Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Há dias assim! As notícias sobre o resto do mundo suscitam instantâneo teletransporte para algo parecido ao Burundi. De Gaza à Syria ou ao Iraq, de Brussels à Crimea ou Sebastopol, o globo roda hoje a velocidades perigosas. Aí valem o assombroso green dos Royal Parks e um bom livro como refúgio de alma para Londoners. — Chérie, chassez le naturel et il revient au galop. HM Opposition está em Washington DC. À conversa de RH Ed Miliband com o US President Barack Obama comparece a House of Commons plastic bag com três títulos cinéfilos. —Make some money but don’t let money make you! Britain retoma o papel de detetive e recebe as black boxes do MH17 a fim de desvendar o mistério do avião caído dos céus na Ukraine. O caso adensa-se, com as sanções aos Russians a ameaçar a economia europeia e a repor um teste reputacional à real politik que anima as chancelarias ocidentais.
First things always first! O Summertime abre a coisas agradabilíssimas e uma destas é o escantador Royal Greenwich Park, ali para os lados do Observatory de Charles II, paredes meias com o National Maritime Museum e o Old Naval College. Pelas semanas de Maio despontaram timídas roses, com as sunrise a atraírem a passarada exótica das redondezas, depois desabrocham o olhar as irises e as pink magnolias, agora deslumbra o suave violeta das hydrangeas. Com o Thames e os céus de London na tela, em dia do primeiro aniversário do Prince George of Cambridge, talvez seja mesmo um sorriso divino que aqui resida um meridiano que dita o universal aos time travellers. Já RH Ed Miliband atravessa o Atlantic para uma conversa na White House com o N.o 1 do Free World. Na ementa consta a desordem na economia, o motim internacional, a rebeldia climática e… The Scottish referendum.
O líder do Labour Party entra no Oval Office quando em Downing Street o Prime Minister troca Mr JC Juncker por um antigo KGB spy como seu inimigo retórico. O guião é linear: Mr Vladimir Vladimirovich Putin goes on trial in the court of public opinion. A série ainda está nos primeiros episódios. Numa das cenas ardem os milhões dos oligarcas russos que rumaram à City e ainda aos cofres dos Tories como generosas political donations. Três dramas políticos oferece Red Miliband ao Presidente Obama — as modelares versões GB de House of Cards, State of Play e The State Within. Imagino o contraponto de um US original e vem a opus magnum de Mr Frank Capra com um Mr Jimmy Stewart absolutamente fantástico: Mr Smith goes to Washington, ou o antídoto democrático para tempos onde “os public monuments are stolen."
Se a guerra é a continuação da política por outros meios, como ensina o General Carl von Clausewitz, erro há nos cálculos militares de israelitas e palestinianos. A mortandade irriga sazonalmente a faixa de Gaza sem que qualquer das partes alinhe solução para um conflito que deve à racionalidade sob o rude mandamento do dente por dente. Em débito face a séria matriz estatística está também a perda trágica em meses de um segundo avião de passageiros pela Malaysia Airlines. —Well, sometimes, imagination is more important than knowledge.
No início da época que outrora se designava de vilegiatura, recordamos um pequeno livro célebre de Ramalho Ortigão, «As Praias de Portugal – Guia do Banhista e do Viajante» (Quetzal, 2014). É extraordinário como o país mudou, mas é delicioso ver como era Portugal no final do século XIX.
O MAR NA ÍNDOLE DA GENTE É um lugar-comum referir o prazer da viagem. É verdade que tempo houve em que o desconhecido ameaçava o imaginário das sociedades antigas, incapazes de dispor de instrumentos suscetíveis de navegar por mares incertos e de chegar a lugares que prometessem riqueza e bem-estar. Os conhecimentos vindos do oriente através do Mediterrâneo permitiram, porém, navegar com recurso aos astros, com embarcações mais seguras e suscetíveis de lidar com correntes e ventos traiçoeiros. No caso português, os genoveses trouxeram-nos o seu saber e a sua experiência e os Altos Infantes souberam rodear-se de práticos, cientistas, astrónomos, cosmógrafos, construtores de navios, artesãos de velas, sábios construtores de complexos meios de localização e de orientação. Muitas vezes surpreendemo-nos por se falar do nosso Infante D. Henrique, designando-o como Navegador, sabendo-se que quase nunca andou embarcado nas naves que afrontavam a seu mando os mares. No entanto, sem o seu conhecimento e a sua direção, sem a estratégia política e económica que concebeu, nada teria sido possível. Diga-se ainda do Infante D. Pedro das Sete Partidas, que reuniu a informação preciosa e necessária para começar. E quando lemos o «Leal Conselheiro» de D. Duarte, percebemos que é uma conceção nova aquela que nasce com essa obra a compreensão desse tempo. Se chegou à corte o livro de Marco Polo, se os ecos de Veneza e Génova fizeram germinar projetos e ideias, se os mapas de Fra Mauro desafiaram o engenho, se o franciscanismo mudou a relação com a natureza, abandonando os medos e tornando a irmã natureza um destino desejado por Deus – a verdade é que a viagem entrou na índole da gente portuguesa.
ESTE APEGO À NECESSIDADE DE PARTIR… Ramalho Ortigão (1836-1915) no seu pequeno livro de 1876 sobre «As Praias de Portugal», delicioso testemunho sobre a moderna conceção de viagem e de movimento (eufemisticamente designado por «tourisme»), lembra com ênfase: «Para os Portugueses, o Mar tem atrativos especiais. Para nós ele é o caminho das conquistas, dos descobrimentos, da poesia, da inspiração artística da glória nacional». Hoje, quase sorrimos porque sabemos que o Mar é isso e muito mais, envolvendo outros complexos desafios. No entanto, compreendemos o sentido da expressão de Ramalho. Fala-nos da nossa bela arquitetura manuelina, das capelas imperfeitas na Batalha e dos Jerónimos, dos ornatos de cunho marítimo, do espírito de marinheiros. Recorda-nos «Os Lusíadas» como um poema marítimo e refere «a mais extraordinária obra que em Portugal se tem escrito em prosa», a «História Trágico-Marítima»: «nunca o talento dramático produziu rasgos mais comoventes, efeitos mais profundamente tocantes, nunca a tragédia achou notas mais sentidamente elegíacas; nunca a arte descritiva tornou mais palpitante e viva a ação narrada; nunca, finalmente, a ciência da linguagem e o poder do estilo acharam para um assunto formas mais adequadas, toques mais profundos, simplicidade mais real, mais pitoresca, mais sugestiva, mas completamente e mais cabalmente artística». A identidade faz-se, assim, da relação com o Mar, como símbolo de um futuro desconhecido. E se os escritor de oitocentos invoca a épica lembrança do naufrágio pungente de Sepúlveda, não esquece o romanceiro popular da «Nau Catrineta» e a sua história de pasmar, em que o demónio deseja comprar a alma do capitão, mas este apenas responde, segundo a melhor genealogia marinha: «A minha alma é só de Deus, / E o meu corpo é do mar». Deste modo, a tradição do nosso romanceiro faz-se de um constante peregrinar, cheio de desafios e provações, de alegrias e tragédias, que leva Camões na célebre Canção VII a dizer por antonomásia: «Aqui nesta remota, áspera e dura / parte do mundo, quis que a vida breve / também de si deixasse um breve espaço, / por que ficasse a vida / pelo mundo em pedaços repartida». E, ao lermos Fernão Mendes Pinto ou Diogo do Couto, facilmente entendemos como a viagem é matéria-prima de vida e de literatura, de existência e de pensamento. A viagem torna-se, assim, consequência e continuidade da confluência de diversos povos e influências, num extraordinário cadinho de diferenças. A hospitalidade tem consequência no desejo de encontro do diferente, de outros lugares e de outras gentes. O fascínio da viagem ganha, assim, força e sentido.
DIFERENÇAS CAPAZES DE REUNIR… E se procuramos esses sinais de sermos diferentes, eis que, depois da multiplicação de funções, minuciosamente descrita, o Padre António Vieira nos vem conceder uma chave, que permite entender como a viagem se inicia no começar, e aí ganha alento, prosseguindo na consumação da partida e do encontro, sempre rodeado de mistério, de perguntas e de surpresas. «Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer toda a terra. Para nascer Portugal, para morrer o mundo» (Sermão de Santo António dos Portugueses em Roma, 1670). Eis por que razão a noção de identidade se torna aberta, heterogénea e disponível. O viajar torna o viajante cosmopolita, torna-o mais desperto e atento, mesmo quando vamos ao encontro do país próximo, como de terra estranha… Se percorrermos a escrita de Ramalho encontraremos, além da invocação do Mar, como elo, sendo o país antigo que aqui se revela, de norte para sul: a Foz, Leça e Matosinhos, Póvoa de Varzim, a Granja, de Pedrouços a Cascais, Vila do Conde, Espinho, Ericeira, Nazaré, Figueira, Setúbal, além das praias obscuras, do tratamento marítimo, das precauções higiénicas, dos socorros aos afogados, e dos conselhos às mães sobre o banho frio… Foz! Saudosa Foz! Da infância do autor. «O habitante de Leça foi por muito tempo para nós como o habitante da antiga Lua – um problema». Pedrouços (onde vai…) – era «a mansão oficial da vilegiatura burocrática de Lisboa». A Póvoa convertia-se em enorme estalagem com quartos a todo o preço… «A Granja é uma povoação diamante, uma estação bijou, uma praia de algibeira». Todos se conheciam, o mundo todo lá estava… A Cascais ia-se de vapor e era «o centro mais completo, o mais fino extrato da vida elegante em Portugal». A pacata Vila do Conde, e não espanta que tenha sido escolhida por Antero, era a menos frequentada, mas «uma das mais pitorescas e mais belas povoações marítimas de Portugal»… A Ericeira é com Olhão, para Ramalho, a mais asseada de todas as praias… A Nazaré era cómoda e festiva. Na Figueira (ou não estivesse próxima de Coimbra): «há uma atmosfera especial de pedantaria, de vigor e de troça»… Em Setúbal, Troia e a serra da Arrábida marcam pelo caráter laborioso. Entre as praias obscuras surpreendemo-nos de ver lá Âncora e Afife, Costa Nova, S. Martinho do Porto, Santa Cruz, S. Pedro de Moel – e do Algarve nem sombras… Ah! E que cuidados… «Ao ir para o banho deve-se ter em vista que tenham cessado completamente os trabalhos da digestão»… «A duração do banho depende da temperatura da água, da força da onda e da constituição do banhista». E, para as mães, o conselho enternecedor: «o uso habitual e quotidiano do banho frio exerce na saúde a mais feliz influência»… E esta, hein…
vista nocturna de Kobe, 15 anos depois do terramoto de 1995 que destruiu grande parte da cidade.
4. O SAIGAI KUNI
Com alguma frequência se referem os japoneses à sua terra chamando-lhe saigai kuni ou país dos desastres. Todos recordamos o bombardeamento atómico de Nagasaki e Hiroshima, o terramoto de Kobe em 1995 ou o grande terramoto e tsunami dito de Fukushima com consequências ainda imprevisíveis. Sabemos também que, em 1923,um jishin (tremor de terra) destruiu Tokyo e Yokohama e matou mais de 100 mil pessoas... Desde que se faz história de sismos, registaram-se mais de 500 fortes terramotos no arquipélago nipónico; só entre 1880 e 1990,deram-se 23 deles,nas áreas de Tokyo,Yokohama,Kobe,Kyoto e Osaka -- alem dos mais recentes -- com intensidade superior a 6 na escala de Richter. Além dos jishin, temos os kaji (incêndios), os kazan (vulcões) e outros saigai designados por palavras hoje entradas no vocabulário internacional: taifu (tufões) e tsunami [maré-onda]. Nada disto impediu o Japão de se tornar na grande potência económica que é, alimentando uma população de 125 milhões de pessoas,90% das quais se consideram "classe média"... E também já todos vimos,na TV, a calma e a fortaleza de alma com que as populações sinistradas têm reagido,se têm organizado e vão recuperando. Não esqueço a imagem daqueles desalojados que,no seu abrigo de fortuna mantêm tudo limpo e até separam escrupulosamente o lixo para reciclagem... Porque são eles assim? Que cultura,que valores os sustentam? Sabemos que os mitos fundadores de uma identidade comunitária, da fé, da solidariedade e da ética dos seres humanos que nela se reconhecem, são invenções ou projecções transcendentais do seu pensarsentir e da respectiva definição. Talvez por isso finalmente existam, com raízes profundas, na alma das gentes. Para entendermos a história e a mentalidade japonesas enquanto, respectivamente, genealogia e representação de uma entidade nacional, e enquanto olhar sobre si e os outros, isto é, como atitude perante a minha relação de mim à minha circunstância, teremos de prestar atenção a três temas centrais ao discurso cultural nipónico:
1. o mito da origem divina do Japão e a continuidade da sua linhagem imperial, descendente da deusa solar Amateratsu;
2. o mito da uniformidade étnica do povo japonês;
3. a consequente identidade única da cultura japonesa, que explica como e porquê ela não é vulnerável às influências externas, antes as assimila e japoniza.
O mito da linhagem imperial e do seu carácter divino levou milhares de jovens pilotos japoneses a sacrificarem as vidas em missões kamikaze, ataques aéreos suicidas, gritando Tenno heika banzai!, longa vida ao Imperador! E foi, durante um milénio e meio, o esteio da unidade da nação e da legitimidade do poder político. Mesmo que este não tivesse sido, ao longo da história, as mais das vezes, exercido pelo imperador, a este iam os sucessivos governantes buscar a legitimação. Só a Constituição de 1947, imposta pelo ocupante americano, separará a Religião do Estado, e fará do Imperador um chefe de estado simbólico, não já o descendente directo da deusa Amateratsu. Antes, a Constituição de 1889 (Meiji) , embora reabrisse o país ao cristianismo e respeitasse o budismo, fizera do shintoísmo a religião litúrgica do estado. O mito da uniformidade étnica ignorou durante séculos o povo Ainu, provavelmente os autóctones mais antigos do Japão. E gerou a cultura da diferença e da diferenciação, ou seja, enquanto afirmação de facto e imposição de acto. Esta atitude marcará o tempo e o modo de todos os encontros, aberturas, reclusões, curiosidade, desconfiança, simpatias e animosidades do japonês relativamente ao estrangeiro, o de fora, o gaijin. Parece-me interessante inserir aqui um texto de Wenceslau de Moraes, intitulado "Os selvagens cabeludos" : Não abundam em geral, no japonês, barba e bigode; o imberbe, aos vinte, aos trinta anos, é vulgar. Os ainos, pelo contrário, são extremamente cabeludos; o rosto alvo, quase caucásico, desaparece numa floresta de cabelos; e as suas mulheres, naturalmente desprovidas de bigodes...pintam-nos!... Os ainos são, como é notório, o povo autóctone do Japão; ou, pelo menos, aquele que os japoneses encontraram estabelecido no solo que invadiram, travando com ele longa luta, indo escorraçando-o, pouco a pouco, para o norte, em cujos confins ainda hoje residem alguns raros indivíduos desta raça; na exposição de Osaka, há 4 anos,uns 3 ou 4 destes ursos humanos, figuravam em palhoças suas, como uma jaula... Ora, das circunstâncias apontadas, resultou, por parte dos japoneses, um natural desprezo pela barba, característica da tribo bárbara e inimiga, que venceram e humilharam. Quando os japoneses começaram travando conhecimento com os europeus, chamavam-lhes ketojin - os selvagens cabeludos - para diferenciá-los dos chineses, tojin - os selvagens. A denominação persistiu e ainda persiste; não sendo raro que os gaiatos, ao avistarem-nos em certos bairros pouco tolerantes, se ponham a gritar: ketojin, ketojin!... Posto isto, porque será que os missionários católicos franceses, estabelecidos no Japão, deixam em regra crescer longas barbas bíblicas, incultas?... Na moirama, onde a barba é venerada, percebia-se; mas aqui... E porque será que Wenceslau, feito japonês e budista, assim também deixou crescer a sua? A história mítica do Japão e suas origens -- que até foi ensinada na Universidade Imperial de Tokyo (a célebre Todai ), entre outros pelo Prof. Hiraizumi Kiyoshi, fluente em várias línguas europeias e conhecedor das respectivas culturas e métodos científicos - situa a fundação da nação no sec. VII antes de Cristo (por volta de 670 a.C.), por vontade e força do primeiro imperador: Jimmu. De tal não existem documentos coevos, nem outras fontes além da tradição oral. A escrita tendo chegado da China no sec. VI da nossa era, só no sec. VII (por volta de 620), o príncipe regente Shotoku ordenou a compilação das crónicas dos imperadores ( Tennoki ) e da história nacional ( Kokki ), ambas destruídas por um incêndio em 645. E só em finais do se. VII, o imperador Tenmu (40º na linhagem mítica, o actual sendo o 125º...) ordenou a compilação de lendas e narrativas pertencentes às tradições orais dos clãs e reinos do Japão antigo. Assim, o registo das coisas antigas ( Kojiki ) foi terminado em 712, e o mais volumoso registo das crónicas do Japão ( Nihon Shoki ) em 720. Cabem aqui mais de mil anos de história, e é com fundamento em relatos com tal credibilidade que se estabeleceu a fundação da nação por Jimmu e a respectiva data, bem como a sua origem em Amateratsu e toda a linhagem decorrente. Conforme se pode depreender de pesquisas arqueológicas recentes ( posteriores a 1945 ) e de fontes chinesas e coreanas ( ainda que muito discretas no tocante ao Japão), nos finais do sec.IV emergiu, dum conjunto de reinos fundados e geridos por povos oriundos do nordeste asiático, um reino mais poderoso: Yamato, que conseguiu afirmar a sua supremacia sobre grande parte do arquipélago nipónico. Os reis ( Okimi ) de Yamato eram hereditários e demonstraram a grandeza e primazia da sua linhagem, quer através de grandiosas edificações (montes tumulares, cidades capitais santuários), quer pela divulgação de mitos fundadores, como os posteriormente recolhidos nos Kojiki e Nihon Shoki. O culto dos antepassados, a veneração dos Kami ou espíritos, designadamente em matsuri ou festivais, celebravam-se ao abrigo do shintoísmo, religião animista, caminho dos deuses. Curiosamente, será com as reformas do regente Shotoku, em finais do sec.VI, introduzindo e adoptando o budismo e a escrita, que se iniciará o registo escrito da linhagem imperial, paralelamente à prática do budismo, em recintos próprios, nos santuários shinto.
'Tomorrow will inherit only space.', Peter Smithson
Em 1959, Alison e Peter Smithson começaram a desenhar o quarteirão destinado à sede da revista The Economist, em Piccadilly, Londres. The Economist Building preconiza relações formais claras com a envolvente e oferece ao lugar o poder do análogo. Indica categorias carregadas de sentido circunstancial, histórico e racional.
O seu efeito urbano deve-se ao projecto de Berlim-Haupstadt, onde os percursos existem distintos, a níveis e hierarquias diferentes, criando redes de conexão. The Economist Building concretiza a ideia da cidade constituída por camadas de utilização diversa – entende-se aqui por camada o diferente nível criado entre a rua e a praça e entre o espaço novo e o espaço original. O quarteirão do The Economist Building, aberto e atravessável foi pensado para estar livre de actividades específicas e a sua identidade mudar de acordo com o tempo, estação e emoções.
Por esta altura, os Smithson desejavam pôr de novo em prática as características das ruas estreitas e das praças de reduzida dimensão, tomando como referência as situadas na envolvente do quarteirão. Os Smithson acreditam que 'Roads are also places' porque o carácter que uma rua (e todo o espaço público) adquire na identidade de um território é muito importante. A rua é interacção, transição, intensidade, velocidade e estrutura basilar de uma comunidade.
A praça pedestre do Economist Building é definida irregularmente por três torres de alturas diversas, de cantos chanfrados e programas distintos. A solução encontrada constitui-se num conjunto de diferentes escalas urbanas: o banco, a torre do The Economist e o edifício residencial. Para conseguir construir um lugar, os Smithson focalizam muita atenção na materialização exterior dos blocos, e assim obter uma composição formal una em pedra Portland. Com esta escolha atendem à natureza da envolvente em questão – os Smithson preferem ligar e relacionar e não confrontar. No The Economist Building percebem-se as diferentes escalas de integração do edifício através de opções formais e compositivas – para a rua mais movimentada, St James Street, lêem-se vãos mais generosos; a dimensão dos vãos que definem os blocos mais reservados, da Bury Street é mais contida. Retomando também o tema das arcadas, aproxima-se o espaço público do espaço privado e interpreta-se um dos cinco pontos do vocabulário corbusiano: os pilotis.
'If a building or an element of city is to give intellectual access to its occupants, access to their affections and their skills, access to their sensibilities, the fabric must have special formal characteristics.', Peter Smithson
The Economist Building nasce dos padrões da vida quotidiana e tenta ser objectivo acerca de uma realidade, com propósitos sociais, culturais e técnicos precisos. Revela-se pelo interesse do banal. O edifício desenvolve-se de acordo com padrões de associação, com formas reconhecidas que geram pertença e identidade. Com The Economist Building os Smithson trazem o 'feeling for life for everyday things'. A praça é pedestre, plataforma urbana, elevada, de carácter mais reservado, protegendo o interior dos blocos. Aí o Homem desenvolve as suas capacidades, exprime-se, relaciona-se e evolui – com a ideia de criar vazios na cidade, espaços de transição, os Smithson dão oportunidade para o espaço se encontrar a si próprio de acordo com as sucessivas necessidades do homem que o utiliza.
Assim, os Smithson desenvolvem a ideia de que o valor de um espaço vazio vais-se definindo e adquirindo com o tempo e de acordo com um processo de apropriação. Os Smithson esforçam-se por responder a condições reais - 'Life occurs in the emptiness...Providing space for people to live' (Peter Smithson, 2001). Concretiza-se a procura pelo uso livre dos esquemas urbanos, através da possibilidade de se abrir a obra a diversas interpretações e significados – à ambiguidade. Estas ideias, de padrões de associação e de identidade, já se haviam fixado no projecto de Bethnal Green em 1956, com Nigel Henderson. Os Smithson procuram não pela cidade do anonimato mas sim pela cidade comunitária que todos partilham ao circular.
'...a built domain where our everyday life will seem heroic', Peter Smithson, 1954
The Economist Building tornou-se objecto ícone da arquitectura de Alison e Peter Smithson, assim como a escola de Hunstanton e o edifício Robin Hood Gardens – 'The Economist Building their triumphant realization... The finest work of the Smithsons.' (Frampton, 2003)
Os Smithson interessam-se pelo impacto da utilização que o homem associa a um espaço porque é preciso criar lugares de apropriação, para que exista um dialogo entre o homem, o edifício, a rua, o bairro e a cidade.
E o The Economist Building consegue ser exemplar neste sentido, retirar-se do plano meramente intelectual e afirmar-se ao ser compreendido por todos. Investe na exploração do tema do 'espaço que fica entre', na admiração pelo espaço vazio, pelos buracos que se abrem na cidade que ligam e que revelam a vida – 'The emptiness I'm talking about should not need a specialized audience...Is it right to have so much? Can we get quality out of almost nothing?' (Peter Smithson, 2001). Deste modo, The Economist Building cria um lugar óbvio para o homem simplesmente ser.
Ryoanji (templo com a quintaessência de um jardim Zen)
3. O BUDISMO ZEN
O Budismo Zen resulta da reformulação chinesa do sentido de despojamento,de transcendentalismo e de renúncia à terra e às conquistas da vida terrena que inspirou o budismo indiano. O pensamento chinês do Budismo desenvolve-se por filósofos taoistas e reflecte a inclinação natural dos chineses para as coisas práticas,terrenas,activas. Os monges zen procuram, logo desde os seus primeiros mosteiros, a igualdade democrática e a contribuição de todos,pelo trabalho manual, para a economia comunitária. Diferentemente dos outros padrões monásticos budistas ou cristãos, não privilegiam a oração, contemplação e penitência, nem as obras de misericórdia, nem a leitura, recitação e estudo de textos sagrados. Antes se dedicam a assuntos práticos, manuais ou intelectuais, e escutam as ocasionais, curtas e crípticas prédicas dos seus mestres, que eles também interrogam: "Mestre, como será a tua vida futura?" Resposta: "Deixem-me ser um burro ou um cavalo, para trabalhar para os camponeses..." A meditação zen é silenciosa. O Zen desconfia das palavras porque receia que estas se destaquem das realidades e se tornem meros conceitos. E o Zen quer tratar das coisas, não das ideias. Não se perde na recitação dos sutras nem em discussões abstractas. E é por isso que encontra eco nos homens de ação, militares, políticos, empresários. Falamos do Zen apenas para melhor entendermos a sua influência sobre a cultura que os primeiros portugueses a chegar ao Japão ali encontraram. Sigamos agora a análise do Prof. Daisetz Suzuki (1871 - 1966) que foi correspondente e amigo de Carl Gustav Jung, Erich Fromm, Martin Heidegger, Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Arnold Toynbee e Thomas Merton (o célebre monge trapista americano): "Pode parecer estranho que o Zen tenha sido,por qualquer forma, relacionado com o espírito das classes militares no Japão. Seja qual for a forma que o Budismo tome nos países em que floresce,ele é uma religião de compaixão,e na sua variada história nunca esteve empenhado em actividades guerreiras. Então como é que o Zen acabou por activar o espírito combativo do guerreiro japonês?" Seja-me permitido condicionar parcialmente esta afirmação do Prof. Suzuki,já que penso que o comportamento de muitos mosteiros e templos budistas ao longo dos períodos Kamakura e Muromachi foi de clara intervenção na vida política (Oda Nobunaga ou os jesuítas portugueses do séc. XVI que o digam!), conduzindo manifestações de rua e exercendo outros meios de pressão sobre os agentes do poder secular,sem excluir acções de carácter bélico. Mas voltemos ao Prof. Suzuki: "No Japão, o Zen esteve desde o início intimamente ligado à vida dos samurai. Embora nunca os tivesse incitado activamente a levarem por diante a sua violenta profissão,apoiou-os passivamente sempre que,por qualquer razão, a ele recorriam. Apoiou-os moral e filosoficamente. Moralmente, porque o Zen é uma religião que nos ensina a não olhar para trás, já que o curso se decide à frente; filosoficamente, porque trata indiferentemente a vida e a morte. Este não voltar para trás vem afinal da convicção filosófica; mas sendo uma religião da vontade, o Zen apela ao espírito samurai mais pela moral do que pela filosofia. Dum ponto de vista filosófico,o Zen prefere a intuição à intelecção, já que aquela é o caminho mais curto para a Verdade. Portanto, moral e filosoficamente, há no Zen uma forte atracção para as classes militares. Sendo o espírito militar -- e esta é uma das qualidades essenciais do combatente -- comparativamente simples e nada atreito a filosofar, encontra um espírito congénito no Zen. Esta é provavelmente uma das principais razões da estreita relação entre o Zen e os samurai. Em segundo lugar, a disciplina Zen é simples, direta, autoconfiante, auto-renunciadora; a sua propensão ascética liga bem com o espírito combativo. O combatente deve ser sempre de uma só ideia, com um único objectivo em vista; para combater, não olha para trás, nem para o lado. Para seguir em frente,afim de esmagar o inimigo, só disso mesmo ele precisa. Não deve pois embaraçar-se de qualquer modo, físico, emocional ou intelectual. Dúvidas intelectuais, se forem alimentadas na mente do combatente, serão grandes
obstáculos ao seu movimento para e frente,enquanto que emoções e possessões físicas são os empecilhos mais pesados para a condução eficiente da sua vocação. Um bom combatente é geralmente um asceta ou um estóico. Isso, quando necessário, é algo que o Zen pode facultar. Em terceiro lugar, há uma conexão histórica entre o Zen e as classes militares do Japão. O Padre budista Eisai (1141 - 1215) é
geralmente olhado como o introdutor do Zen no Japão. Mas as suas actividades restringiram-se,mais ou menos, a Kyoto,que ao tempo era o centro das escolas budistas mais antigas. A inauguração, ali, de qualquer nova fé era quase impossível,pela forte oposição dessas
escolas. Eisai teve de assumir o compromisso de uma atitude conciliatória com a Tendai e a Shingon. Enquanto que em Kamakura,sede
do governo Hojo,não se verificavam as mesmas dificuldades históricas. Além disso, o regime Hojo era militar, sucedera ao dos Minamoto, que se tinham oposto ao clã dos Taira e às famílias nobres da corte. Os Minamoto tinham perdido a sua eficácia como governantes por excesso de refinamento,efeminação e consequente degeneração. O regime Hojo distingue-se pela sua severa frugalidade e disciplina moral, e também pelas suas poderosas estruturas administrativas e militares. As cabeças dirigentes de tão forte aparelho governativo abraçaram o Zen como seu guia espiritual, ignorando a tradição em matéria religiosa; o Zen pôde assim, não só apoiar, mas influenciar variadamente a vida cultural dos japoneses desde o séc. XIII e pela era Ashikaga fora, e até mesmo na era Tokugawa. O Zen não tem doutrina ou filosofia especial, nem um conjunto de conceitos ou fórmulas intelectuais, mas tenta livrar-nos da prisão do nascimento e da morte, por modos intuitivos de entendimento, que lhe são peculiares. É portanto extremamente flexível na sua adaptação a quase todas as filosofias e doutrinas morais,desde que estas não interfiram com o seu ensinamento intuitivo... ...diz um ditado japonês:´o Tendai é para a família real,o Shingon para a nobreza,o Zen para as classes guerreiras, o Jodo para as massas. Este dito caracteriza bem cada uma das seitas budistas japonesas. A Tendai e a Shingon são ricas de ritualismo e as suas cerimónias celebram-se em estilo muito elaborado e pomposo,apropriado ao gosto das classes refinadas. O Jodo apela naturalmente mais às aspirações plebeias,pela simplicidade da sua fé e do seu ensino. Mas para além do seu método directo de atingir a fé final, o Zen é uma religião da força de vontade,e é de força de vontade que os guerreiros prementemente precisam,ainda que iluminada pela intuição." Este texto do Prof. Suzuki foi publicado pela primeira vez em 1938. Em Kyoto, visitámos vários templos Zen e seus jardins, e lembrámos as discussões filosóficas entre monges Zen e jesuítas que
ali tiveram lugar. Na parte oriental da cidade antiga, Nanzenji, o mais importante, edificado no último quartel do séc. XVI, perto do Pavilhão de Prata (Ginkakuji), construído em 1482 pelo shogun Ashikaga Yoshimasa. Em Kyoto ocidental,visitámos o Pavilhão Dourado (Kinkakuji), erigido pelo avô de Yoshimasa, o shogun Ashikaga Yoshimitsu (1358 - 1408) que aos 37 anos se fez monge budista.
E também o Ryoanji, templo fundado pelo daimyo Hosokawa Katsumoto em 1473,onde se encontra a quintessência do jardim Zen, desenhado por Soami. Myoshinji, perto do Ryoanji, foi fundado em 1337, e ainda hoje alberga o sino mais antigo do Japão (de 698) e um sino português (de 1577). O templo de Kiyomizudera, mais a sul, outra vez em Kyoto oriental,está ligado a uma escola budista de Nara : a Hosso,tal como o templo de Kofukuji,em Nara mesmo,que também visitámos. Este foi fundado,no início do sec.VIII por um Fujiwara,família da aristocracia aparentada à casa imperial. Os edifícios hoje existentes datam do sec. XIII. Em Nara ainda visitámos o já referido Todaiji,construído por ordem do imperador Shomu em 752. O Budismo Mahayana, sistema teísta e que preconiza a salvação universal,marcou o padrão das estruturas dos templos budistas no Japão: um pagode (to),um pavilhão principal (kondo),uma sala de aula (kodo),um depósito de sutras (kyozo). Protótipos que visitámos: Horiuji,fundado pelo príncipe Shotoku no sec.VII,e,já na era Nara e do budismo estatal, o Todaiji. O budismo esotérico organiza-se em volta do Buda Dainichi,força cósmica,rodeado de um panteão de divindades e manifestando-se por rituais elaborados. A sua forma artística característica é o Mandala,representação do cosmos e vários deuses. Os seus templos, das seitas Shingon e Tendai,erguem-se fora das cidades,em zonas acidentadas e arborizadas. O budismo da Terra Pura (Jodo),que também penetrará as seitas Shingon e Tendai,concentra a sua devoção no Buda Amida que habita o paraíso (Terra Pura). O Byodo-in, que visitámos, foi construído em1053 pelo nobre cortesão Fujiwara no Yorimichi,e é um belo exemplo da arte budista da era Fujiwara. Voltarei a falar dele. O Budismo Zen apresenta uma arquitectura que o diferencia das outras seitas,e em que se realça o jardim zen, com suas rochas e areias. A influência zen na cultura japonesa distingue-se na pintura e na caligrafia, tal como na poesia e estende-se do sec. XIII ao termo da era Edo, até aos nossos dias.
Com a idade em que outrora os poetas morriam e que, hoje, apenas garante uma carta de residência provisória para a cidade da poesia, Joaquim Pessoa não precisa porém de ser apresentado ao seu público. Autor de muitos livros de poemas, premiados, esgotados, o mais novo Pessoa da literatura portuguesa dispensa-se perfeitamente de qualquer introdução. A poesia é que não… (…)Em terras de Portugal, onde a poesia surge espontaneamente da rocha e da areia como da gleba
Assim a introdução crítica de Roxana Eminescu ao livro “O Amor Infinito” – prémio de Literatura – António Nobre – 1982 – de Joaquim Pessoa na Círculo de Poesia , Moraes Editores 1983.
A luminosidade da escrita de Joaquim Pessoa também é patente na arte deste poeta que nos seus quadros dava cor a poemas como este:
«Um mundo de palavras. Língua que lambe o universo para espanto da imobilidade das estrelas»
Entendemos “O Amor Infinito” como uma ruptura de clássicos paradigmas. A morte já não é gelo nem dor, mas luz da manhã por companhia, realçando mais a injustiça feita ao mortal e que o leva a que, por essa razão, não há que morrer calado, antes
A palavra justa clama pela água
ao contrário da morte que o céu não sossega
e
dói-te o dia no rosto
numa expressão que se identifica com a efemeridade do Tudo:
Tu és tudo o que morre
(…) A morte é herdeira única do corpo.
A razão, apenas, um artigo do vento.
Este livro também nos faz a proposta de escolhermos sozinhos os sítios do descanso onde se imortalize o coração no ter/haver que ser tudo de outras maneiras. Existe, diga-se uma originalidade de ideias e de valores filosóficos inerentes, num meta-discurso , cuja caducidade entende por natural: ou sugere que se entenda tão só como sede saciada.
Existe, na sua escrita, muito do poeta danado por tão profunda dilaceração até à chegada do caminho-luz. Existe a esplendorosa e trágica manhã que borda as camisas (…) e o esquecimento que é tão leve como a seda que cobre o motor da borboleta.
E depois "Vou-me Embora de Mim" um outro livro, do qual diz Maria Lúcia Lepecki afirma que o poeta se dá a conhecer o antes e o que vê estar sendo agora.
E nas palavras de Eduardo Lourenço:
o poeta é o cronista dos mitos, bem como a ideia de que, em Portugal, o pensamento filosófico mais genuíno é o que se encontra na escrita dos poetas.
Claramente nos surge desta escrita de Joaquim Pessoa um comprometimento social e politico assumido como movimento de revelação dos sentidos. E afirma sabendo que tudo faz parte do tudo
O que faço nas artes plásticas é também um acto poético. Julgo ter uma plasticidade muito ligada à poesia, sinto-as como irmãs
Vemos também Joaquim Pessoa como um crente que se ignora. Pensa com o sentimento e com ele cria gamas de cores não aéreas, que projecta na sua pintura:
A evolução do teatro, no sentido de dramaturgia e espetáculo, liga-se obviamente à definição de espaços e à evolução da própria arquitetura e do urbanismo: sendo certo que a tradição de espaços/edifícios de vocação para espetáculo publico, documentada em Portugal no que resta dos teatros romanos – e é pouco, como temos visto no site e-cultura/e-teatros do CNC - perdeu-se ao longo de séculos.
Basta ver por exemplo as indicações dos locais de estreia das peças de Gil Vicente, recolhidas na compilação efetuada pelos filhos do dramaturgo, Luís e Paula Vicente. Foi por ocasião do nascimento do futuro D. João III, em 7 de Junho de 1502, que Mestre Gil consolidaria a tradição histórica do teatro escrito em português, com a representação, na câmara da Rainha, do Monólogo do Vaqueiro. E o que se seguiu, na obra vasta e variada de Gil Vicente, seus contemporâneos e sucessores imediatos, é uma pletórica de textos e espetáculos produzidos em Igrejas, em palácios, em ruas e praças das cidades, esquecidos que estavam, demolidos, arruinados, abandonados e tantas vezes soterrados, os vestígios dos teatros e circos romanos.
Até que em 1590, o empresário castelhano Fernão Dias de La Torre criou em Lisboa os primeiros espaços teatrais públicos permanentes, nos chamados Pátios das Arcas ou da Betesga, aquele no que é hoje a Mouraria, este na zona urbana onde hoje está implantada a rua Augusta. Curiosamente, a fixação destes espaços e, por consequência óbvia, a autorização para a produção de espetáculos, dependia do Hospital de Todos os Santos.
De assinalar que o Hospital situava-se na área onde se foi construído e inaugurado em 1846 o Teatro de D. Maria II: curiosa vocação urbana ligada ao teatro…
Mas há notícia de outros Pátios em Lisboa, identificados pela localização: o Pátio das Fangas da Farinha, perto do Tribunal da Boa Hora, ou, mais curioso, o chamado Pátio das Hortas de Conde: trata-se da área urbana onde em 1765 se construiu o primeiro de três sucessivos Teatros da Rua dos Condes, no seculo XIX transformado no que viria a ser o Cine Teatro Condes e em 1952 no Cinema cujo edifício ainda lá está implantado, o Hard Rock Café.
E não é caso único desta implantação urbana dos teatros em zonas da cidade que mantêm até hoje, a vocação de recreio e de espetáculo. Vamos encontrar referencias consolidadas aos sucessivos Teatros do Bairro Alto, onde António José da Silva teria estreado, a partir de 1733, as peças ou óperas para bonifrates, com música de António Teixeira: ou mais tarde, o Teatro do Salitre, este mais ou menos onde hoje se situa o Parque Mayer. Ou, a partir de 1793, o Teatro de São Carlos. Ou a Academia da Trindade, situada num antigo convento, onde se ergue, desde 1867, o Teatro da Trindade. Desses e de outros, falarei mais tarde.
Mas diga-se desde já que aí se trata de teatros-edifícios, construídos numa estrutura vocacionada para o espetáculo, com frisas e camarotes, num modelo que duraria até meados do seculo passado, não obstante a transformação e adaptação ao espetáculo cinematográfico.
Por hoje fico na referência a dois documentos bem ilustrativos da tradição secular dos espaços de espetáculo.
Em 21 de Novembro de 1622, um documento do Município de Lisboa dá conta que o «Pátio da rua das Arcas estava em notável perigo de arruinar e cair com o peso da gente» pelo que «se ordenou ao vereador do pelouro das obras que com o arquiteto da cidade e mais ministros dela (…) fosse ver a fabrica do dito Pátio das Arcas»… (in Eduardo Freire de Oliveira “Elementos para a História do Município de Lisboa” ed. 1888).
E no meu livro intitulado “Teatros de Portugal” (ed. 2005) também recordo que «em 1771, sendo presidente do Senado de Lisboa o Conde de Oeiras, filho do Marquês de Pombal, é criada por decreto de 30 de maio a Sociedade para a Subsistência dos teatros Públicos da Corte, destinada a “sustentar os mesmos teatros com aquela pureza e decoro que os fazem permitidos”»…
Quais eram, tinham sido ou viriam a ser esses “Teatros da Corte”? É o que vamos ver em próximos artigos.
A historical decision, 2014 E a cascata flui. A sociedade britânica acorda hoje mais justa. Primeiro fora o fim da lei sálica com as fêmeas a poder suceder no trono de Buckingham. Ontem The Church of England aprovou a ordenação de women bishops. Hoje temos a entrada de novas mulheres para cargos seniores no governo de Westminster. Nas legislativas haverá ainda maior número como membros do parlamento em Westminster. — Ce que chante la corneille, chante le corneillon. A remodelação governamental ocorre após anúncios de leis de exceção nos surveillance powers para a tríade MI5-MI6-GCHQ e o aumento de £1 billion no investimento da defesa. — Every one for himself and God for us all! A tela diz das prioridades Tory nas 2015 general elections. Strasbourg vota em Mr JC Juncker para presidir à European Commission. Os Scotties olham o calendário.
Num idêntico dia solar nasce há 150 anos Mrs Emmeline Pankhurst, em Moss Side (Gretar Manchester). Ela é o rosto que lidera o British suffragette movement na luta pelo direito ao voto feminino. Ergue-se contra a Lex Salica inscrita por Charlemagne para vedar o acesso das mulheres ao poder político. Por isso não é a Queen Vitoria também rainha de Hanover, nem a Europe ruma a um bem diverso destino no sangrento século XX. Pois, na sua data colegialmente se move um magno pilar social. A decisão histórica para a igualdade complexa na Church of England é tomada por maioria do Synod em sessão jovial e tears of joy. Nota lateral: Os comentários em torno das wonderful news glosam menos a modernidade e mais a adquirida integridade espiritual do one equal body à luz da tradição e da bíblia de St James.
Looking more ellectable é o aparente princípio guia para a remodelação governamental que um poderoso PM hoje executa. RH David Cameron retira da Conservative’ window shop pesos pesados como RH Kenneth Clark e RH William Hague (novo Leader of Commons) a par de despromover RH Michael Gove (Whig Chief). Três traços neste movimento: mais mulheres, menos experiência e saída das vozes moderadas no Cabinet, nomeadamente face à Europe. Trata-se de a major reshuffle, com rodagem numa dúzia de pastas em cuidada operação de spin. O Prime Minister tweeta ao minuto who's in, becomes, is promoted… enquanto os PM's spokesman explicam o conveniente porquê e alcance da mudança de cadeiras. Na retaguarda soam, inclusive, os agradecimentos vindos de organizações do Tory country a suavizar os despedimentos. Agora basta provar o acerto das tropas e esperar pelo Scotch vote. Master Shakespeare e Richard the Third regressam aos palcos de London. O Brazil finalmente encerra o 2014 World Cup com uma merecida vitória dos futebolistas alemães. E ainda, diz-me quem entende de tais meandros, com alegres fortunas feitas em engenhosas apostas de resultados insólitos e fixas probabilidades. — Well, Argentina has had Messi and Germany has a team.
A melhor homenagem que podemos fazer a Sophia de Mello Breyner, como a qualquer poeta, é lê-la, lê-la sempre e interminavelmente. Leia-se agora «Poesia», «No Tempo Dividido» e «Mar Novo», Assírio e Alvim, 2014. É tempo de continuar a ouvi-la!
Sophia por Arpad Szenes
ESSE GRANDE VAGO QUE HÁ NA LUA…
Lemos: «Sinto os mortos no frio das violetas / E nesse grande vago que há na lua». Sophia de Mello Breyner Andresen é símbolo da cultura portuguesa contemporânea. E qualquer adjetivação diminuiria a sua força e o seu lugar único. A decisão da Assembleia da República da translação do seu corpo para o Panteão Nacional merece um especial apoio, que não pode resumir-se a uma homenagem circunstancial, mas tem de traduzir-se num sentido reconhecimento relativamente à figura de uma das nossas maiores. O meu velho amigo José Manuel dos Santos, ao lançar, em muito boa hora, a ideia, compreendeu bem o extraordinário alcance de um gesto como este, e viu que os espíritos mais lúcidos apoiaram com naturalidade a concretização da iniciativa. E neste ponto, importa deixar claro que cada decisão, cada gesto, cada pessoa tem a sua razão única e singularíssima. Por isso, é a memória de Sophia, e tudo o que significa, que neste momento especialmente interessa, enaltecendo todas as vontades e os espíritos que permitiram à Pátria reconhecer na sua memória a essência e a força profunda da nossa própria cultura. Poderíamos fazer outras alusões e lembrar outros casos, mas nesta circunstância do que se trata é de salientar o «suplemento de alma» que Sophia deu através do exemplo, do talento e de uma força de espírito, que a colocam no centro da perenidade da nossa língua e das suas culturas. E se é símbolo, é-o também pela atitude que sempre soube assumir, nunca numa lógica imediatista ou saudosista, paternalista ou ilusória.
VEMOS OUVIMOS E LEMOS…
Nunca foi uma voz acomodada, a de Sophia, ou capaz de baixar os braços perante as injustiças e as adversidades. E, para surpresa de muitos, tomou solidariamente atitudes firmes e inesperadas, como na célebre vigília da Igreja de S. Domingos, na madrugada de 1 de janeiro de 1969 - «Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar (…) / Nos caminhos da terra / Os mapas continuam / De fome e sujeição / E continua a guerra /O cântico da flauta / E a música do banjo /Não podem apagar o concerto dos gritos (…) / O nosso tempo é tempo / De pecado organizado». E se referimos esse dia, temos de nos lembrar do clamor de revolta que significou «Mar Novo», em que Sophia - consciente da importância da História e das responsabilidades pessoais, demonstrou com nitidez que eram aqueles que, supostamente, queriam defender a pátria de antanho com velhos argumentos, os que com maior evidência se limitavam a olhar para trás, como se uma visão estática e ilusória do passado pudesse ser resposta. E foi essa exigência que fez Sophia escrever no final dos anos cinquenta, num tempo dilacerante, o «Poema inspirado nos Painéis que Júlio Resende desenhou para o Monumento que devia ser construído e Sagres»: «Nenhuma ausência em ti cais da partida / Impetuosas velas plenitude do tempo / Euforia desdobrando os seus gestos na hora gloriosa / Do Lusíada que parte para o universo puro / Sem nenhum peso morto sem nenhum obscuro / Prenúncio de traição sob os seus passos». A estranha palavra exprime uma profunda revolta, contra a recusa surpreendente do projeto, vencedor do concurso para o monumento «Mar Novo», proposto pelo irmão de Sophia, o Arquiteto João Andresen… E que significava a ideia de «Mar Novo»? Sophia não se limita a fazer eco do protesto, põe a nu o absurdo de um saudosismo retrospetivo, que recusa a ideia de uma aventura audaciosa orientada para os dias de hoje e para o futuro. Afinal, eram os anúncios de traição que ocupavam o lugar de uma cultura livre, de uma identidade aberta e historicamente enraizada.
ENIGMA DA CULTURA PORTUGUESA…
Ao lermos a sua poesia entendemos o enigma da cultura portuguesa: através da distinção entre as realidades e as esperanças, os dramas e as audácias. Em lugar da alternância entre euforia e depressão, Sophia propõe-nos uma serena procura da História como sinal de continuidade e de vida. Vasco Graça Moura disse-nos, por isso: «os que a conheceram ficaram, porventura, a compreender melhor essa sua constante recusa em abdicar da medida que tinha como própria, mesmo nos transes mais fulgurantes da revelação poética. Ressalvadas as metáforas e os outros recursos próprios da escrita, Sophia exprimia-se da mesma maneira na sua coloquialidade imediata, tinha a capacidade de se ‘distrair’ do que não lhe parecia essencial e ia diretamente ao cerne das situações e das coisas. A poesia era para ela ‘uma arte de ser’, uma elevação do solo, como a dança, uma musicalidade dotada de sentido desocultado pelas palavras, a partir da Natureza, da memória, dos meandros da alma…». E em «Lusitânia» está talvez tudo aquilo que somos e nos distingue: «Os que avançam de frente para o mar / E nele enterram como uma aguda faca / A proa negra dos seus barcos / Vivem de pouco pão e de luar». Eis a exigência dos limites e o sonho, eis da compreensão e a determinação. Mais do que todas as explicações vagas, eis que é a poesia de Sophia que pode responder quem somos.
PAÍS DE PEDRA E VENTO DURO…
Ao falar de Sophia temos de lembrar uma memória longínqua da criança, ao colo de seu avô, Thomaz de Mello Breyner, talvez em S. João dos Bem-Casados, a ouvir poemas antigos e marcantes, de Camões, de Garrett ou de Antero. Nessa recordação está a referência forte às raízes da poesia portuguesa e da nossa cultura, criando uma intérprete inovadora da genuína tradição. «Por um país de pedra e vento duro / por um país de luz perfeita e clara / Pelo negro da terra e pelo branco do muro / Pelos rostos de silêncio e de paciência / Que a miséria longamente desenhou / Rente aos ossos com toda a exatidão /Dum longo relatório irrecusável…». E é assim que Eduardo Lourenço, numa passagem essencial, nos diz que Sophia completa um vazio deixado por Pessoa. Se a «Mensagem» é ambígua e é feita de elementos contraditórios, que o «desassossego» desconstrói, Sophia não esquece o «espantoso sofrimento do mundo». É que, partindo das raízes, compreendendo a sua renovação permanente, e não esmorecendo: «Sophia inventa para o Dividido, um lar póstumo pelo qual Pessoa sempre suspirou. E em si mesmo integrou uma ausência na qual molhou os seus dedos sem se perder nela. Nela escondeu a sua noite que por ser coroada de estrelas como a de Dante não continha menos o seu peso em lágrimas». Deus é o Ausente por excelência, e não há um duplo idealizado, mas um transcendente fulgor «que como o de uma anunciação põe fim a uma espera confusa para convertê-la em presente pleno, Verbum Caro» (como diz E. L. no prólogo à antologia espanhola «Nocturno Mediodia»). «-Pedra rio vento casa / Pranto dia canto alento / Espaço raiz e água / Ó minha pátria e meu centro // Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo». É Portugal que aqui está, delimitado, como Sophia fez com a serenidade que a fez entender a perenidade e a atualidade da liberdade como dignidade do Ser.
Os nomes (Japon, Japan, Giapone, etc.) que as línguas europeias dão a Nippon, Nihon, Hi no Moto -- estes três termos significando, em japonês, a origem do sol - vêm do português Japão, por sua vez proveniente da pronúncia japuen, nos dialectos chineses de Fukien e Kwangtung, do mandarim Jih-pun que quer dizer, como Nippon, a origem do sol... Já no século XVI, João Rodrigues, o tçuzu ou intérprete,no-lo explicava. O mesmo jesuíta português, autor da "Arte da Língua Japoa", nos ensinava também a interpretação e construção dos kanji ou caracteres chineses utilizados na escrita japonesa. A influência da China na cultura japonesa afirma-se inicialmente em meados do sec.VI,com a introdução do budismo e da escrita, e vai-se afirmando militantemente até finais do sec.VIII. São 250 anos de "importação" cultural, tantos quantos os de reclusão do Japão, um milénio mais tarde, do sec.XVII ao XIX, do fim do "século cristão" à abertura forçada pelo comodoro americano Perry em 1854. No sec.VI da nossa era, como, posteriormente, com a chegada dos portugueses no sec.XVI, e ainda na chamada "restauração Meiji" no sec.XIX, a vinda de estrangeiros e suas culturas é recebida no Japão em conformidade com motivações de ordem política. Quando o Príncipe Shotoku, regente do Japão, quis afirmar a instituição imperial (e a sua casa) acima dos vários senhores e suas guerras,que partilhavam o poder, olhou para a China, essa donde tinha chegado o budismo, a escrita (e o registo histórico, legislativo e administrativo que ela faculta), como também Tao e Confúcio. O direito de propriedade e o fiscal, o penal e o administrativo, foram inspirados nos correspondentes sistemas do Império Tang chinês. Importou-se a escrita em caracteres chineses, tal como se simplificaram alguns destes para efeitos de transcrição fonética e adaptação à diferente sintaxe da língua japonesa. Esses caracteres simplificados ou hiragana eram inicialmente utilizados no relato de acontecimentos, e sobretudo por todos os excluídos da classe dos letrados, designadamente as mulheres. Assim se explica como o primeiro romance da literatura japonesa (e talvez universal) -- Os Contos do Genji -- fosse escrito em hiragana por uma senhora da corte imperial, Murasaki Shikibu. Da China também foi importada a intenção política do mito da origem celestial da linhagem imperial,que legitimaria o poder divino do imperador sobre o meramente temporal dos senhores da terra e da guerra... Mas atenção! A cultura nipónica,nos seus princípios de visão do mundo,dos homens e das coisas, não foi -- como não seria nos secs. XVI-XVII e XIX-XX -- afogada pelo que veio de fora. A cultura japonesa não imita: digere e faz render o produto desse processo de assimilação. O processo japonês de aculturação é selectivo. O budismo foi recebido na medida em que podia adaptar-se a um sincretismo religioso que, um milénio depois, o cristianismo -- pela sua fé monoteísta e a sua própria natureza religiosa e cultural, reflectida pelos seus missionários -- não poderia aceitar. Mas também por razões de ordem política:o budismo japonês inspira-se no das dinastias nortenhas da China, fortemente determinado a proteger o estado nascente e os governantes. (Curiosamente,já noutros campos, como a literatura, a influência chinesa sentida independentemente do budismo veio mais do sul da China...). Hoje ainda, um japonês culto estará consciente da origem e fundo comum da sua cultura com a chinesa,mas sabe que lhe deu outras formas e,transformando-a,lhe conferiu uma identidade japonesa. Para ilustrarmos esse modo de inculturação do que veio da China, temos de falar da escrita e do budismo e respetivas evoluções. O Budismo, que chega da China ao Japão por via da Coreia,é de orientação Mahayana ou Porta Larga -- que se afirmou na Ásia central e do nordeste,enquanto a Porta Estreita ou Theravada florescia no sul e sudeste asiático (Ceilão, Birmânia, Sião, Cambodja,Laos,,,). Percorrendo o itinerário da China e da Coreia, o Budismo Mahayana chega ao Japão com algumas alterações, numa complexidade que se manifesta por diferentes escolas ou seitas,acabando,mais tarde,até por incluir várias formas do Budismo Theravada. De acordo com o Prof. Tamaru Noriyoshi, da Universidade de Tokyo,o que desde logo distingue o budismo japonês é o seu processo de adaptação prática à sociedade japonesa, mais do que qualquer contribuição para o desenvolvimento do pensamento ou filosofia budistas. Como já disse, a introdução do budismo no Japão é indissociável da da cultura chinesa e da escrita,bem como da ideia política do poder imperial. Assim, o budismo, no Japão, confunde-se inicialmente com uma forma de cultura superior que suporta e se apoia num sistema imperial -- e o seu processo de aculturação começa no seio da família imperial e da alta nobreza. Só nas eras Kamakura (1185 - 1383) e Muromachi (1336 - 1573)o budismo se propagou por outras camadas sociais. Curiosamente,essa expansão coincide com a do poder militar (samurai ou guerreiros, e shogun ou condestável) e da interferência dos mosteiros budistas no poder secular. Aliás,daí surgirá outra característica marcante do budismo japonês: a sua íntima ligação ao poder político, ao Estado, com as obrigações reciprocas de patrocínio e controle estatal das organizações budistas e,por parte destas,de apoio moral e espiritual ao Estado e percepção de emolumentos. Já na era Nara (710-794),o governo promovia o budismo,mas controlava rigorosamente,através de um abrangente código administrativo e penal,os monges e monjas budistas. Tal controlo será ainda reforçado,depois da interdição do cristianismo,pelo shogunato Tokugawa (1603 - 1868). Um terceiro traço característico do budismo japonês -- sempre de acordo com o Prof. Tamaru Noriyoshi -- é o seu fortíssimo laço com a instituição familiar, tradicionalmente considerada a célula fundamental da sociedade japonesa. Pessoalmente, creio que se nota aqui a influência crescente da ética confucionista na era Tokugawa: Confúcio aparece no Japão, já no sec.VI, com a cultura chinesa, a escrita e o budismo, e entre os elementares ideais que propõe está, precisamente, o da solidez intrínseca da família, com o respeito dos anciãos e o culto dos antepassados. Seja como for,com a popularização do budismo, os serviços e ritos funerários japoneses -- apesar de todos os esforços do clero shintoísta que, aliás, após a restauração Meiji, irá assegurar esses e os outros ritos religiosos da casa imperial -- são ainda hoje quase sempre budistas. No sincretismo religioso japonês casa-se shinto e enterra-se budista. Finalmente, elementos e práticas mágicas, uns originários do budismo tântrico indiano,outros correspondentes a crenças autóctones antigas, marcam o budismo japonês, sobretudo nas seitas Shingon e Tendai,com o uso de símbolos e gestos mágicos.Se podemos afirmar que os elementos tântricos serão originalmente budistas,a maioria das práticas mágicas,parece-me,resulta da propensão nipónica ao sincretismo religioso e da osmose com crenças animistas e shintoístas. Ainda hoje o povo japonês é inata e profundamente supersticioso. Na nossa viagem pelo Japão -- organizada pelo Centro Nacional de Cultura no âmbito das peregrinações a que chamou "Os Portugueses ao encontro da sua História" -- visitámos o templo de Horiuji,erigido em 607 pelo Príncipe Regente Shotoku (574 - 622), perto de Nara,a primeira capital budista do Japão, complexo onde até hoje resistiram a terramotos, tufões, guerras e incêndios, algumas das mais antigas estruturas em madeira do mundo, datadas de 670! Já em Nara mesmo, visitámos o Todaiji,cuja edificação foi concluída em 749,por ordem do Imperador Shomu (reinou de 724 a 749), para albergar a estátua gigante do Buda Vairocana,símbolo da grandeza do universo e do poder do estado central. Com a transferência da capital de Nara para Kyoto,iniciando a era Heian (794 - 1160) duas novas escolas do budismo japonês se afirmam: Tendai e Shingon. A maior contribuição de ambas para a futura orientação do budismo japonês foi a da abertura a uma síntese religiosa que abrangeria budistas e não-budistas,ou seja,a fundamentação ideológica da fusão,no espírito japonês,do Budismo com o Shintoísmo, e do correspondente recurso a ritos esotéricos de natureza essencialmente mágica. A era Kamakura (1185 - 1333), que sucedeu a Heian, marca, com o estabelecimento do shogunato (sendo o primeiro shogun da história do Japão, Minatomo Yorimoto,nomeado pelo Imperador em 1192),o início da Idade Média japonesa,em que a autoridade política passa do imperador e da aristocracia de Kyoto (Heian) para as mãos de uma classe militar em ascensão,donde surgirá a divisão do Japão em senhorios feudais,aos quais,quando ali chegaram na segunda metade do sec.XVI,os portugueses chamariam reinos. Três novas escolas budistas se desenvolveram então a partir da seita Tendai: a da Pura Terra ou Jodo, a Zen e a Nichiren. A Zen surge como inovadora no Japão,mas tem raizes no budismo primitivo: a prática da meditação (dhyana em sânscrito, cha´an em mandarim, zen em japonês) e fora muito divulgada na China da Dinastia Sung (960-1279). O Budismo Zen interessa-nos aqui particularmente pela sua relação com a classe militar dos samurai,em cujo surto assenta o estabelecimento do shogunato e o primeiro período do feudalismo japonês, que se prolongará do início da era Kamakura, em finais do sec. XII, à queda do shogunato Ashikaga e fim da era Muromachi, na segunda metade do sec.XVI,por imposição do general Oda Nobunaga, que dá o sinal de partida do movimento de reunificação do Japão e que privou com os jesuítas portugueses que por lá apareceram nesses tempos.