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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

 
de 30 de junho a 6 de julho 2014

 

O catálogo da Exposição de Cruz-Filipe «Ficções // Luz do Ártico» na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva permite a melhor compreensão de um percurso de grande coerência, que corresponde a uma síntese muito fecunda entre a fotografia e a pintura, entre a citação e a criação original.

 

 

DAS FICÇÕES À LUZ DO ÁRTICO

As duas séries que Cruz-Filipe apresentou na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva – «Ficções» e «Luz do Ártico» correspondem a uma continuidade e a uma emancipação reveladoras do processo criativo dinâmico do autor, no qual o tratamento da imagem procura permanentemente criar um diálogo de formas, de elementos e de sensações em que a natureza e a cultura se confrontam e completam. Em «Ficções» deparamo-nos com o retomar do ciclo iniciado em 2007, marcado pela paisagem. Adensa-se, assim, o que Vasco Graça Moura (atento observador da obra do artista) designou como o «jogo técnico e conceptual entre a pintura e a fotografia e as suas reverberações recíprocas». E são essas reverberações que importam ao pintor, agora na sua maior pureza e sobriedade. Segundo Marina Bairrão Ruivo: «as obras tendem para uma desejada abstração e a pintura volta a prevalecer, mantendo uma ilusão fotográfica, ganhando agora em unidade com o diluir das divisões temporais». Sente-se a coerência da criação do artista que se aproxima da natureza depois da abordagem romântica, culta e erudita, da sombra humana. Esta esconde-se sem deixar de ter uma subtil presença – porque é característica fundamental de Cruz-Filipe a referência à pessoa humana, mesmo que aparentemente ausente, mas sempre adivinhada. Fernando Azevedo falou, por isso, certeiramente, de «suporte de ausências» na obra do pintor, o que constitui um elo estável de unidade e coerência, nos desmedidos silêncios.

 

NOS BRAÇOS DO TEMPO.

Como escrevi em tempos, a arte de Ricardo Cruz-Filipe continua a levar-nos «nos braços do tempo. Cultiva as metáforas vivas e a serena contemplação das coisas e das pessoas. Em cada novo quadro há uma intensidade diferente que nos arrasta – e que nenhuma figura de estilo resumiu. Há um diálogo entre tempos, entre ambientes e sentimentos. É o espírito que se revela nos mágicos espelhos deste pintor, de quem Eduardo Lourenço disse ser ‘um homem de pudor e reserva todo entregue à magia objetiva de sonhar perfeitamente acordado’. Nele não há ‘algures inacessível’. Há o pequeno gesto. O ambiente. E a memória do homem que habita o tempo inequívoco revelado pelo esplendor da representação» (DN, 26.12.1986). O elemento ficcional é necessariamente pessoal. É a sensibilidade criadora e recriadora que podemos apreender quando entramos na relação com uma narrativa inesgotável. E, como disse Bernardo Pinto de Almeida, em Cruz-Filipe estamos na presença de um «pintor culto e de culto», para quem o intenso trabalho de inovação e de pesquisa, que o caracteriza, reforça o rigor dos passos do caminho. O diálogo, agora evidente, com a intensidade silvestre é, no fundo, um intercâmbio evidente em que o olhar humano dá sentido à simbiose das formas. Mas não estamos perante paisagens lunares, desumanizadas, mas em face da projeção da existência criadora da humanidade, na expressão da natureza. E assim ouvimos a lição dos românticos. Sentem-se intensamente as palavras de Lamartine: «La poésie sera intime surtout, personnelle, méditative et grave, … l’écho profond, réel, sincère… des plus mystérieuses impressions de l’âme. Ce sera l’homme lui-même et non plus son image, l’homme sincère et tout entier…». E assim as «Ficções» são completadas pelas fotografias belíssimas de uma viagem ao Ártico, selecionadas por se aproximarem do universo onírico do primeiro núcleo. Deste modo, encontramos um fio de Ariadne que não ilude a diferença do método e da experiência.

 

FOTOGRAFIA SEM MEDIAÇÃO

Para João Pinharanda, «passou a perceber-se melhor o uso que Cruz-Filipe sempre fez da fotografia e, notoriamente, o papel que a fotografia tem nas suas pinturas mais recentes, a partir do momento em que o artista decidiu expor, sem qualquer mediação histórica, fotografias da sua autoria». Neste sentido, esta mostra trouxe-nos uma revelação que permite entender talvez melhor (como se tal fosse necessário, e não o é) a originalidade perene da obra do artista. Quando a paisagem assume progressivamente uma presença mais forte e evidente, o certo é que a recordação da encenação dos dípticos, método conhecido do pintor pelo qual revela o contraste entre a ficção e a realidade, dá agora lugar a uma participação maior da qualidade ficcional na realidade ela mesma. Nas fotografias apresentadas, sobretudo considerando a sobreposição de imagens e a existência de zonas evidentes de transição, em que não sabemos exatamente onde se encontra ou não a mão ou a influência recriadora do criador, há «o sentido da rarefação (ainda segundo Pinharanda) que associamos aos desertos, uma escassez de elementos referenciais do espaço, uma estranha escassez de horizontes, um enfrentamento de brilhos gelados, transparências aquáticas e opacidades telúricas, o sentimento de um varrimento das superfícies por ventos e glaciares – tudo isto resulta na mesma devastação de alma e corpo que interessava ao romantismo». E, como já se disse, se somos levados ao romantismo literário, percebemos que Cruz-Filipe pratica uma procura insistente de harmonia a partir do choque de sentimentos contrastados e contraditórios. Sente-se, claramente visto, «l’écho profond, réel, sincère…». Voltando a João Pinharanda, «a valia conceptual das imagens reside (…) quer na convocação de uma pesada erudição (…) quer na convocação, recente, de uma visualidade mais pura fundada em construções paisagísticas totais».

 

EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL

Foi uma experiência inesquecível a da visita compassada à exposição, com a cuidadosa preocupação do autor de não dizer nem mais nem menos do que as imagens exigiam, permitindo-nos recordar as diferentes fases, os múltiplos modos de realizar as «ficções», num caminho irrepreensível de depuração e de procura da mensagem essencial. E veio-nos, naturalmente, à lembrança a poesia de Vasco Graça Moura, como uma certa forma de melancolia, e a palavra segura de Rui Mário Gonçalves (num mundo de saudades): «a quietude e o silêncio é onde desperta uma nostalgia; e é esta que tece a interpenetração de espaços e de tempos»… Como que tudo se vai preparando, na suavidade do confronto dual entre ficção e realidade, para que a ficção se torne realidade e a realidade ficção, como na representação teatral, por exemplo de Calderón de la Barca. E o diálogo dá lugar a um só registo, mostrado na última sala da exposição, com as fotografias do próprio autor. Mas o inesperado faz-se sentir, quando o artista nos dá a ilusão de ter intervindo na paisagem natural, como no espantoso panorama «Deixando Randfjord»…

 

Guilherme d'Oliveira Martins 

CONTRADIZ-SE AMOR, POR SER ETERNO E FUTURO…

 

Minha Princesa de mim:

 

Tanto quanto eu saiba, a loucura de Orlando foi tema de três óperas de Vivaldi, todas com libreto de Grazio Braccioli: duas Orlando Furioso ( a de 1714, durante muito tempo atribuída a Alberto Ritori, que compusera outra ópera com o mesmo título e libreto também do Braccioli, e que, aliás o Padre Ruivo levara à cena no teatro de Sto. Angelo , em 1713; e a de 1727, obra definitiva que, tal como a versão de 1714 se estreou no mesmo teatro veneziano) ; mais a Orlando finto pazzo, estreada no mesmo local, no mesmo ano de 1714, a 10 de Novembro, quatro dias depois da primeira. Mas enquanto o libreto das duas Orlando Furioso se inspira no poema épico de Ludovico Ariosto, o da Orlando Finto Pazzo baseia-se no Orlando Innamorato de Matteo Bocciardo. E há aí histórias engraçadas. Sabes que a epopeia de Ariosto é considerada uma espécie de crítica saudosa da literatura romanesca de cavalaria, assim como o Don Quijote do Cervantes, que aliás influenciou. Mas como encetou Ariosto esta obra? Dando, em princípios do sec.XVI, continuação à narrativa do conde Matteo Maria Boiardo, iniciada e inacabada em meados dos anos 80 do sec.XV, e que lhe fora encomendada por Ercole I d´Este, com instruções para descobrir, na antiguidade mítica, um antepassado dos d´Este, duques de Mântua e de Ferrara, que fosse da estirpe do troiano Eneias, fundador de Roma. Ariosto, leitor atento do Orlando Innamorato, foi retomando as personagens e o conto de Boiardo, quando estava ao seriço de um filho de Ercole I, o cardeal Ippolito d´Este, e irá designar Ruggiero e Bradamante, duas personagens da sua epopeia, como os antepassados heróicos da família d´Este. Orlando é sobrinho e cavaleiro de Carlos Magno, valoroso guerreiro que enlouquece ao descobrir que Angélica, a sua amada, se enamorou do soldado mouro Medoro. E é tal a loucura, que se atira ao mar e atravessa o estreito de Gibraltar nadando a caminho de África. Na ópera de Vivaldi  ( Orlando Furioso,de 1727), cujo libreto não segue de muito perto o poema de Ariosto, e mete novas maravilhas, personagens, magias e bruxedos, Orlando, quando enlouquece, incita os circundantes a cantarem com ele a célebre Folia di Spagna (ele não a menciona, mas conhece-se pela música que então entoa) que, dizem, é originalmente um dança portuguesa do sec.XIV... Mas se o tema central do Orlando Furioso de Ariosto é a loucura de amor, esta não é propriamente uma perdição, pois traz consigo também lucidez, generosidade e força. Tal como aoDon Quijote de Cervantes. O grande Erasmo, coevo daqueles e amigo de Damião de Góis e Thomas More, no seu Laus Stultitiae ou Encomium Moriae Elogio da Loucura), põe esta mesma a falar (Ipsa Stultitia loquitur) e assim Moria vai multiplicando citações de S. Paulo, tais como: Recebam-me como louco!... ...Somos loucos por causa de Cristo!...  ...Que,entre vós,aquele que se julgar sábio, se torne louco para ser sábio!... Até Deus seria louco: O que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens! E já alguém teria perguntado se Thomas Morus, o inglês, católico e humanista da Renascença  -- sacrificado por Henrique VIII  -  autor da Utopia, ilha de imaginação e pensamento novo, descoberta por um navegador português, não seria, para Erasmo, o irmão de Moria (a Loucura)... Pois loucura foi também essa aventura por mares nunca dantes navegados, que um velho nas praias do Restelo condenou. Camões canta  -  como Ariosto e Cervantes e Erasmo e Morus, cada qual à sua maneira  --  essa força antiquíssima que é sopro sobre as velas da aventura e leva os nossos barcos até ao dantes nunca descoberto.... Todavia, nos caminhos do seu pensarsentir, nenhum deles nega a herança greco-latina da sua cultura, nem a força íntima da sua fé judeo-cristã, nem sequer o modo  --  que anseiam mudar, porque já o tempo  vai mudando  --  em que cavaleiros andantes se davam a uma causa.  Apenas querem dizer que, para que a antiquíssima loucura sobreviva, outra forma há-de achar que a torne viva. Hic et nunc, que o porvir a outros novos caberá. Meditava o português Luís de Camões: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança, /  todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades... Ligo sempre a primeira quadra deste soneto ao verso que começa outro, inspirado em Petrarca, que, muitos anos antes, também o pensoussentiu:Transforma-se o amador na cousa amada... E não deverá o cristão  -  que, na fé e na esperança, se deve ao amor  -  amar o futuro que desconhece e não lhe pertence? Sem ser cínico como o príncipe de Il Gattopardo, de Lampedusa, quando afirma que tudo deverá mudar para que tudo fique na mesma, pergunto se o amor não será sempre um risco assumido na liberdade da confiança, e nunca, nunca, uma teimosia sobre o que pretendemos ter alcançado e possuir... Se eu quiser conservar para mim  -   e conforme à circunstância em que eu mesmo me sinto conservado, o sopro desse amor que os sinais dos tempos me vão dizendo que está lá fora  --  não estarei a desmerecer da humilhação que Cristo a si chamou na sua cruz? Quererei permanecer em cativeiro? Ocorrem-me estes versos da elegia VI de Camões, que uma amiga portuguesa hoje ainda me lembrou: 

      Eu, Senhor, sou ladrão; tu, justo Rei;

      Pois como entre ladrões eu não padeço? 

      A pena a ti se dá do que eu pequei?

      Eu, servo sem valor; tu, sumo preço,

      em preço vil te pões, por me tirares

      do cativeiro eterno que mereço?

Assim se pôs o mundo às avessas. E  ensina a Loucura de Erasmo: O Sábio refugia-se nos livros dos antigos, e aí só aprende frias abstracções; mas o Louco, aproximando-se de realidades e perigos, ganha, penso eu, o verdadeiro bom senso.Dou-te, Princesa, uma mão cheia, mas sem qualquer loucura que, entre nós, pudesse parecer mal.

 

               Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

A força do ato criador

 

O Realismo da imaginação.

René Bertholoe a Nuvem com Superfície Variável III (1967)

 

‘Cada vez encontro mais relações entre o que faço e a realidade exterior.’, René Bertholo, 1958

 

Após uma breve e fecunda experiência informalista em finais dos anos cinquenta, René Bertholo (1935-2006) iniciou a partir de meados dos anos sessenta um universo de narração figurativa. Bertholo viveu durante alguns anos em Munique e em Paris (voltando definitivamente para Portugal em 1973), e aí estabeleceu contactos com as novas vanguardas, que permitiram a construção de uma obra baseada em experiências neo-figurativas. De facto foi já em Portugal que evoluiu para uma pintura de narração absurda, figurativa e que designou de realista. A importância do desenho como meio de expressão, neste conjunto de trabalhos, aproximou a imaginação do mundo real ao mundo concreto. As figurações que Bertholo pintava são designadas por inventários da realidade mas visavam alcançar efeitos que não são um espelho de uma situação social ou de costumes. Os inventários são realistas, segundo Bertholo, porque são uma interpretação da imaginação. Objectos e pequenas figuras povoam o espaço pictórico com uma obsessiva necessidade de preencher todo o espaço da tela – tal como se verifica na obra de Jan Voss. René expõe o seu pensamento múltiplo, indefinível, ilógico através de um desenho muito esquemático. Talvez a herança da action painting e do informal (através do trabalho de Pollock, Tobey e Twombly) tenha conduzido a uma acumulação de imagens, espalhadas por toda a tela, na ausência de centro e no preenchimento all over do quadro. Retirou também ensinamentos do automatismo psíquico como se de uma escrita se desenvolvesse, como se de uma paisagem se descrevesse e começou a fazer desenhos muito grandes cheios de pequenas coisas. Estes desenhos fazem lembrar uma espécie de banda desenhada. Signos dispersos, impossíveis de ordenar. O que conta é a memória e para Bertholo essa expressão saturada era o mais fiel modo da reconstituição do seu pensamento.  Foi a utilização sucessiva do desenho que lhe permitiu atingir o verdadeiro realismo e descobrir o sentido do mundo, através de um fazer manual, lento e único. 

A partir de 1966, René Bertholo iniciou a construção de modelos reduzidos (Beau Fixe, A noite e o Dia, Sol de Percurso Linear, Três Aspectos do Céu), pequenas máquinas com motor, recortadas em chapa de metal. Engenhos mecânicos dotados de movimento. O movimento tornou-se a expressão da temporalidade, entendida como repetição infinita de acções e ciclos, que em nada alteram o contexto onde se apresentam.

A ideia de movimento fascinou Bertholo desde os 17 anos – altura em que descobriu os filmes de animação do Norman McLaren. E tal como nos seus desenhos, as formas destes objectos mecânicos eram muito esquemáticas.

Os objectos perdidos, flutuantes que pintava como sendo inventários da realidade, tornam-se objectos mecânicos, que têm uma vida própria e eterna – tal como se a imaginação de Bertholo se materializasse e libertasse,  pois os objectos têm uma vida autónoma e independente e não precisam do espírito criador para se mover. São exactidão, ingenuidade, entretenimento e utilidade lúdica. Estes objectos assemelham-se a brinquedos, a paisagens/memórias portáteis que também se movem segundo ciclos lentos, permanentemente prontas a ser contempladas e prontas a ser consumidas. São pinturas literalmente vivas.

René dedicar-se-ia aos modelos reduzidos até 1975, ano em que retorna à pintura não abandonando mais este registo. A concretização do movimento, de início começa por ser repetitiva, porém Bertholo desejava aproximar-se de tal modo dos fenómenos naturais e imprevisíveis que ansiava conceber objectos de movimento totalmente aleatório. De facto, num dos últimos objectos de nuvens de superfície variável e movimento aleatório, construiu um chassis que não se vê de frente e que permite uma maior ilusão de flutuação.

Acerca da Nuvem com Superfície Variável III, Bertholo escreveu no Relatório de Trabalho de Janeiro-Março de 1969 (a propósito de um subsídio que beneficiou do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian): ‘ As formas resultantes da sobreposição dos quatro elementos que constituem a nuvem são infinitas’. Através da série Nuvens, Bertholo concebe um programador aleatório que lhe permite gerir a indeterminação do movimento das formas no tempo (recortadas em chapa de alumínio), através de um dispositivo de interrupção e conexão da corrente eléctrica incorporado no motor. O modelo de Nuvens que se segue será aparelhado a uma chapa azul que fará de fundo, fazendo clara referência a um mundo infantil das formas recortadas e das cores vivas. 

 

Ana Ruepp

É O AMOR UMA CANÇÃO DE EMBALAR…

 

 

Minha Princesa de mim:

 

      Não será o amor eleito

      ligeiro no coração,

      e não há amor perfeito

      quando diz sim e ora não...

 

      Verdade vive no peito

      sem mentira ou condição

      amor é jeito sem jeito,

      inteirinho nesta mão...

 

      Nasce igual ao que morrer,

      morre igual ao renascer,

      é fé teimosa e esp´rança

 

      e é sua força a fraqueza

      da graça tão indefesa

      de um sorriso de criança...

Se é o amor assim tão simples, como poderá, já tarde, parecer-nos  tão difícil? O amor é tão natural em nós que, quando nasce, mesmo surpreendente não nos surpreende, e quanto mais apaixonado tanto mais ingénuo... É genuinamente feliz, alegra-se e sorri como menino no berço, quando gosta do som de uma voz sem saber porquê nem de quem. Mas logo se apaixona pela voz de sua mãe, porque a sente presente, muitas vezes repetida e sempre de coração novo. E a mãe que, na sofrida dor do parto o libertou para uma nova vida  --  que será cada vez menos dela  --  deixa-se agasalhar pelos mimos dessa criança, como aquele mendigo que, diz-nos frei Luís de Sousa, visitou frei Bartolomeu dos Mártires, ainda pequenino, ao colo de sua mãe: Encarou no pobre todo risonho, todo alegre, debatendo-se pera ele, e festejando-o com as mãozinhas, boca e olhos, como se fora um dos mais conhecidos de casa; e enquanto o pobre não se despediu, não desviou os olhos dele, nem deixou de o estar agasalhando com aquelas inocentes mostras... Será que a naturalidade do amor em nós se perde  --  ou se torna difícil amar  --  quando se perde a inocência, como Adão e Eva descobrindo-se nus quando expulsos do paraíso? Será que a pulsão de Eros elimina Psyche? Conta-nos o mito greco-romano que, ciumenta da beleza inigualável da princesa (outra Princesa!) Psyche, Afrodite (Vénus) envia seu filho Eros (Cupido) para a induzir a amar e entregar-se a um homem reles. Mas, desta feita, Cupido não atira setas de amor fatal, é ele mesmo quem se apaixona e convence a princesa a deixar-se visitar por ele todas as noites, impondo todavia a condição de esta nunca lhe ver o rosto. Assim será, até quando as diabólicas irmãs de Psyche a convencem a, armada de punhal,surpreender Cupido que dorme, iluminando-lhe o rosto com uma lamparina. Mas desta cai, sobre o ombro de Eros adormecido, uma gota de azeite, que o desperta. Foge então a filha de rei, persegue-a o filho de deuses (Hermes=Mercúrio e Afrodite=Vénus), mas só ao cabo de muitos trabalhos e peripécias, depois de vencidas por Psyche as provas que a deusa do amor lhe impunha, os dois amantes se reúnem sob a protecção de Zeus=Júpiter, que os casa. Vejo a cena da surpresa de Psyche a Eros=Cupido, como, cerca de 1812, Andrea Appiani pintou para a Villa Reale, em Monza. E logo me ocorrem representações da morte de Marat, apunhalado,em 1793, na banheira onde escrevia, por Charlotte de Corday d´Armont, que desde David a Münch, tantos artistas pintaram e eu tão bem reconheço no Le Meurtre, desenho a lápis de Picasso (1934), com esta pergunta: poderá ser assassino o amor? Ou já não será amor o que destrói ou quer desfazer, porque quer possuir e a posse possível não satisfaz, ou vingar-se de um abandono, ou simplesmente largar e esquecer? Pensossinto: há sempre violência quando o amor é "política"... Mas amar não será, antes e depois de tudo, pelo esforço quiçá difícil de uma confiança que se entrega, a procura de um regresso à inocência perdida? Escuto, na voz tão linda de Montserrat Figueras essa canção de embalar de um anónimo português, recolhida na aldeia beirã de Monsanto:

      José! embala o Menino

      que a Senhora logo vem...

      ó,ó,ó,ó...

      foi lavar os cueirinhos

      à fontinha de Belém...

      ó,ó,ó,ó...

 

     Quem tem o nome de mãe

      nunca passa sem cantar

      ó,ó,ó,ó...

      quantas vezes ela canta

      com vontade de chorar!

      ó,ó,ó,ó...

 

      Vai-te embora passarinho,

      deixa a baga do loureiro...

      ó,ó,ó,ó...

      deixa dormir o Menino

      que está no sono primeiro!

E não resisto a transcrever-te trechos de um comentário da grande soprano catalã, mulher e mãe, sobre o seu disco de canções de embalar: Já desde tempos imemoriais, a canção de embalar existe como uma das formas musicais de maior importância, presente, sem excepções, em todas as comunidades humanas...   ... A mãe ajuda a criança, para quem, a partir da sua vinda para o mundo exterior, tudo é novo e pode meter medo. A criança reconhece na canção a voz da mãe, a sua presença, o seu gesto...e na intimidade do momento cria-se um espaço de profundos símbolos ancestrais, onde a música e a palavra são vínculo de pura emoção e autenticidade. Desta forma se estabelece o primeiro diálogo, o primeiro conto, o ensino primário de tradições, vivências e culturas que se converterão, com o tempo, em parte essencial de uma memória colectiva...   ... Mas acima de tudo, há na mãe, no pai, nos irmãos mais velhos ou na avó que cantam, o desejo de dar o melhor de si mesmo, que não é mais do que um acto de amor e, deste modo, a criança começa a viver a essência da vida... Creio que, se o erotismo é, como diz Georges Bataille, a afirmação da vida até na morte, a canção de embalar é uma canção de despedida de si para dar vida e viver no outro. Sobrevivemos amando, isto é, desistindo de nós e transmitindo-nos. Como até já és mais do que crescidita, deixo-te uma canção, não para te embalar, mas para te fazer rir a sesta:

      Saiu a saudade à rua

      e eu deixei-a passear...

      Pois se essa saudade é tua,

      Como a posso cativar?

 

      O querer bem não se prende,

      nem possuir é amar.

      O amor não se arrepende

      de livremente se dar...

 

      Nem qualquer graça teria

      uma amizade qualquer,

      um amor a uma mulher

 

      sem a simples alegria

      de se soltar na confiança

      com que sente uma criança.

Dou-te uma mão a dizer que ninguém vive só para si.

 

          Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

Eduardo Lourenço

 

Um enraizamento da alma antiga numa temporalidade tão concreta como um rio.

 

As ideias, sim, as ideias são formas acima de tudo que excluem o tempo. E na melancolia, como dizia Shakespeare, encontramos a tomada de consciência de um tempo «saído dos eixos». E direi que os poetas foram os primeiros que se deram conta da melancolia, pois como dizia Eduardo Lourenço, tinham perdido a hora do homem no relógio de Deus.

Assim, e por assim ser, também um poema de Álvaro de Campos pode sentir-se em registos diferentes:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

(…)

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se os dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

E num dos belos poemas de V. de Milosz

Ce sera tout à fait comme dans cette vie! Le même jardin.

Profond, profond, obscur. Et vers midi (…) réunis là et qui ne savent les uns des autres que ceci: qu’il faudra s’habiller…

Diríamos que afinal a melancolia é demasiado heterogénea para fazer nascer de imediato a consciência de que temos de nos saber livrar de uma grande parte de nós mesmos.

O empenhado despojamento de um Outono é essencial, de tal modo que, a condição humana, nos olhe finalmente, e nos faça saber pelo olhar, que, o espelho do tempo, é seguro pelas nossa mãos, defuntas de esperanças, de amores, de anseios, de memórias mais vivas que a vida presente, de horas que fogem da fonte originária.

E ainda assim a melancolia não é na essência a expressão de uma derrota.

É verdade que tudo está ligado, que é preciso assumir a consciencialização dessa transversalidade, mas o nosso sistema decimal impede-nos de pensar em zeros, apesar de estarmos sempre no grau zero de qualquer coisa; apesar de podermos, a partir daí, encontrar  um enriquecimento, descendo às caves pitagóricas dos saberes secretos. Depois, com poucas forças, mimar a melancolia, a tal, tão concreta como um rio que desce às raízes da alma e como a existência de uma ilusão é uma realidade:

«Dimitri era aquele rapazinho com quem o jovem Tolstoi trocava radiosas confidências ; porque uma ilusão age sobre todo o universo que a cerca.»

Porque nadar entre os patos no tanque do quintal é também uma forma circular válida às regras da procura.

E um dia, será em parte melancolia, o dia, que nos leva conforme a natureza do por onde ando?

O dia em que sorrir não é coragem nem exílio, mas antes aproximação ao que enfim nos foi prometido. Um acreditar que a caça não morre no ninho.

Hoje, a carta que te escrevo, Eduardo, é esta. Uma maneira de agarrar o tempo com tudo lá dentro para no-lo restituir.

Uma carta que se permite uma desprofissionalização das palavras e que por ave te envio.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Junho 2014

GARRETT, ATOR

 

O título desta evocação não tem nada de ambíguo, nem deve ser lido à luz da indiscutível ”teatralidade” da vida publica de Garrett, essa sim, em si mesma indiscutível, naquela simbiose de sentimento, excessos e capacidade, por vezes mesmo genial mas sempre veemente, de expressão e manifestação de ideias e sentimentos: nisso foi Garrett um grande exemplo e uma excecional referencia iniciática no romantismo português – e tanto na criação poética e literária, como na atividade publica e politica, mas também na vida privada e sentimental…
Em tudo isto , de facto, Garrett deixou uma marca excecional. E teve sempre disso consciência, não hesitando nunca no autoelogio, quantas vezes aliás merecido, ou da autocomiseração, essa nem sempre adequada. Lembramos, como exemplo a passagem chave o Relatório sobre a Reforma do Teatro português, datado de 12 de Novembro de 1836, encomendada por Paços Manoel, e onde Garrett, dirigindo-se a D. Maria II, não hesita em se autoelogiar, de forma certamente justa mas insólita num texto oficial: “Valetudinário e achacado de corpo e espírito, que ambos quebrei no serviço de Vossa Majestade, e pela santíssima causa da liberdade da minha Pátria”…
Mas recuemos 15 anos. Em 29 de Setembro de 1821, Garrett estreou e interpretou no Teatro do Bairro Alto em Lisboa o “Catão”, de sua autoria, num espetáculo de amadores que viriam a ser, mais tarde, figuras de relevo na vida politica e literária portuguesa. Garrett interpretou o papel de Brutus, filho de Catão ,“diante de um publico exclusivamente composto de quanto tinha então de mais brilhante a sociedade e a corte de Lisboa (…) e obteve a mais completa ovação que ainda conseguiu talvez nenhum dos nossos poetas”… Ora, quem faz estes elogios é o próprio Garrett!
Só que essa récita ficou marcada na vida do autor, para o bem e para o mal, pela presença, no publico, da jovem Paula Midosi, então com 13 anos de idade, e que viria a casar meses depois com Garrett , casamento que como se sabe acabaria mal.
Garrett volta a intervir como ator nada menos do que na estreia do “Frei Luis de Sousa”, em 1843. E não, num personagem menor, que aliás a tragédia em rigor não comporta..
A peça teve a sua primeira representação na Quinta do Pinheiro em Sete Rios, então arredores de Lisboa. E também aqui se reuniu para o efeito um grupo de amigos, ilustres na politica e na sociedade da época. Garrett interpretou nada menos do que o Telmo Pais, presume-se com dificuldades de locomoção, pois em março daquele ano sofrera uma acidente que o imobilizou durante semanas com uma luxação na perna.
Foi um Telmo Pais ainda um pouco coxo, o que valeu elogios amigos e irónicos de Alexandre Herculano, com quem Garrett convivia desde o exílio de Londres – mas aí não consta que Herculano tivesse podido assistir á estreia do “Catão”!


DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

The free speech rule, 2014

O jornalismo não é crime. Os jornalistas sentenciados no Egypt a penas de prisão de sete e dez anos não são criminosos. A mensagem é afirmada pelo pai de um dos condenados no Cairo por notícias ditas agora como assistência à Muslim Brotherhood entretanto ilegalizada. — Dans un État libre, les langues doivent aussi être libre. O punido auxílio a terroristas consiste em informação da Al-Jazeera sobre um partido político eleito por voto popular e depois destronado em golpe militar. A extremada leitura não deixa de surpreender mesmo no final da Arab Spring. No Old Bailey condenam-se também editores, under the common law, mas por escutas, conspiração e abuso da liberdade formalmente outorgada na 1689 Bill of Rights. Name them, shame them! O All England Club acolhe os 2014 Wimbledon Tennis Championships. The Queen visita Belfast.

A temperatura da época sobe em Wimbledon com altas expetativas em torno de Mr Andy Murray. Aquém dos courts de Southwest London e sob esplêndido summer sky há paradoxais eventos que estremecem o futuro. A violência da sentença egípcia que faz do jornalismo um crime é algo que tem alvos no West e um destes serão prevenidos turistas que assim desvia do seu notável património universal, como modo de dizer claro «não» à injustiça. O poder nu e cru é brutal. Com tronos finos, o método é outro: despede o atrevido/a e cuida que não encontre local onde escrever. Quando o delinquente de opinião persiste, pune com igual estória conveniente sobre ser terrorista, infame ou afim. Os falcões de ocasião anseiam por prova de força para mostrar as garras. Prender o mensageiro é fácil, mas cara sai a ofensa a princípios que alicerçam a saúde das instituições e a prosperidade das comunidades. Sem espírito crítico, o deserto avança com seres reptilizes que cedo ou tarde digerem as aves da capoeira.

 

A confusão em torno da freedom of speech tem outras caricaturas. O inenarrável phone-hacking trial envolvendo a News International de Mr Robert Murdock acaba com vereditos de inocência e culpa dos editores, mais um pedido de desculpas pelo Prime Minister. Mr David Cameron apresenta a “full & frank apology” por empregar no No. 10 um dos responsáveis pela obtenção de notícias à custa de escutas a celebridades e outros. Mr Andy Coulson, o seu spin doctor vindo do extinto tablóide News of the World, era acusado de malfeitorias várias no que é designado em Fleet Street como an open secret e é condenado pela cultura do by-all-means. Um relatório hoje mesmo divulgado na House of Commons pelo Political and Constitutional Reform Committee inscreve a necessidade de “more clarity” no papel e poderes do PM, para útil accountability.

O legado da turbulência entre UK e Ireland continua sob os cuidados do Palace of Buckingham. The Queen e o Prince Philip viajam a Belfast, recordando atos de Victoria em 1900 e George V em 1911. Na agenda de Her Majesty pontua um encontro com os Irish leaders e representantes da sociedade civil em civic lunch. Mais, quando o impossível se torna possível: Elisabeth R entra numa notorious Victorian prison, a Crumlin Road Jail, acompanhada de alguns dos outrora law breakers lá detidos por ligação ao IRA como o First Minister Mr Peter Robinson ou o Deputy First Minister Mr Martin McGuinness.

O gradual regresso à normalidade nos laços entre nações com tanto de comum e também feridas profundas geradas durante 200 anos de disputas e terrorismo à mistura, suscita imensa esperança. — Tancredi lives: If we want things to stay as they are, things will have to change.

 

St James, 24th June

 

Very sincerely yours,

 

V

A VIDA DOS LIVROS

 
de 23 a 29 de junho 2014

 

No centenário de Julián Marias (1914-2005), discípulo de Ortega y Gasset e um dos pensadores espanhóis mais influentes da segunda metade do século XX, recordamos a sua obra «Acerca de Ortega» (colección Austral, 1991), que nos evidencia um rico diálogo filosófico de grande pertinência atual.

 

 
Foto «ABC».

 

CULTURA COMO MOMENTO DE CLARIDADE

«Cultura não é a vida toda, mas só o momento de segurança, de firmeza, de claridade». A afirmação é de Ortega e é recordada por Marías num dos textos em que invoca o seu mestre, acrescentando que «o homem tem uma missão de claridade sobre a terra, leva-a dentro de si, sendo a raiz mesma da sua constituição». A afirmação tem a ver com o método do mestre ligado à «razão vital»: «a razão sem a qual não é possível a vida, porque ela é a própria vida, a conexão vital das impressões em que as coisas da minha circunstância se me apresentam». De um modo persistente, claro e sistemático, Julián apresenta-nos a figura de alguém que o marcou decisivamente, porque lhe apresentou de outro modo o mundo da vida e o lugar decisivo das pessoas como seres de relação. Enquanto Unamuno apelava à imaginação, Ortega ia até à razão vital. Julián Marías procurou, deste modo, seguir essa continuidade e essa contradição, no sentido da compreensão filosófica. Nesse sentido, estes textos de memórias são um confronto e uma troca permanente entre o mestre e o discípulo. Sentimos a essência do processo de aprendizagem. «Dou para que me dês». Não posso aprender se não estiver disponível a dar-me para receber, a tornar-me recetor, capaz de conhecer e de compreender. «Ortega tinha de ganhar a minha estima e a minha adesão – a nossa, melhor dito -, cada dia, em cada lição, em cada tese enunciada. O entusiasmo da véspera não servia para o dia seguinte: tinha que fazer as suas provas, perante duras, juvenis mentes inexoráveis». A ideia de combate estava bem presente, por isso havia que recorrer à metáfora do naufrágio: «a consciência do naufrágio, ao ser a verdade da vida, é já a salvação. Por isso (dizia Ortega) apenas acredito nos pensamentos dos náufragos. É preciso convocar os clássicos perante um tribunal de náufragos, para que ali respondam a certas perguntas perentórias que se referem à vida autêntica».

 

UMA VIDA PARA PENSAR E AGIR

Nascido em 17 de junho de 1914, em Valladolid, Julián Marias formou-se na Universidade de Madrid (1931-1936), onde foi discípulo de Xavier Zubiri, de Garcia Morente e de Ortega y Gasset. Inclinado inicialmente para os estudos científicos, muito jovem optou pela literatura, história e filosofia, que prevaleceram sobre as investigações no domínio da Biologia. Ao ter começado a frequentar as aulas de Metafísica de Ortega, sentiu-se intensamente atraído pelo pensamento filosófico, seguindo os trilhos reflexivos do já celebrizado autor de «A Rebelião das Massas», que o jovem estudante considera como «um modelo de intensidade intelectual, de rigor de pensamento, de beleza de expressão, que nos parecia a forma mais perfeita que se podia alcançar». Em 1948, fundaria, aliás, com o seu Mestre, o Instituto de Humanidades de Madrid, não mais abandonando uma persistente ação pedagógica em prol do conhecimento da obra do grande filósofo espanhol. Logo em 1934, o jovem pensador colabora na revista dirigida por José Bergamín, «Cruz y Raya», sobre a ideia de autenticidade: «a palavra autenticidade, que tantas vezes é apenas uma palavra, ia sendo para nós o santo e a senha das nossas vidas. O intelectual não pode mentir, não tem o direito de mentir; não pode enganar-se a si mesmo, nem em amizade, nem em ciência, nem em política, nem em amor; não pode ser infiel à vocação, essa voz que nos chama sem nos forçar, que nos exige sermos livres». Finda a guerra civil, Ortega escreve ao seu discípulo: «Foi V. o único que acertou na tática para estes tempos: fazer, fazer, fazer». Em 1941, publica «Historia de la Filosofia», que se torna uma obra de referência. Vários são os seus livros relevantes que se seguem como: «Introducción a la Filosofía», «Filosofía española actual», «Ortega y la idea de la razón vital», «El método histórico de las generaciones», «La escolástica en su mundo y el nuestro», «Antropología Metafísica» y «Breve tratado de la ilusión». A militância republicana de Marías, a sua atitude de grande coerência cívica, afastá-lo-ão de uma carreira académica, como teria merecido, pela qualidade da sua obra e do seu magistério. No final da guerra civil foi preso durante três meses, em virtude de uma falsa denúncia, tendo sido libertado em agosto de 1939. A impossibilidade de ensinar em Espanha na Universidade levou-o a dar aulas como professor convidado em Universidades norte-americanas como Harvard e Yale, mas também em Porto Rico, mantendo uma colaboração regular na imprensa, com especial assiduidade no jornal «ABC». Em outubro de 1964 seria eleito sócio de número para a cadeira «S», antes ocupada por Wenceslao Fénandez-Florez, na Real Academia Espanhola, tendo feito o discurso de ingresso, a 20 de junho de 1965, sobre «A realidade histórica y social do uso linguístico». O seu grande amigo Pedro Laín Entralgo costumava referir-se a Julián Marías na sua tripla condição de mestre da liberdade, pensador da circunstância e escritor que ensinou os espanhóis a viver como homens livres.

 

UM CULTOR DA DIGNIDADE PESSOAL

Os testemunhos que nos chegam sobre a vida de J. Marías revelam-nos alguém que, com grande serenidade, nunca deixou de pensar e de fazer pensar. Por isso, acreditava na liberdade como algo de natural e necessário. Foi talvez por isso alvo de todas as incompreensões, à direita e à esquerda. De um e de outro lado, houve quem desconfiasse da sua independência de espírito, insuscetível de se tornar dóssil ou previsível. «O homem tem de fazer sempre e em cada instante alguma coisa (dizia ainda Ortega, recordado por Marías) justamente para continuar a ser o mesmo; e essa tarefa não lhe é imposta pelas circunstâncias, como o reportório dos seus discos é imposto ao gramofone ou a trajetória da sua órbita a um astro, mas tem de decidir por si mesmo em cada instante e em vista das circunstâncias o que vai fazer, ou seja, o que vai ser depois, no futuro». Javier Marías recorda que, nos diálogos intensos que havia em casa, o primeiro pensamento não lhe bastava, havia sempre que passar ao seguinte. Havia sempre que se obrigar a maior exigência. O filho de Julián diz que «para um jovem impaciente isso era um pouco exasperante. Mas, à distância, é uma coisa bastante inesquecível. Ensinava-nos a pensar. Tentava sempre que continuássemos a pensar». Apesar das desconfianças e perseguições ficou em Espanha, afirmando que todos saíssem o país ficaria abandonado. Deste modo, ficou e viveu um exílio interior, em nome de um país que precisaria de ser «inteligível». Diz a lenda, que, em pequeno, Julián sonharia ser pirata, de facto ficou longe desse desejo. Nunca se cansou de ensinar a pensar e de pensar, que é uma arte bem distinta, salvo na ideia de se aventurar na incerteza da vida, perguntando-se sempre como fazia Leibniz: porque somos em vez de não ser?

 

Guilherme d’Oliveira Martins

A QUEM IREMOS, SE SÓ TU TENS PALAVRA…

 

Minha Princesa de mim:

 

Soltaram-se-me do peito, para a memória, nessa hora em que a noite madruga e os monges antigos rezavam matinas, estes decassílabos que, na manhã nascente, te escrevo, em forma de soneto (?) que não mexi, porque apenas quis dizer-to: 

      Há, em nosso sofrimento mais sentido,

      um padecer mais que a paixão padece;

      que, em tanto sofrer, já não é sofrido

      o que de nós já não se compadece..

 

      De tanta dor a mágoa se adormece

      e tão serena fica, já confiante

      em que não dói o que doer parece,

      que em mim me quedo, de mim tão distante

 

      que só de mim a mágoa me aproxima,

      ou de mim me leva, na hora prima

      dessa manhã que já não quero ver... 

      

      Até que o claro azul e a luz do sol

      se acordem no canto do rouxinol

      e o mistério me faça renascer! 

Há dois mistérios na vida: o da vida que está em todas as vidas e há milénios tentamos desvendar; e o mistério da nossa própria vida, desta que cada um de nós em seu peito escuta... Esta em que, simultânea e continuamente, somos sujeito e objecto do nosso pensarsentir. Que nos alegra e de que damos graças; e nos dói muito, por ser e não ser nossa ao mesmo tempo. A tal ponto que nem sabemos se só no nosso tempo se situa. O drama do ser humano, minha Princesa que até camponesa de mim poderias ser, é a consciência antecipada da morte. No ciclo circular da vida  --  como em todos os seres do universo vemos  --  tudo, tudo, nascendo, crescendo, minguando, morrendo, se transforma... Pode o instinto vital comandar combates e afastar ameaças  --  não há animal ou planta que, na hora de ser digerida, não tente adiar o seu regresso  --  mas só nesse momento se decide a sorte final...  E, mesmo então, esse ser se curvará ao jugo de uma ordem ou destino, sem sequer imaginar que se submete ao fado ditado por deuses desconhecidos. Só aos homens tal fado ocorreu e, por isso mesmo, de muitos modos o representaram e interrogaram. Pus-me hoje à escuta de lieder do Schubert, e caí, inevitavelmente, no Der Tod und das Mädchen, com poema de Matthias Claudius: Vorüber, ach, vorüber,! - Grita a menina moça à morte. Vai-te e não me toques, tão nova ainda sou! Ao que a morte responde: Ich bin nicht wild, sollst sanft in meinen Armen schlafen! Não sou cruel, em meus braços poderás docemente dormir! Será o compositor, ou o seu poeta, que procura iludir-se ou ultrapassar a morte, ou será esta que subrepticiamente nos alicia? Ou será que todos, todos nós, simultânea e contraditoriamente, a repudiamos e desejamos? Em cada um de nós, que distância separará o mártir do suicida? Será só a diferença entre a justificação e o cansaço, ou entre a esperança e o desespero? Ou antes será a renúncia a compreender o mistério da nossa mesma vida? Há quem anseie por morrer, para esquecimento de si e sua circunstância, ou por imolação própria  a um deus, uma causa, uma promessa. E há quem diga que morrer será desvendar o anseio de que o ser humano tem consciência... No sofrimento que incessantemente me interroga, não quero dar a mão à morte: por doce esquecimento que ela seja, é sempre escura, tenebroso nada. Não tem mistério algum, essa morte de que falamos. Tem fatalmente uma qualquer data marcada no meu tempo. Mistério, sim, é esta vida em mim, que não prenderei, para que um dia seja também minha. Dou-te uma mão cheia de liberdade.

 

          Camilo Maria

A FORÇA DO ATO CRIADOR



A Ausência do Corpo.

Lourdes de Castro e a Sombra Deitada (1970).

 

‘We name ‘soul’ to be a ‘thin insubstantial human image, in its nature a sort of vapour, film, or shadow… mostly palpable and invisible, yet also manifesting physical power.’, Edward B. Taylor, Primitive Culture, vol.1 (London 1871)

 

Lourdes de Castro (1930) em 1957 optou por sair do país, vindo a beneficiar de uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian. Após estadia em Munique, fixou-se em Paris. Juntamente com René Bertholo fez parte do grupo KWY.

O seu trabalho em Paris aparenta um registo abstraccionista muito próximo do registo dos expressionistas abstractos. Porém a partir de 1961 decidiu abandonar os suportes tradicionais da pintura. A sensibilidade e abertura ao trabalho dos Nouveau Réalistes levou Castro a coleccionar objectos, a dispô-los em caixas, actuando sobre eles, uniformizando-os com uma só cor (por exemplo ao usar o prateado, Lourdes conferia de novo valor aos objectos desaproveitados). Os objectos são de uso corrente, são bens de consumo desperdiçados, são memórias da vida quotidiana. Ora o cuidado pela colecção de objectos, aparentemente sem valor, e a necessidade de camuflagem trouxeram um aprofundar da presença/ausência desses objectos – trouxeram o interesse pelo trabalho da sombra.

O contorno, a silhueta, a sombra passaram a ser a sua temática, o modo de representar o mundo.

A partir deste tema Castro desenvolve sombras recortadas, sombras projectadas, teatro de sombras, sombras bordadas sobre lençóis – vários modos de registar o fugaz, o efémero, o imaterial, a fuga à representação. O fundo e a figura em silhuetas esvaziadas.

Toda a sua obra futura se definiu a partir desta fixação de silhuetas em tela, em plexiglas, em lençóis… Aliás o plexiglas permitiu-lhe, a partir de 1964, criar objectos silhueta com sombra própria, favorecida pela sobreposição de placas transparentes mas coloridas. O contorno estabelece-se assim numa dimensão imaterial – a sombra da sombra. 

Castro desenvolve outras acções, para além do domínio da pintura, relacionadas com o teatro e a performance. Entre 1972 e 1973, em Berlim, decide dedicar-se exclusivamente ao estudo e aperfeiçoamento do teatro de sombras (a que se dedica a partir de 1966). O teatro de sombras, inspirado na tradição chinesa e nos happenings, efectivou-se a partir de espectáculos como As Cinco Estações (1976) e Linha do Horizonte (1981), feitos em colaboração com Manuel Zimbro.

A obra de Lourdes Castro, na primeira fase dedicada aos objectos e aos recortes, define uma longa reflexão sobre o problema da sombra na pintura. Sombra, ambiguidade, eco, vazio, desmaterialização, temas igualmente desenvolvidos por Jorge Martins, Ana Vieira, Noronha da Costa e Cruz Filipe. 

Em 1968, Lourdes de Castro começou a bordar sobre lençóis contornos de sombras, tendo abandonado  totalmente o suporte de parede para passar a fazer algo muito mais relacionado com o quotidiano, investindo em objectos que questionavam o estatuto moral e metafísico da obra de arte. A actividade iniciada por Lourdes de Castro abre-se a uma prática mais artesanal que se aproxima do homem comum. As sombras deitadas, em 1969, aparecem sobre a cama, em lençóis estendidos, sozinhas ou acompanhadas. Num registo intimista existe uma clara vontade de Castro em conciliar o seu trabalho com o dia-a-dia.

É a desmaterialização do objecto, que passa a ser nada. É paradoxo porque a presença do objecto aconteceu outrora e não faz mais parte do momento da percepção, ficando a dúvida se a memória é algo que se possui ou algo que se perde.

Lourdes de Castro revela o banal, mas altera o conhecimento que se tem sobre ele porque no lençol não está um corpo deitado está antes o carimbo desse corpo, que outrora fora presença e que agora se tornou ausência. É tão subtil o gesto que até pode passar despercebido. A sombra traz a frieza, a indiferença, congelando um momento, que fixo não se distingue – muito no seguimento das obras de Duchamp e neo-dadas. O elemento que se regista é o irreal, o impalpável. As situações eleitas são tão familiares que coincidem com vida. 

 

Ana Ruepp

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