A FORÇA DO ATO CRIADOR
"Arte e Vida"
‘O conteúdo de qualquer formação artística é a pessoa do artista.’ (Umberto Eco: 2008)
No final dos anos sessenta, refunda-se uma prática da arte dentro da prática da vida. O artista é o próprio objecto – o artista produz forma (como acontece por exemplo em Eva Hesse), escolhe objectos que evocam memória e identidade (como é o caso da Arte Povera) e podendo ainda abrir-se igualmente a hipótese do artista colocar-se na vida de um outro que não o próprio (dando voz a problemas políticos e sociais, muitas vezes a partir de vídeos ou performances). O que importa é que o acto de criar já não é especial, já não é excepcional.
A arte está afastada de conotações exclusivas – a arte existe aqui e agora e não num momento e num tempo ideal. A arte está em todo o lado e existe sempre. É feita não através de uma técnica ou material próprio, mas sim a partir de convicções do artista, dos seus desafios perante o mundo e a partir da sua identidade. É entendida como sistema, processo e experiência. É um instrumento da verdade, que clarifica as condições e a personalidade do artista. O artista transmite a relação consigo mesmo, a relação com a sociedade e até a sua relação com objectos mais banais. A cultura e o vulgar são transformados em acções que documentadas são transportadas para os museus ou galerias (que passam também a ser questionados como instituições).
Os surrealistas e os dadaístas já tinham iniciado este costume, da arte dentro da prática da vida. No surrealismo e na sua revolta contra a prosa do mundo, existe a ideia de que subvertendo e revolucionando o quotidiano e o banal, dar-se-á a descoberta e a agitação da ‘vida real’. Ao utilizarem a subversão, os surrealistas produzem objectos que aparentemente familiares, triviais ou banais apresentam um elemento estranho e bizarro que surpreende. Esta ambiguidade, muitas vezes paradoxal pode ter um alto valor cognitivo – o sujeito fruidor ao ser confrontado com a simultaneidade do conhecido/desconhecido consegue ter a noção dos limites da sua compreensão.
Esta herança surrealista que explora a dualidade entre o familiar e o estranho foi muito importante para os arquitectos e artistas no final da década de sessenta. Henri Lefebvre em ‘Critique of Everyday Life’ (2008) afirma que é a mistura complexa e paradoxal que confunde forma e significado, real e ideal, absoluto e relativo, tangível e metafísico, que se torna num estímulo libertador e de aproximação à banalidade e ao insignificante. É uma tentativa equívoca de crítica ao quotidiano – que ao ser transformando pode tornar-se suportável. No mundo ocidental a perpétua espera por algo extraordinário ou mesmo bizarro elimina a insatisfação da rotina.
Deste modo, a vida típica é repudiada, é relegada para o plano da estupidez em massa. Porém, Lefebvre declara ainda que a vida tem de ser ‘nada’ para que a existência se clarifique – o nada manifesta-se no homem através da sua infinita habilidade em libertar-se de qualquer momento, instante, estado e situação.
A arte acrescenta à vida uma dimensão suplementar – como se a única forma de a suportar fosse adicionar, clarificar e aproximar o puro do impuro, o desgosto do desejo, o super-humano da desumanização.
‘Man must be everyday, or he will not be at all’ (H. Lefebvre: 2008).
Lefebvre declara que a aproximação à vida é um acto necessário de modo a ser possível refundar o quotidiano.
A crítica do quotidiano tem como principal objectivo separar a vida da decadência. A partir de agora as acções e os pensamentos não são vistos de fora e solidificados num momento que finaliza e que é para ser contemplado. A arte, sim faz parte de uma acção que ainda não terminou e que está continuamente em mudança e que pode ainda ser transformada no momento da sua fruição.
Ao ser acção que faz parte do quotidiano, ao fazer parte da vida e ao ser vida pode ser capaz de transformar, de ser activa e com a sua mensagem e alterar a sociedade.
Ana Ruepp