TEMPO DE FÉRIAS…
As feiras, festas e romarias eram uma presença inesquecível do tempo de férias. As louças de barro são sempre uma perdição para os amantes do artesanato popular. Os pratos pintados com os mais diversos motivos, os canjirões, os jarros, as bilhas (para as cangalhas dos burros ou para transportar à cabeça), os alguidares, as assadeiras, as arrozeiras (para os magníficos malandrinhos), as púcaras para os frangos, os tachos e os potes – tudo para vender, com palha espalhada para proteger as quedas. E lembramo-nos do pote de azeite à cabeça de Mofina Mendes: «Vou-me à Feira de Trancoso, Logo nome de Jesu e farei dinheiro grosso…». E ainda Lianor: «Leva na cabeça o pote,/ O terço nas mãos, de prata. / Cinta de fina, escarlata, /Sainha de chamalote. / Traz a vasquinha de cote, / Mais branca que a neve pura! / Vai formosa, e não segura!». Ali, Lianor junto das louças… Tudo vem à memória com este homem de Eduardo Viana e tanto, tanto para cultivar da nossa nostalgia…
"O HOMEM DAS LOUÇAS" (1919) de EDUARDO VIANA
Vendido cedo para a Bristol-Clube (1919-1928, Lisboa), grande casa de jogo, restaurante e clube onde se reuniam as celebridades da época, este quadro da autoria de Eduardo Viana (1881-1967) foi vendido diretamente pelo dono do Clube ao Arquiteto Carlos Ramos. Não deve ter sido nunca repintado, ao contrário de outros quadros do mesmo autor, e, por isso, testemunha com fidelidade a capacidade expressiva do pintor em 1919. Nesse ano imediato à Guerra de 1914-18, atravessava-se um momento em que por toda a Europa devastada se proclamava, tanto no domínio político como no cultural, a necessidade de um retorno à ordem, que foi contrário ao radicalismo das vanguardas artísticas. No meio mais restrito de Portugal, o quadro apareceu como cabeça de série da redescoberta do pré-cubista francês Paul Cézanne (1839-1906) que marcou a tendência construtivista dos anos vinte, em compromisso com o dominante gosto naturalista.
Eduardo Viana, formado pela Academia de Belas Artes de Lisboa, faz a confrontação das práticas pictóricas numa só imagem, nomeadamente os cromatismos tonal de Columbano (1857-1929) e o tímbrico de Robert Delaunay (1885-1941), mostrando também que o modernismo não é incompatível com o gosto popular. À esquerda, um grande disco de delaunianas cores puras corporiza-se num alguidar, sobraçado por tons acastanhados columbanescos. À direita, a mão segura num boneco de barro popular, que Delaunay ensinara Viana e Amadeo a observar, durante a estada do casal Delaunay no Minho, em 1915-16. Tanto num braço como noutro, os volumes são facetados, sendo as facetas marcadas por saltos de claro-escuro (à esquerda) ou por contrastes de cores puras (à direita).
A composição é perfeitamente conseguida, na sua ambição de conjugar unidade e diversidade. Nos cantos superiores do quadro aparecem linhas retas horizontais e verticais, bem integradas na superfície do suporte, enquadrando a cabeça e outras formas arredondadas. No canto esquerdo predominam as cores escuras, num plano frontal que contrasta com os redondos volumétricos. No canto direito, o fundo liso e claro contrasta com cerâmicas de barro preto. Esse canto é o ponto de chegada da diagonal ascendente, marcada pela parte superior de uma das pernas, passando pelo alguidar e pela cabeça.
Rui-Mário Gonçalves (in CNC – Obras de referência).