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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


vista nocturna de Kobe, 15 anos depois do terramoto de 1995 que destruiu grande parte da cidade. 

 

4. O SAIGAI KUNI

 

Com alguma frequência se referem os japoneses à sua terra chamando-lhe saigai kuni ou país dos desastres. Todos recordamos o bombardeamento atómico de Nagasaki e Hiroshima, o terramoto de Kobe em 1995 ou o grande terramoto e tsunami dito de Fukushima com consequências ainda imprevisíveis. Sabemos também que, em 1923,um jishin (tremor de terra) destruiu Tokyo e Yokohama e matou mais de 100 mil pessoas... Desde que se faz história de sismos, registaram-se mais de 500 fortes terramotos no arquipélago nipónico; só entre 1880 e 1990,deram-se 23 deles,nas áreas de Tokyo,Yokohama,Kobe,Kyoto e Osaka -- alem dos mais recentes -- com intensidade superior a 6 na escala de Richter. Além dos jishin, temos os kaji (incêndios), os kazan (vulcões) e outros saigai designados por palavras hoje entradas no vocabulário internacional: taifu (tufões) e tsunami [maré-onda]. Nada disto impediu o Japão de se tornar na grande potência económica que é, alimentando uma população de 125 milhões de pessoas,90% das quais se consideram "classe média"... E também já todos vimos,na TV, a calma e a fortaleza de alma com que as populações sinistradas têm reagido,se têm organizado e vão recuperando. Não esqueço a imagem daqueles desalojados que,no seu abrigo de fortuna mantêm tudo limpo e até separam escrupulosamente o lixo para reciclagem... Porque são eles assim? Que cultura,que valores os sustentam? Sabemos que os mitos fundadores de uma identidade comunitária, da fé, da solidariedade e da ética dos seres humanos que nela se reconhecem, são invenções ou projecções transcendentais do seu pensarsentir e da respectiva definição. Talvez por isso finalmente existam, com raízes profundas, na alma das gentes. Para entendermos a história e a mentalidade japonesas enquanto, respectivamente, genealogia e representação de uma entidade nacional, e enquanto olhar sobre si e os outros, isto é, como atitude perante a minha relação de mim à minha circunstância, teremos de prestar atenção a três temas centrais ao discurso cultural nipónico:

       1. o mito da origem divina do Japão e a continuidade da sua linhagem imperial, descendente da deusa solar Amateratsu;

       2. o mito da uniformidade étnica do povo japonês;

       3. a consequente identidade única da cultura japonesa, que explica como e porquê ela não é vulnerável às influências externas, antes as assimila e japoniza.

O mito da linhagem imperial e do seu carácter divino levou milhares de jovens pilotos japoneses a sacrificarem as vidas em missões kamikaze, ataques aéreos suicidas, gritando Tenno heika banzai!, longa vida ao Imperador! E foi, durante um milénio e meio, o esteio da unidade da nação e da legitimidade do poder político. Mesmo que este não tivesse sido, ao longo da história, as mais das vezes, exercido pelo imperador, a este iam os sucessivos governantes buscar a legitimação. Só a Constituição de 1947, imposta pelo ocupante americano, separará a Religião do Estado, e fará do Imperador um chefe de estado simbólico, não já o descendente directo da deusa Amateratsu. Antes, a Constituição de 1889 (Meiji) , embora reabrisse o país ao cristianismo e respeitasse o budismo, fizera do shintoísmo a religião litúrgica do estado. O mito da uniformidade étnica ignorou durante séculos o povo Ainu, provavelmente os autóctones mais antigos do Japão. E gerou a cultura da diferença e da diferenciação, ou seja, enquanto afirmação de facto e imposição de acto. Esta atitude marcará o tempo e o modo de todos os encontros, aberturas, reclusões, curiosidade, desconfiança, simpatias e animosidades do japonês relativamente ao estrangeiro, o de fora, o gaijin. Parece-me interessante inserir aqui um texto de Wenceslau de Moraes, intitulado "Os selvagens cabeludos" : Não abundam em geral, no japonês, barba e bigode; o imberbe, aos vinte, aos trinta anos, é vulgar. Os ainos, pelo contrário, são extremamente cabeludos; o rosto alvo, quase caucásico, desaparece numa floresta de cabelos; e as suas mulheres, naturalmente desprovidas de bigodes...pintam-nos!... Os ainos são, como é notório, o povo autóctone do Japão; ou, pelo menos, aquele que os japoneses encontraram estabelecido no solo que invadiram, travando com ele longa luta, indo escorraçando-o, pouco a pouco, para o norte, em cujos confins ainda hoje residem alguns raros indivíduos desta raça; na exposição de Osaka, há 4 anos,uns 3 ou 4 destes ursos humanos, figuravam em palhoças suas, como uma jaula... Ora, das circunstâncias apontadas, resultou, por parte dos japoneses, um natural desprezo pela barba, característica da tribo bárbara e inimiga, que venceram e humilharam. Quando os japoneses começaram travando conhecimento com os europeus, chamavam-lhes ketojin  -  os selvagens cabeludos  -  para diferenciá-los dos chineses, tojin  -  os selvagens. A denominação persistiu e ainda persiste; não sendo raro que os gaiatos, ao avistarem-nos em certos bairros pouco tolerantes, se ponham a gritar: ketojin, ketojin!... Posto isto, porque será que os missionários católicos franceses, estabelecidos no Japão, deixam em regra crescer longas barbas bíblicas, incultas?... Na moirama, onde a barba é venerada, percebia-se; mas aqui... E porque será que Wenceslau, feito japonês e budista, assim também deixou crescer a sua? A história mítica do Japão e suas origens  --  que até foi ensinada na Universidade Imperial de Tokyo (a célebre Todai ), entre outros pelo Prof. Hiraizumi Kiyoshi, fluente em várias línguas europeias e conhecedor das respectivas culturas e métodos científicos  - situa a fundação da nação no sec. VII antes de Cristo (por volta de 670 a.C.), por vontade e força do primeiro imperador: Jimmu. De tal não existem documentos coevos, nem outras fontes além da tradição oral. A escrita tendo chegado da China no sec. VI da nossa era, só no sec. VII (por volta de 620), o príncipe regente Shotoku ordenou a compilação das crónicas dos imperadores ( Tennoki ) e da história nacional ( Kokki ), ambas destruídas por um incêndio em 645. E só em finais do se. VII, o imperador Tenmu (40º na linhagem mítica, o actual sendo o 125º...) ordenou a compilação de lendas e narrativas pertencentes às tradições orais dos clãs e reinos do Japão antigo. Assim, o registo das coisas antigas ( Kojiki ) foi terminado em 712, e o mais volumoso registo das crónicas do Japão ( Nihon Shoki ) em 720. Cabem aqui mais de mil anos de história, e é com fundamento em relatos com tal credibilidade que se estabeleceu a fundação da nação por Jimmu e a respectiva data, bem como a sua origem em Amateratsu e toda a linhagem decorrente. Conforme se pode depreender de pesquisas arqueológicas recentes ( posteriores a 1945 ) e de fontes chinesas e coreanas ( ainda que muito discretas no tocante ao Japão), nos finais do sec.IV emergiu, dum conjunto de reinos fundados e geridos por povos oriundos do nordeste asiático, um reino mais poderoso: Yamato, que conseguiu afirmar a sua supremacia sobre grande parte do arquipélago nipónico. Os reis ( Okimi ) de Yamato eram hereditários e demonstraram a grandeza e primazia da sua linhagem, quer através de grandiosas edificações (montes tumulares, cidades capitais santuários), quer pela divulgação de mitos fundadores, como os posteriormente recolhidos nos Kojiki e Nihon Shoki. O culto dos antepassados, a veneração dos Kami ou espíritos, designadamente em matsuri ou festivais, celebravam-se ao abrigo do shintoísmo, religião animista, caminho dos deuses. Curiosamente, será com as reformas do regente Shotoku, em finais do sec.VI, introduzindo e adoptando o budismo e a escrita, que se iniciará o registo escrito da linhagem imperial, paralelamente à prática do budismo, em recintos próprios, nos santuários shinto.

 
Camilo Martins de Oliveira