contando com a participação de pessoas de horizontes largos e com liberdade de espírito, como António Alçada Baptista, Ruben Andresen Leitão, Miller Guerra, Lindley Cintra ou Maria de Lourdes Belchior. O diálogo entre saberes foi para o Professor Veiga Simão uma exigência permanente, do mesmo modo que o seu humanismo universalista reclamava a cooperação internacional.
Licenciado em Ciências Físico-Químicas na Universidade de Coimbra, obteve os Doutoramentos em Física Nuclear pela Universidade de Cambridge no Cavendish Laboratory, pela Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Em 1961, assume a cátedra da Universidade de Coimbra. Dois anos depois é nomeado reitor da Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique, cargo que desempenha até 1970. E depois de 1974 e em coerência com o seu empenhamento pela mudança do País, é embaixador de Portugal nas Nações Unidas – reconhecimento singular da sua independência e genuíno sentido de cidadania. Seria ainda, numa carreira exemplar de serviço público, Ministro da Indústria e Energia, Presidente do Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial e Ministro da Defesa Nacional.
A história da transição democrática portuguesa tem de reconhecer o papel fundamental de Veiga Simão, que nos deixa inesperadamente, e que ainda tinha entusiasmo para continuar a servir Portugal.
Evoco aqui Vasco Graça Moura como dramaturgo, que o foi com o talento e a qualidade de toda a sua obra literária e poética. Evoco também o dirigente cultural, a quem muitíssimo se deve e devo eu, numa colaboração de dezenas de anos, desde a INCM ao CCB: mas mais do que isso, evoco um amigo que, no espaço de poucas semanas, se juntou agora na morte a outros dois grandes amigos, – o Augusto de Athayde, o Mário Quartin Graça…
Figuras relevantes na vida pública, politica e diplomática, cultural e intelectual portuguesa, escritores e gestores da cultura, ao mais alto nível, com projeção e carreira internacional, todos eles foram: e o Vasco, ainda, poeta, romancista e dramaturgo.
Escreveu três peças: “Ronda dos Meninos Expostos” (1986), “Auto de Mofino Mendes” (1994) e “Banksters” (2011), libreto e texto da ópera homónima de Nuno Corte Real, que de certo modo remonta ou evoca, num contexto atual, o “Jacob e o Anjo” de José Régio – só que, repita-se, numa atualidade critica e desencantada de banqueiros e homens de negócio: o Rei é o banqueiro Santiago Malpago e o Anjo chama-se Angelino Rigoletto, o que logo remete para um trágico-cómico operístico…
A “Ronda dos Meninos Expostos” é uma belíssima e extremamente sensível transcrição/dramatização dos bilhetes de identificação alegórica, enigmática, oculta, dos recém – nascidos abandonados anonimamente na roda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no seculos XVIII/XIX. Esses bilhetes serviriam para eventual identificação posterior. A dramatização decorre assim da transcrição articulada desses bilhetes pungentes e termina com uma mensagem, essa obviamente criada por Vasco.
É o diálogo entre o Escrivão, o 1º Secretario e a 2º Secretario, perante a leitura de um bilhete com uma dolorosa carga evocativa: “1º Secretário – Este menino nasceu / foi no dia vinte e cinco de Dezembro. Nada mais. /2º Secretário – Não diz mais nada o bilhete? / Escrivão – E não traz nenhum sinal?/ 2º S - E ao menos é batizado?/ 2º S- Mas assim não pode entrar! / 1º S – Isso não sei, ó colega / pergunte-se ao provedor / que terá de apresentar / o assunto à hierarquia… /talvez mesmo ao Intendente… / talvez mesmo ao Cardeal…”
O “Auto de Mofino Mendes” retoma e reconstitui, com grande mestria literária, a linguagem arcaizante, num ritmo vicentino – e não há maior elogio! – Aplicado a uma situação contemporânea, que Vasco bem conhecia – dois políticos, o “Secretario Geral Mofino Mendes que veste seu fato-macaco assaz engomado” e Brígido Vaz “presidente do partido Xiz com sua capa e batina de cheviote mui dereitamente alinhada”, um Diabo “a brandir sempre seu tição, que veste saiote de escarlata e cheira e enchofre” e ainda “uma eminencia parda que traz um camuflado de campanha guarnecido com ricos debruns”… todos eles “mui compenetrados” e retomando o teor vicentino numa evocação moderna!
E finalmente o “Banksters”, cujo nome diz tudo – e o banqueiro no final perde perdão ao Diabo: “Sempre te via, sempre estavas / A meu lado o tempo todo / e fiz mal, contrariei / O que me vinhas dizer / (…) que só depois percebi / Quanta luz vinha de ti / A esta pobre humanidade / Que agora em mim recomeça / entre mentira e verdade”…
Repare-se como estas transcrições / atualizações revelam o sentido cénico, a qualidade literária e a cultura teatral de quem as escreveu!
Há horas de partilha, alegre ou jocosa, e mesmo triste ou saudosa, como quando alguém põe sentimentos na rua, para arejar na companhia de outros. Mas outra coisa é o que só o silêncio nos descobre, como o poema que, a sós lemos e relemos, recolhidos como quem reza. Não cansa porque nunca se repete, e quando se repete é já um poema novo, um passo adiante, na escuta de uma oração. Afinal, rezar não é nenhum refrão pagão, é ouvir muito e dizer pouco. A contemplação, poética ou mística, não tem segundas intenções, é simplesmente a ascese de um olhar que se limpa frente ao mistério de tudo. Parece, todavia, que o coração humano, em sua mente, encerra, labirinticamente, propósitos inconfessáveis. Recordo que, no seu L´autre face de la lune - écrits sur le Japon, Claude Lévi-Strauss fala do mito antigo (vem narrado no Kojiki) da lebre de Inaba, não para o retomar como fábula parente de muitas outras contadas também no sudeste asiático, mas para o relacionar com mitos recolhidos no continente americano. Resumindo: em todos esses contos surge um animal, ou um herói, que, na incapacidade própria de atravessar um rio a nado, pede a um crocodilo que o transporte. Cito Lévi-Strauss: O sáurio consente, mas com segundas intenções. Exige que o seu passageiro o insulte (bom pretexto para o devorar); ou então, acusa-o de o ter insultado; ou, mais ainda, é efectivamente insultado pelo herói, logo que este, chegado a bom porto, pensa poder escapar-lhe. Estamos, neste ponto, muito próximos das duas versões japonesas conhecidas, em que a lebre, assim que põe o pé na margem, faz troça do crocodilo e lhe revela a sua própria matreirice. No fundo, a lição também não é diferente da de muitas outras fábulas que, aliás, em muitos casos, de fabuloso sobretudo têm não se ter aprendido a lição com elas... Na vida política ou académica, em negócios ou simples viagens de recreio, no trânsito rodoviário, como na busca de um lugar em parques de estacionamento ou de um assento no comboio, todos nós - alguns até, infelizmente, nas suas relações de família ou amizade - já experimentámos esse desgosto causado pelo gosto de alguém em enganar o outro, provocá-lo ou dele troçar... Até já pensei que a narrativa mítica do pecado original talvez seja, afinal, um semáforo de alerta: Cuidado, muito cuidado! Não te deixes enganar... E o profeta Jeremias dirá: Maldito o homem que confia no homem... ...O coração é o que há de mais astucioso e incorrigível. Quem o pode entender? Mas retorquirá: Posso Eu, que sou o Senhor: penetro os corações, sondo os mais íntimos sentimentos, para retribuir a cada um segundo o seu caminho, conforme o fruto das suas obras... A tradição da Igreja, e a liturgia católica, aproximaram muitas vezes esta leitura de Jeremias à narrativa evangélica, por São Lucas, do pobre Lázaro - em sua vida ignorado por um ricaço anónimo - e que, depois de morto, foi pelos anjos colocado sob o manto de Abraão, enquanto o homem rico foi lançado à mansão dos mortos. Aí, o seu sofrimento impele-o a pedir a Abraão, pai dos povos, que deixe Lázaro vir molhar-lhe os lábios febris de tanta sede, ou ainda, pelo menos, a voltar à terra, para avisar os seus ricos parentes do risco que correm por ignorar os pobres. Tudo isso lhe é negado, pois quem, em seu tempo, não escutou Moisés nem os profetas, será incapaz de acreditar no que avisa um regressado da outra vida... Resumindo: todos podemos enganar-nos uns aos outros e a nós mesmos, mas a Deus ninguém engana. Ou, se quiseres, à consciência de si, que também será essa íntima fidelidade ao bem-querer e bem-fazer, na medida em nos revela enquanto seres necessariamente em relação. Creio que essa consciência individual, esse sentido único de responsabilidade do eu mesmo, livremente, para com os outros, será posterior à coesão necessária dos membros de um grupo humano primitivo. Os homens emigraram da natureza para o bando, e do bando para o próprio eu de cada um. Só a partir desse ponto surge, verdadeiramente, a consciência moral e o direito. A natureza não tem direito nem torto, tem sujeição ao instinto. O homem primitivo tem sujeição à sobrevivência do grupo. O homem moral não tem sujeição necessária, vive numa esfera de referências a que chamamos cultura... E poderá, dramaticamente, valorizar, de modos diferentes e em tempos vários, essas referências. Nesse sentido, a consciência moral comandará sempre o exercício da liberdade individual, determinando a formação de uma vontade. Ao decidirmos ou, simplesmente, consentirmos, tornamo-nos responsáveis, não só pelo acto em si, mas pelas suas consequências. E, porque somos sempre em relação, somos responsáveis, em consciência, perante Deus, mas também necessariamente para com aqueles que a nossa decisão, ou simples consentimento, afetou. Infelizmente, a cultura reinante valoriza e apregoa uma consciência individual que, todavia, ignora ou esquece o imperativo moral da relação aos outros. Ainda por cima, hipocritamente, referindo-os sempre como motivo, razão ou objectivo de prometidos actos benfazejos. Da publicidade comercial às campanhas eleitorais, enaltecem-se sonhos e fantasias, prometem-se futuríveis irrealizáveis. Chega-se à outra margem - à dos lucros ou do estabelecimento político - à custa do jacaré enganado. Entretanto, uma certa cobardia - a que por aí chamam prudência ou faro político - aconselhou a, hipocritamente, ir lisonjeando o sáurio, não vá ele sentir-se insultado e devorar o passageiro... Mas o apagamento da consciência moral -- concomitante à generalização da irresponsabilidade - pode também, por outro lado, levar indivíduos a provocar ou insultar outros, ou, ainda, de modo mais intencional e calculista, a sabotar-lhes a confiança para causar rupturas. De tais exemplos está o mundo cheio, tal como de demonizações dos próximos a fim de condenar a estima que mereceriam. Como se, até na cultura católica - que é a da comunhão dos santos - tivesse prevalecido o célebre individualismo de Lutero que, no Teófanes Egido, escreveu: Que ninguém se abandone às obras de outrem e prescinda das obras divinas que lhe são próprias. Pelo contrário, deve atender primeiro a si mesmo e a Deus, tal como se ele e Deus fossem os únicos existentes no céu e na terra, e ninguém além de si mesmo fosse motivo de acção divina. E só depoisse pode atender às obras dos demais. Sabes como sempre defendi que ninguém, nem sacra instituição alguma, tem o direito de se interpor entre a minha consciência e Deus. Mas, perante Deus, eu nunca estou sozinho, devo ser como o escriba a quem Jesus disse: Não estás longe do reino de Deus. Pois, apesar de escriba, ele aprendera o mandamento: Amar a Deus com todo o coração, toda a inteligência, todas as forças, e amar o próximo como si mesmovale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios... Nos evangelhos, nunca se afirma o amor de Deus desligado do amor do próximo. Dou-te a mão, minha Princesa de mim, estendo-ta de bem longe, não te contagie este mal que me fecha em casa...
Eu nunca tinha ouvido falar do Último Olhar. (…)A organista estava a tocar uma peça que eu conhecia bastante bem «Jesu, Joy of Man’s Desiring.»«Oremos», diz o Pastor.
Recordei para um passado de há muito, um muito quando eu simplesmente achava que cada um tinha a sua ideia de Deus. Em que a vida de todos girava à volta de todos, até ao dia em que um saía. Desarrumava-se e saía.
Ao final da tarde já estavam a dizer que alguém tinha fugido e devia ser punido pelo atrevimento. Afinal quem quereria sair do abrigo que era porto seguro? Que traição! Com que direito se fazia à diferença? Teria ido de bicicleta? Teria sido droga? Más companhias? A escola fizera-lhe mal? Fora à procura de quê? Tudo tinha, não precisava de nada. Ah!, já se ouvira dizer que tinha fama de nunca desistir, tinha fama de uma teima estranha. No dia seguinte, já os parentes próximos e longínquos sabiam do assunto. Na semana seguinte, o mundo do bairro confundia-se. Esperava-se em silêncio uma vinda em contrição.
Mas ela partira depois de um Último Olhar, e alojara-se num endereço nómada, com selo de expectativa e carimbo indecifrável. Mais tarde, demasiado tarde?, para o tempo de uma ida, apercebeu-se que tudo lhe tinha chegado ao mesmo tempo, tudo estava mesclado até das coisas das quais levara tempo a resolutamente se despedir. Não imaginara que esta situação pudesse existir quando saísse depois do Último Olhar. E ali estava ela, firme na sua fé à lágrima. Tolerando algumas realidades das quais se separara e, ocupada no apartado onde vivia, só sabia que continuaria a cavar fundo, pois fosse como fosse, era sempre necessário encontrar água.
Agora com “Amada Vida”, livro de Alice Munro, entendia melhor os consolos fora de todas as proporções.
Alice Munro, sublinhe-se, trabalha as saibreiras dos contos que escreve de modo a poder dizer sempre: tudo o que recordo é o papel da parede do meu quarto, com ursos de peluche. Não sabia que quando se falava de bombas atómicas não se estava a falar de bombons atómicos.
Assim, tomando nota do tempo, sempre que se passa por um marco de correio coloca-se dentro a carta da “Amada Vida”, mesmo quando não haja notícia alguma para dar. Sabe-se que o comboio abrandará para fazer a curva, sabe-se que o único passageiro dele não saltará, antes lhe pedirá à entrada do túnel uma luz que aconchegue o desconhecido. Ou poderá pedir a mão de Deus, mais segura do que uma estrada conhecida?
Dizemos que certas coisas não têm perdão – ou que nunca nos perdoaremos a nós próprios. Mas perdoamos – fazemo-lo a todo o momento. Não há muito tempo para esperar do futuro.
Assim “Amada Vida” também se lê persistente às ideias que Alice Munro nos propõe: algo de pedra e de Deus, algo arriscado e belo como as pequenas vilas em redor do Lago Huron, no Canadá, sua terra natal.
Permita-se, a partir de agora, uma certa a evocação da experiencia pessoal.
Em 1958, com 17 anos, ingressei na Faculdade de Direito de Lisboa, nesse mesmo ano instalada na Cidade Universitária: foi o primeiro curso lá iniciado.
E no mesmo ano, matriculei-me, como aluno ouvinte – estatuto e expressão usada à época - na Secção de Teatro do Conservatório Nacional, Escola então dividida em três cursos: Música, Teatro e Dança. Era Diretor o meu pai, Maestro Ivo Cruz, que bem se bateu pela reforma estrutural do ensino das artes de espetáculo, só obtida, já noutro quadro, anos depois.
Eu voltaria ao Conservatório e à Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, seu sucessor orgânico, como titular da cadeira de História do Teatro. Mas os anos que frequentei como aluno, anos de formação teórica, deram-me a oportunidade de participar em aulas, conviver com alunos e sobretudo beneficiar do ensino de um grupo notável de professores, que aqui enumero e recordo.
Nada menos que Fernando Amado em Arte de Representar e Encenação e em Estética Teatral; Álvaro Benamor em Arte de Representar e Encenação; Eurico Lisboa em História da Literatura Dramática; Gino Saviotti em Filosofia do Teatro; Carlos de Sousa em Arte de Dizer e Declamação. E havia ainda a cadeira (que não frequentei!) de Dança Teatral, dirigida por Margarida de Abreu, também titular dos cursos de Bailado.
Era pois, como se pode ver, um elenco de docentes de primeiro plano, que conciliavam o ensino com o prosseguimento de carreiras profissionais destacadas no meio teatral da época.
O ensino fazia-se então no velho Convento dos Caetanos, ainda hoje Conservatório de Música, onde Garrett fundara e dirigira o Conservatório. Os cursos de teatro e cinema mudaram-se nos anos 90 para a ESTCL, na Amadora. Diga-se que o Conservatório nada tinha obviamente de conventual… e desde a Sala de Concertos, com, no teto, uma notável alegoria de Malhoa evocativa das artes do espetáculo, ao pequeno mas funcional estúdio de teatro onde decorriam as aulas das disciplinas ligadas ao espetáculo; ao estúdio de dança, às numerosas aulas de instrumentos mas também ao Museu do Conservatório e à notável Biblioteca especializada - todo este conjunto, instalado, repita-se num edifício em si mesmo belo e carregado de história, marcava (e ainda hoje marca) um estilo e um conteúdo de ensino, na época em que o frequentei muito discutido e tantas vezes contestado, mas que, hoje, podemos reconhecer como adiantado para o Portugal de então – e sobretudo, ministrado por um grupo notabilíssimo de professores, todos eles, simultaneamente, grandes professores e grandes profissionais das artes do espetáculo.
E recomeçaremos a evocação, na próxima crónica, precisamente por Fernando Amado.
Os engenheiros das máquinas políticas andam excitadíssimos, com aspirantes a professional techs saltitando com saco de caramelos como nos períodos de recreio! A 365 dias para selecionar o próximo executivo, as equipas partidárias testam resposta a questão simples: Como obter o seu ou o meu voto? A resposta não está fácil a apenas duas semanas dos adjacentes sufrágios local e europeu, com a incerteza do referendo a uma free Scotland em fundo e um infindo desencantamento continental. — Pourquoi pas?! L'Union Européenne est en procès! Áreas há na vida pública cujos protagonistas aparecem tão impreparados no exercício de funções que só a ideia de os repor nos cargos causa indeclinável desconforto. Ora, o Ukip veleja de vento em popa e a sua afirmação a par de atraente abstenção ameaça as placas de Westminster. — Well, in the event of a Scottie yes vote, the outcome of the European election would be the least of our worries! A maioria desertou do centro político e gerou atípica coligação no último swing eleitoral. Desta feita, o quadro das opções surge ainda mais líquido.
Os dias estão solares como em suave Verão. A envolvente de Whitehall está também diferente. A paisagem partidária tem originalidades. De acordo com as sondagens existe um sólido novo terceiro partido cujo programa assenta na saída do UK da European Union. O Independent Party continua a polarizar o espaço mediático em grau que diz da galopada das preferências, de 3,1% em 2010 para os atuais 15%, no que contribui uma campanha de shock billposters a quebrar o condicionalismo social do politically correct. Mr Nigel Farage até se delicia com alguns Tories a proporem acordo entre independentistas e conservadores para a conquista do No. 10. A descer nas intenções de voto, os Lib-Dem de Mr Nick Clegg apresentam-se com ágil disponibilidade a apoiar qualquer maioria capaz de os levar a Downing Street, estreitando posições com um Labour que admite agora renacionalizar os caminhos de ferro. Inquestionável é o Prime Minister RH David Cameron ter excesso de variáveis para controlar e a presente wage living crisis não o ajudar.
Decision time countdown, pois. A economia disputa atenções com operação de takeover da AstraZeneca pela americana Pfizer. A provar os links entre os negócios e a política, o tema circula a céu aberto pelos corredores de Westminster. Na House of Commons celebram-se os 20 anos da primeira mulher ordenada na Church of England. O Archbishop of Canterbury afirmou em St Paul's Cathedral que “men and women are equally icons, witnesses, and vessels of Christ for the world”. Para o Dr Justin Welby é tempo de o General Synod abrir portas a women bishops.
A igualdade de género persiste com caminho para andar. A notícia do rapto de 250 schoolgirls de uma escola católica na Nigeria, com anúncio televisivo de venda, é da esfera do mal puro. Este caso ganha visibilidade internacional, mas sobretudo sinaliza a realidade atroz dos mundos que o 21th century deixa para trás com indiferença estonteante. Uma incivilidade que se estende das feras selvagens na selva africana aos manhosos predadores no calafeto europeu quando cá se rasga a carta dos direitos e deveres humanos por quantos desacreditam, dia após dia, o progresso e a educação. — Probably they already deeply know why they do it!
«Os Passos em Volta dos Tempos de Eduardo Lourenço» (Verbo, 2014) de Carlos Câmara Leme traz-nos a revisitação da obra do ensaísta de «O Labirinto da Saudade», que nos permite compreender pela análise da obra e pelo testemunho pessoal dado numa entrevista inédita a importância da relação entre o tempo e a criação literária, em especial da poesia, no nosso mais influente pensador contemporâneo.
O TEMPO COMO MATÉRIA-PRIMA DO ENSAIO O tempo é um dos temas recorrentes na ensaística de Eduardo Lourenço (EL). É a sombra de Kierkegaard que impende sobre a sua reflexão, num combate sem tréguas em que Hegel é um permanente interlocutor invisível, sempre incapaz de satisfazer, numa lógica de sistema, a curiosidade do eternamente insatisfeito autor de «Heterodoxia». E o certo é que foi essa sempre inacabada curiosidade e essa insatisfação que permitiram ao ensaísta não se deixar arrastar pela voragem do imediato e das suas armadilhas. E qual o segredo, se é que há um segredo, para essa atenção clara e atenta ao incerto, mas tão inesperada? O segredo está em não se deixar aprisionar por qualquer determinismo, mesmo que encapotado. Como disse em «Sören Kierkegaard, Espião de Deus (1813-55)»: «contra a Filosofia na sua forma de sistema totalmente explicativo – o sistema de Hegel – Kierkegaard invocará a sua experiência pessoal de uma fé impossível de reduzir a um exercício intelectual ou mesmo à mais pura e legítima das contemplações». A chave de tantas perplexidades suscitadas pela obra de EL está aqui. É a experiência pessoal que interessa. Daí a especial ligação à poesia, não apenas como objeto de análise, mas como método de revelação. Quem o acusa de ter obra esparsa, não entende que o método que o pensador usa para melhor compreender a vida que o rodeia é exatamente o do interrogador, como Montaigne, ou o do vigilante, como Kierkegaard. A obra do pensador ganha, assim, densidade, partindo da compreensão de diferentes temas, pessoas e problemas, sendo chamado a refletir. E «durante a noite, guarda nas suas mãos precárias a lâmpada inextinguível da esperança». Daí a metáfora do «Espião de Deus, servo da inominada realidade anterior à separação da nossa treva e da nossa luz», porque se trata de cuidar da guarda do Homem… Como disse EL na revista «Colóquio», em 1959: «só a palavra poética é libertação do mundo. Em luta com a mastigação discursiva do mundo, ela descobre por rara e imerecida graça a passagem para esse Instante onde repousaríamos sempre, mesmo que a nossa marcha fosse mais vertiginosa que a luz. De repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito».
A SOMBRA NÍTIDA DE KIERKEGAARD Em «Os Passos em Volta dos Tempos de Eduardo Lourenço» (Verbo, 2014), Carlos Câmara Leme fala-nos do enigma do tempo na obra do ensaísta, a propósito de Kierkegaard, centrando-se na fé, como luta contínua (como Unamuno dirá em «La Agonia del Cristianismo») e não como batalha ganha de uma vez por todas, assumindo o «diálogo real, de pessoa a pessoa, entre Deus e o homem e não do movimento universal do Espírito ou de uma impensável Matéria», ou seja, «o Homem e a Morte estão face a face, o homem está face a face com o homem». Não por acaso é a poesia de Antero de Quental que surge invocada – emergindo o paradoxo da situação humana traduzido num «encontro incrível entre a eternidade e o tempo». Afinal, o «tempo como tempo não se basta», daí a permanente relação Tempo /Eternidade / Instante, cabendo a este último fazer o tempo sair de si mesmo, dispondo os acontecimentos e as circunstâncias como se fossem «espetros unicamente visíveis pelo fogo súbito do Instante». E é esse instante que se torna, para EL, «eclosão incrível da eternidade do tempo», seguindo as pisadas do pensador dinamarquês: no «instante Cristo, só a repetição dele, a “imitatio Christi” é digna do nome verdadeiro de Instante». Em lugar do eterno retorno, o instante ou o acontecimento faz da história não uma abstração mas a expressão da existência pessoal, lançada e fascinada «pelo abismo aberto entre a Eternidade e o Tempo». Desse modo, o mito germânico de Migdar, a serpente que devora a cauda e que serve de símbolo à «Heterodoxia» e à obra de EL, não representa uma cabeça que morde, mas o próprio movimento ou a «paixão circular da vida por si mesma». Aqui reside a base de todos os paradoxos, entre razão e sem razão. Há sempre uma realidade dividida a considerar, um «estremecimento do Tempo escrito», que apenas os poetas podem revelar, e daí a importância fulcral de Camões, Antero e Pessoa – os três vigilantes da compreensão da humanidade e do tempo no nosso modo de ser. «Só uma flor humilde, misteriosa, / Como um vago protesto da existência, / Desabrocha no fundo da Consciência» - dirá, emblematicamente, Antero…
LEITURA E RELEITURA DOS TEMPOS Na conversa que a obra reproduz, havida entre Carlos Câmara Leme e EL, entende-se que a preocupação com o tempo não é de natureza especulativa. O tempo do ensaísta é o seu próprio tempo e o espaço que interroga é o da cultura portuguesa, de que é um dos melhores intérpretes. Aceitando a imperfeição, procura-se compreender o diálogo fundamental, que Mestre Gil nos relata no «Auto da Lusitânia» e que Almada Negreiros representou graficamente na Faculdade de Letras de Lisboa, Todo o Mundo e Ninguém. «Eu hei nome Todo o Mundo / e meu tempo todo inteiro / sempre é buscar dinheiro / e sempre nisto me fundo»; «E eu hei nome Ninguém / e busco a consciência»… Somos de facto a coexistência desses dois seres gémeos que nos definem, que nos iludem e que connosco sonham. Esse tempo que tanto intriga o mestre é o grande enigma, que Unamuno procurou descobrir «Por Terras de Portugal e Espanha» (e que o saudoso amigo, que há pouco nos deixou, Mário Quartin Graça, tão bem soube compreender). «Quanto à cultura portuguesa (diz EL) quis interrogar não de maneira especulativa, mas concreta, e numa pequena parte, a nossa memória. Sobretudo o que eu quis fazer, sem querer fazer de uma maneira determinada, mas que pouco a pouco se foi precisando, foi uma espécie de tentativa de compreender como é que funciona o imaginário português. O que é que nós somos. Nós somos aquilo que sonhamos, os mitos que construímos. Qual é a mitologia portuguesa?». Eis por que razão o tempo se torna fundamental. Exatamente como o foi para os poetas da trilogia sublime, ou para Fernão Mendes Pinto e Diogo do Couto, para o Padre António Vieira e Francisco Manuel – até Garrett, Herculano, Camilo, Eça… «Em função de que horizonte é que a cultura portuguesa tem funcionado? O que ela tem de particular? Isso só se compreende examinando os vestígios disso, que é a poesia, a ficção». Se há ensinamento que EL nos tem insistentemente inculcado é o da necessidade de compreender os mitos nacionais, não como ilusões, mas como matéria crítica. A identidade tem de ater-se à justa medida, afastando o excesso positivo e negativo. As bandeiras «heróis do mar» e «realidade irrelevante» tornam-se perigosas se apenas contribuírem para demonstrar uma existência póstuma… EL esclareceu-o em «Portugal como Destino»: «…Povo missionário de um planeta que se missiona sozinho, confinado num modesto canto de onde saímos para ver e saber que há um só mundo, Portugal está agora em situação de se aceitar tal como foi e é, apenas um povo entre os povos…».
É de Petrarca o soneto que esta noite traduzo: Zephiro torna, e´l bel tempo rimena...Saí para o campo esta manhã, estive em festa de família, bodas de ouro celebradas em casa, com padre, missa, filhos, netos, amigos, criados e metecos... Começou a celebração ao meio-dia, despedi-me -- cansado, divertido, comovido e grato aos noivos - às 7h30 da tarde!!! Anoitecera. Vim para esta toca de muitas janelas sobre campos verdes que, à noite, são só silêncio e sombra, já que, como diria Álvaro de Campos, ela os fundiu num campo único, e tão só seu. Não trouxe comigo o texto italo-toscano original, cuja tradução já ontem iniciara, bem longe daqui. Soube-me bem recordá-lo, não para ser obediente à letra, mas por ser fiel - pensossinto - à ideia. Mas nada garanto: nem quanto terei transformado o poema, nem, muito menos, quanto me terei transformado com ele. Mas asseguro que desconheço, no que fiz, qualquer valor ou mérito. Apenas me moveu o gosto meu em encontrar-me num texto distante na circunstância e no tempo, e escrito em língua diferente da minha. Em novo dia te saúdo, Princesa de mim! Acordei com o clarear da aurora e o chilrear dos pássaros a acolher o sol. Melhor diria: a cantar a luz! Na verdade, penseissenti que os pássaros devem temer a noite e ter horror ao escuro, e por isso são contentes a saudar o dia... Deus nos dê hoje também a alegria da sua luz! Mas teremos, nós também, de algo fazer por ela: não temos a simplicidade confiante dos passarinhos. Subitamente, silenciaram-se os campos. Em acção de graças. Mas pouco depois, o silêncio reinante foi rompido pelo canto rebolado das rolas. Há muitas por aqui, e estas nunca mais se calavam. Porque cantarão as rolas? Ocorreu-me a melopeia com que os remadores se animam, ou as mulheres, na labuta do campo... E, pela monotonia enrolada, como coragem que se retoma e se quer guardar, o cantar das rolas lembrou-me uma canção da Beira Baixa, em Portugal, que as mulheres entoavam ao ritmo do rodízio de rega que moviam com o seu pisar: era ainda pequenina... Ouvi-a pela primeira vez ao nosso Alberto, que a aprendera com o Edmundo Bettencourt e a cantava, ao jeito dos estudantes de Coimbra, em tom muito alto e tempo acelerado. Foi o mesmo Alberto que, mais tarde, me apresentou um italiano, Michele Giacometti, salvo erro, que gravara a canção completa, na voz ainda de uma camponesa beirã, que ele também filmara, descalça e de lenço negro na cabeça, a fazer - com tamanha nobreza! - girar o rodízio:
Era ainda pequenina, era ainda pequenina,
acabada de nascer.
Inda mal abria os olhos, inda mal abria os olhos.
já era para te ver!
Quando um dia eu for velhinha, quando um dia eu for velhinha,
acabada de morrer,
olha bem para os meus olhos, olha bem para os meus olhos:
sem vida inda sei te ver!
Soaram já as nove, os campos desertos de gente respiram, envoltos numa luz dourada e difusa, que o sol erguido vai filtrando pelo céu cinzento. E neste silencioso mistério do ar, da terra e dos astros, nasce-nos na alma a secreta alegria de Deus. E, parafraseando Francisco de Assis, até já lhe chamo meu irmão Deus! E que assim, em todos os dias, alegres acolhamos a Primavera! Dou-te a mão, uma mão cheia de flores.