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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


Igreja de Oura Tenshudo em Nagasaki

 

6.  OS KAKURE KIRISHITAN 

 

Continuamos falando de sincretismo religioso e da interacção de forças políticas e religiosas. É nossa intenção  -  e esforço  -  tentar situar-nos em perspectivas que favoreçam um olhar mais íntimo sobre o ser-se japonês nos tempos e modos da história. Aquando do nosso périplo pelo Japão, com o CNC, fomos de Nagasaki a Kagoshima por terra e mar. Em  Nagasaki, incluindo Deshima  -   de que oportunamente falaremos  e é, afinal, uma lembrança localizada num sítio  -  visitámos mais memórias do que monumentos. Esses lá estão, mas são recentes evocações e invocações de um passado trágico que, todavia, recordamos com admiração pela coragem das gentes, que nos dá uma esperança para além da saudade ou de memórias tristes... O museu e parque da Paz, onde se encontram também memorabilia portuguesas, testemunham a bonança de querer bem, a seguir à tremenda tempestade atómica. Destruição que não poupou a igreja de Urakami Tenshudo, erguida por filhos de cristãos clandestinos, aqueles que, em 1867, ali confessaram publicamente a sua fé, guardada, no isolamento, durante 250 anos! Era o maior templo católico da Ásia. Em zona da cidade que escapou à razia atómica, ainda hoje se ergue a igreja de Oura Tenshudo, construída em 1864, toda ela de madeira e em estilo neo-gótico, por missionários franceses, entre eles o padre Petitjean, a quem cristãos escondidos terão feito as três perguntas que noutro passo referi. O passeio por Amakusa, Kumamoto e Kagoshima foi uma romaria por terras que, como Nagasaki, acolheram a maior concentração de cristãos  -  e cristãos fervorosos  -  no Japão dos secs.XVI e XVII. Aliás, se pensarmos nos cristãos clandestinos ( os kakure kirishitan ) que, por mais de duzentos anos, guardaram e praticaram a sua fé, à revelia do shogunato Tokugawa, e dissimulando-a sob símbolos shintoístas e budistas, essas são as terras do Japão cristão de sempre... A beleza e serenidade do parque natural de Unzen-Amakusa, surpreendente nas suas inúmeras ilhas, encerra ainda escondidas relíquias cristãs. Mas, sobretudo, interroga-nos pelo contraste dessa lindeza tamanha com a memória emocionada de martírios passados: só em 1638, em Shimabara, a perseguição da sua religião e os pesados tributos impostos pelo bakufu (governo shogunal) levaram à revolta os camponeses locais, tendo sido mortos 37.000 deles. Pelo relato coevo do jesuíta João Rodrigues, o Tçuzu, era povo de tradição e linhagem: também é certo e bem sabido que alguns reinos e regiões costeiras do Japão foram povoados por chineses da antiga China. Assim, por exemplo, foram as ilhas de Amakusa, cujos reis eram chineses descendentes de um rei que iniciou a dinastia Kan (Han em chinês); este rei derrubou a dinastia Ch´in e começou a reinar 250 anos antes de Cristo Nosso Senhor, e a dinastia acabou no ano do Senhor de 220. O senhor de Amakusa, Dom Miguel, primeiro senhor daquela ilha a tornar-se cristão, e Dom João seu filho, que lhe sucedeu, descendiam dessa monarquia Kan, e tinham grande orgulho no facto, e possuíam registos escritos para provar a sua origem... Em Amakusa tinham os jesuítas portugueses instalado uma tipografia, onde se imprimiam livros em romaji  (caracteres latinos) , kanji e hiragana  (sino-japoneses). Também ali fundaram um colégio, onde se montavam representações teatrais, incluindo cenas de monges budistas a serem levados por anjos cristãos... Porque havia proselitismo e apologética, debates e confrontações, entre os missionários cristãos e representantes das religiões locais, designadamente monges budistas. Mas as motivações das perseguições ao cristianismo foram, como veremos, sobretudo políticas e, muitas vezes por xenofobia. Tal como, nos reinos ibéricos desse tempo, a Inquisição perseguia mouros, judeus e cristãos novos,  em defesa de uma ortodoxia, mas, com essa, para construção de identidades nacionais unas e coesas... Fosse como fosse, pelos éditos shogunais que proíbiram a confissão, pública ou privada, da fé cristã, depois de expulsos os missionários e todos os estrangeiros católicos (com excepção dos negociantes portugueses, holandeses e chineses confinados à ilha de Dejima, sendo que, destes, os portugueses foram definitivamente expulsos, curiosamente, por volta de  1640), os cristãos japoneses só tiveram, além do martírio, duas opções: exilarem-se ( e muitos foram para Macau, onde construíram a igreja de S.Paulo, ainda hoje ícone daquela cidade ) ou dissimularem-se ( como os "convertidos" judaízantes na Península Ibérica). A esses clandestinos e seus descendentes se deu o nome de Kakure Kirishitan. Tenho usado indiferentemente as designações senpuku ou kakure para referir esses cristãos escondidos. Todavia, há quem aplique a primeira apenas àqueles que, já no sec.XIX, com a reabertura ao cristianismo, aderiram à Igreja Católica  -  incluindo três rapazes que pediram e receberam, dos novos missionários europeus, a ordenação sacerdotal, para o que foram instruídos e baptizados (ainda que secretamente, para evitar publicidade às dúvidas sobre a legitimidade do baptismo recebido na clandestinidade). Assim, kakure  teriam sido todos e, finalmente, apenas aqueles que, não aderindo à Igreja Católica, perseveraram na fé e práticas religiosas das suas comunidades. São esses que aqui nos interessam, para um relance da alma japonesa. A evangelização iniciada por S.Francisco Xavier logo sofre, para além da ilusão acerca da autenticidade dos propósitos religiosos dos daimyo  -   que, afinal, visavam sobretudo atrair para os respectivos domínios o comércio com estrangeiros (portugueses então) e tomavam, como condição sine qua non, a adopção do cristianismo católico  -  da dificuldade da tradução, para vernáculo, da sua teologia. Tal confusão será imputável ao companheiro japonês de Xavier, Yajiro, de que alhures falamos, como ao facto de o santo jesuíta ter chegado da Índia, pátria do Buda. A própria ideia de Deus único, ainda que Trindade, se prestava a declinações, quando se pretendia comunicá-la numa cultura shinto-budista sincrética, em que os kami ou espíritos anímicos do shintoísmo, forças da natureza e antepassados, se confundiam com os bodisahtva do budismo. Francisco não tinha o dom das línguas e, nos seus debates com religiosos autóctones, em que Yajiro era tradutor, não se apercebeu de que o termo dainichi, mesmo que significasse o princípio de todas as coisas, não correspondia ao conceito do Deus transcendente e único, nem que as várias cabeças daquele, fossem três ou cinco, nada tinha a ver  --  como ao neófito Yajiro parecia  --  com o conceito de trindade una... Por isso, posteriormente, os missionários foram enriquecendo o vocabulário japonês com neologismos portugueses e latinos. Voltemos a Shusaku Endo, e à sua versão dramatúrgica do Chinmoku, a peça Ogon no Kuni (O país de ouro -  que Camões referiu como de prata fina...) Aí, o padre Cristóvão Ferreira diz: Desde o princípio, esses mesmos japoneses que confundiram Deus e Dainichi viraram-se e transformaram o nosso Deus e começaram a criar algo diferente... Mesmo nos tempos gloriosos da missionação, os japoneses não acreditavam no Deus Cristão, mas na distorção que dele tinham feito... Fosse como fosse, certo é que o shogunato Tokugawa, lá para meados do sec. XVIII, finalmente os tolerou, confinados aos redutos ilhéus em que sobreviviam. Variando de grau, conforme a tradição e o destino das muitas comunidades, o culto do Deus cristão, de Jesus e sua Mãe, foi sendo mais ou menos confundido com a devoção dos espíritos que animam a terra na sua diversidade telúrica, os homens e a esperança. Cripto-paganismo, politeísmo, animismo, quem sabe? Uma presença ficou, e nela, ao fim de séculos de isolamento e memória, alguns se reconheceram. Não desafio esse mistério, muito menos lhe imponho, no meu olhar para ele, rigorismos dogmáticos. Não sofri o que eles sofreram. Sem qualquer intenção apologética, mas simplesmente por observação curiosa, tomo nota de uma afirmação do Prof. Stephen Turbull: Duas características da fé Kakure estão intimamente ligadas. São elas a aceitação da família, mais do que do indivíduo, como unidade básica do meio religioso, e a necessidade de continuidade. A Kakure ie é a célula unitária da fé kakure, tal como na religião japonesa, e cumpre diariamente rituais religiosos simples como meio de exprimir essa fé. Nessas áreas, a religião japonesa deve ser vista como exprimindo um conceito fundamental na sociedade japonesa: o da primazia da casa-família. Assim, para além das obrigações do indivíduo para com os kamisama (os veneráveis espíritos, traduzo) da ie , o crente individual não tem existência numérica no vocabulário da hierarquia kakure. Em vez disso, contam-se por casas-famílias que incluem, além dos seus membros vivos, os antepassados que já foram e os vindouros, ainda por nascer, que assegurarão a continuidade da ie.

Chego assim  à repetição de um texto que escrevi sobre os tratados impostos ao bakufu, pelas potências ocidentais, na sequência da abertura forçada do Japão, pelo comodoro Perry, em 1856: Os tratados foram iníquos e humilhantes. O Japão foi forçado ao desmantelamento aduaneiro e a conceder extraterritorialidade aos ocidentais. Para conseguir um estatuto de paridade com as potências ocidentais, o governo Meiji teve, depois, de provar que o Japão era um país "civilizado", merecedor de igual tratamento. E parta importante desse processo foi a compilação de códigos jurídicos à imagem dos europeus. Assim, mandou Mitsukuri Rinsho traduzir os códigos franceses, e até foi sugerido que logo se promulgasse uma tradução literal e se lhe chamasse  Código Civil Japonês. Posteriormente, sob a diracção de Eto Shinpei e Inoue Kowashi, e de juristas franceses, com destaque para um professor da Sorbonne, Gustave Émile Boissonade de Fontarabie, elaborou-se, com alguma polémica pelo meio, o código civil japonês. A controvérsia teve várias facetas, mas tratou-se de um conflito entre o pensamento universalista e teórico dos juristas franceses da lei natural, e as ideias mais empíricas e particularizantes dos defensores de um pensamento jurídico historicista, ligados estes às escolas inglesa e alemã. Estas argumentavam que o conceito de ie (casa ou casa-família), e os sentimentos por ele engendrados eram intrínsecos ao particularismo da sociedade e dos valores tradicionais japoneses. Hozumi Yatsuka ficou conhecido pela frase: A lealdade e a piedade familiar morrerão com a entrada em vigor do código civil... ... Com a disseminação do Cristianismo na Europa, um auto proclamado "pai nosso que estais no céu" veio monopolizar o amor e respeito de todos os homens. Talvez por essa razão, os ocidentais negligenciam a devoção aos antepassados e o caminho da piedade filial. Com a divulgação de doutrinas como a da igualdade e humanidade, eles cortam a importância dos costumes étnicos e dos laços de sangue. Talvez por isso já não exista entre eles um sistema de casa. Em seu lugar, criaram uma sociedade de indivíduos iguais e tentaram sustentá-la por leis centradas nos indivíduos. Hozumi explicou porque é que o código civil proposto por Emile Boissonade levaria à perda da identidade japonesa: a ilimitada liberdade poderá aumentar a produtividade, mas à custa de um alargamento da diferença entre ricos e pobres, daí resultando conflitos entre patrões e operários; a imitação do individualismo ocidental, no direito da família, leva a considerar que maridos e mulheres, filhos primogénitos, varões e outros, embora indivíduos distintos, são iguais, com o perigo de assim se romper a sociedade japonesa, que sempre se apoiou no respeito da reverência dos antepassados, que é essencial à casa. 

   Conseguiu Hozumi assim que fosse adiada sine die a promulgação do novo código. Até que, reformulado por uma comissão presidida por Ito Hirobumi e Saionji Kirumochi, entrou em vigor, trinta anos depois das primeiras traduções do francês. Orientado por dois princípios: o da prioridade das instituições e práticas consuetudinárias japonesas; e o da consideração dos princípios mais válidos e consistentes das teorias jurídicas de todas as nações ocidentais. Ou de como o antigo se esconde até que...

 

Camilo Martins de Oliveira