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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


Memorial de Wenceslau de Moraes em Kobe.

 

5. SINCRETISMO RELIGIOSO

 

Começo este fascículo, transcrevendo um texto de Wenceslau de Moraes: O Shintô é, sem dúvida alguma, uma religião perfeitamente constituída, com os seus deuses, com os seus templos, com os seus sacerdotes, com os seus ritos; mas é ainda mais, talvez, um regímen de moral cívica, um código sentimental de brios nacionais e patrióticos. Alguém já o explicou por esta maneira: - " É uma coisa incorpórea como o magnetismo e indefinível como um impulso ancestral; constitui parte da alma da nação." Adoram-se os deuses criadores do Nippon e outras divindades protectoras, o sol, a lua, o solo pátrio, o soberano, todos os grandes servidores e todos os nomes ilustres do Império. O Budismo chegou aqui já profundamente modificado pelos chineses; mas, em contacto com o Shintô, mais se modificou ainda. O facto foi devido à perspicaz tolerância dos bonzos, que cuidaram de estabelecer afinidades entre as duas doutrinas, no propósito de evitarem antagonismos, melhor  -  de atraírem simpatias. E conseguiram-no: sucede que, na massa da população indígena, raros serão hoje aqueles que professem exclusivismo absoluto por uma das duas religiões; o povo vai orar aos templos do Shintô e vai orar aos templos de Buda, aprazando-se na companhia de todos os deuses. O primeiro acto de devoção, do japonês e da japonesa, em cada manhã, logo após a lavagem do rosto e da boca, é bater palmas e erguer as mãos em prece, saudando o astro da luz; a prática é puramente shintoísta; mas em seguida irá queimar incenso junto ao altar dos mortos, conforme os ritos de Buda. O japonês, quando menino, é levado ao templo de Shintô, onde o sacerdote, o kannushi, o abençoa; quando morre, o seu cadáver é levado ao templo de Buda, onde o sacerdote, o bonzo, lhe reza pelo espírito. Pode mesmo dizer-se que as duas crenças de certo modo se completam: o Budismo, religião toda de paz, de piedade, de abnegações, vindo acalmar os ímpetos de um credo fogoso e aguerrido, como é a crença de Shintô, formando-se assim a alma nipónica, tal como hoje a conhecemos,tão especialmente dotada de qualidades de eleição, capaz de todos os arrojos e capaz de todas as delicadezas. O Japão foi -  e para muitos continua sendo  -  uma paixão obsessiva de missionários cristãos. S. Francisco Xavier considerava-o uma seara privilegiada do evangelho, o próprio Camões afirma a crença na conversão do Japão, numa oitava do canto X de Os Lusíadas, quando Tétis profetiza ao Gama que:

          "Inda outra muita terra se te esconde 

           até que veha o tempo de mostrar-se;

           mas não deixes no mar as Ilhas onde

           a Natureza quis mais afamar-se:

           esta, meio escondida, que responde

           de longe à China, donde vem buscar-se,

           é Japão , onde nasce a prata fina,

           que ilustrada será co a Lei divina."

Sobre a circunstância histórica do cristianismo que os portugueses levaram ao Japão, veremos adiante o que se nos oferece. Por agora, para melhor entendimento do tema do sincretismo religioso, contraponho ao texto do Wenceslau, acima reproduzido, outro, do escritor católico japonês Shusaku Endo. Este autor, foi muitas vezes apontado como um Graham Greene japonês, pela sua inquisidora, inquietante contemplação da misteriosa convivência do pecado e da graça, na contradição que é a condição humana, ou na confusão entre coração e cabeça, cabeça e coração, que talvez sejam dois nomes que damos à inevitável confrontação do nosso pensarsentir... A sua confissão, que adiante transcrevo, rompe e ejecta-se do íntimo da sua identidade nipónica e, simultâneamente, da profunda convicção do seu baptismo. Numa Europa que vai perdendo a sua fé, sem coração nem cabeça que ressuscite, em tempos novos, a identidade essencial da sua tradição, do extremo oriente nos chegou um grito que, quiçá, nos poderá converter, chamar-nos a nós mesmos. A obra mais conhecida de Shusaku Endo é um romance histórico: Chimoku. Quer dizer silêncio, narra, mas sobretudo olha e escuta a apostasia do padre Cristóvão Ferreira, o provincial dos jesuítas no Japão  --  que publicamente renunciou, em tempos de perseguição e derrota dos cristãos, à sua fé. Aceitando, inclusivamente, casar-se com uma japonesa. Mas, nessa circunstância de razia e deserção de fiéis, terá sido apóstata no seu coração? Ou fingiu a apostasia, para que, sobrevivendo, pudesse ministrar os sacramentos e continuar a sua missão? Quando, mais adiante, nos debruçarmos sobre a história e a resistência dos cristãos japoneses clandestinos  -  os senpuku e os kakure  -  uns mantendo, na solidão, uma fidelidade eclesial, outros embarcando num sincretismo com crenças indígenas, constituindo seitas todavia cortadas da osmose budo-shintoísta prevalecente nos 250 anos do shogunato Tokugawa, perceberemos melhor o drama de Shusaku Endo, de que ele mesmo criou uma versão para teatro, realizada também em cinema. Assim confessa o autor à revista Kumo: Fui baptizado em criança, isto é, o meu catolicismo foi um pronto-a-vestir. Depois, tive de decidir se faria o fato adaptar-se ao meu corpo, ou se o deitaria fora, para vestir outro. Muitas vezes senti que queria desfazer-me do meu catolicismo, mas, finalmente, fui incapaz de o fazer. Não foi só não deitá-lo fora, foi sentir-me incapaz de o deitar fora. A razão disto talvez seja ele ter acabado por se tornar parte de mim. O facto de ter penetrado tão profundamente em mim quando jovem era um sinal de que, pelo menos em parte, se tornava numa co-extensão minha. Mesmo assim, não conseguia desembaraçar-me do sentimento de se tratar de algo emprestado, e comecei a perguntar-me o que seria o meu ser-eu-mesmo. Penso que isto é o pântano de lama japonês em mim. Desde que comecei a escrever romances, e até hoje, esta confrontação do meu ser-eu-mesmo católico com o ser-eu-mesmo que lhe está subjacente tem, como refrão repetido por um idiota, ecoado e voltado a ecoar na minha obra. Senti que tinha de encontrar maneira de reconciliar ambos. O tal pântano é metáfora de uma circunstância cultural que suga todo o tipo de ideologias, e dentro de si as modifica e transforma. Pela minha lembrança, sempre falível, do que me contaram em Nagasaki, três foram as perguntas feitas, já no último quartel do sec.XIX, a um missionário francês que ali pudera celebrar, novamente, uma missa a que, encolhidos no fundo da igreja, curiosos, desconfiados, esperançosos, tinham assistido desconhecidos japoneses: acreditas na presença de Cristo na hóstia? na Virgem Maria sua mãe? obedeces ao Papa em Roma?... Perante as respostas afirmativas, exclamaram: Então és dos nossos! Todavia, a maioria dos cristãos clandestinos do Japão, ao longo de 250 anos, não conseguiu escapar à força sincrética da espiritualidade indígena. Muitos deles que, hoje ainda se mantêm fiéis a uma comunhão de fé que o poder político quis eliminar, conservaram-na, na marginalidade, recriando-a com  estigmas e ritos recolhidos do animismo local.

            
Camilo Martins de Oliveira