Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

TEMPO DE FÉRIAS…

TEMPO DE FÉRIAS… MARIA KEIL À BEIRA RIO

MARIA KEIL À BEIRA RIO


Memórias antigas! Ah! Duas crianças a refrescarem-se nos dias de verão. Que prazer extraordinário tirar os sapatos e chapinhar na borda do riacho, nas águas límpidas, a ver os pequenos peixinhos a passar, assustados, a ouvir as cigarras e a olhar o labor inusitado das formigas… E vem à lembrança, sempre, o conto da princesa que guardava patos… No entanto, a imaginação é fertilíssima. E lá está a espreitar um coelho, placidamente a ver os dois meninos. Em primeiro plano, as flores silvestres são verdadeiras, e dizem-nos que o painel está entre a realidade e o sonho. As duas crianças existiram, a artista eternizou-as, e nós lembramo-nos ali mesmo de fazer o que elas fazem.

 

Maria Keil, à medida que o tempo vai andando, torna-se uma das ilustradoras fundamentais do século XX português… O que Sophia é para o conto em Portugal é Maria para a ilustração. Aliás, falando da autora da «Menina do Mar», temos de lembrar também Matilde Rosa Araújo, e tudo o que fez para dar a língua no mais puro de si a todos os jovens leitores ávidos de bons motivos para voar…

 

E oiçamos um poema inesperado de Maria Keil:

Habito as distâncias
vivo dentro das distâncias

as tuas mãos, o teu rosto,
a claridade, que pelos teus olhos… 
o mundo, que pelos teus olhos… 
povoam as minhas distâncias. 
Sabias? 
Não. Ninguém sabe de ninguém os mundos 
que cada um habita.


A partir desta imagem, podemos pensar um conto. E quem conta um conto acrescenta sempre um ponto. Como boa algarvia, Maria Keil sabia bem que a magia dos contos fantásticos é inesgotável!

 

CNC

FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO

 
Baia de Nagasaki

 

9. OS NAMBAN

 

Durante séculos, o comércio externo do Japão fez-se com dois parceiros apenas (China e Coreia), e através dos portos do norte de Kyushu. Foi com a chegada dos portugueses ao sul desta ilha meridional do arquipélago nipónico que o Japão iniciou contactos com produtos, gentes e culturas de outras regiões do globo. E é neste contexto que, a par e ultrapassando outros portos, Nagasaki passou de aldeia de pescadores a cidade e ponto de encontro do Ocidente com o Oriente Extremo. Foi o daimyo Omura Sumitada quem abriu o seu feudo aos missionários jesuítas, depois de um encontro com o padre Cosme de Torres, que então nomeou o padre Gaspar Vilela para a aldeia de Nagasaki, onde já existia uma pequena comunidade cristã, e que era governada por Nagasaki Jinzaemon, que se convertera ao cristianismo, tomando o nome de Bernardo, e era genro de Omura Sumitada. Será pela cristianização da população local e pela protecção do senhor feudal, que os jesuítas ali se estabelecerão e para lá irão levando cristãos perseguidos noutras paragens. Em 1570, o padre Melchior de Figueiredo começou a estudar a baía, bem protegida por cadeias de montanhas à sua volta, tendo em vista o seu aproveitamento para porto comercial. E foi assim que, logo no ano seguinte, se urbanizava a cidade de Nagasaki, onde afluíam mercadores provenientes de outras cidades portuárias. Nesse mesmo ano, a nau de Tristão Vaz da Veiga entrou e fundeou na baía de Nagasaki, inaugurando o ciclo da visita anual da Nau do Trato. Não resisto a transcrever um passo do relato feito por Ralph Fitch, mercador inglês que acompanhou de muito perto o comércio português no oriente, entre 1585 e 1591: When the Portugales goe from Macau in China to Japan, they carrie much white Silke, Gold, Muske, and Porcelanes; and they bring from thence nothing but Silver. They have a grest Carke which goeth thither every yeere, and she bringeth from thence every yeere above six hundred thousand crusadoes; and all this silver  of Japan, and two hundred thousand crusadoes more in silver which they bring yeerly out of India, they imploy to their great advantage in China; and they bring from thence Gold, Muske, Silke, Copper, Porcelanes, ans many other things very costly and gilded... Sucinta e abrangente exposição do comércio triangular português na região. A riqueza de Nagasaki irá então crescer, e suscitará a cobiça e ameaças de outros senhores feudais e cidades portuárias do Kyushu. Essa nova riqueza é função daquele comércio, e também sustenta a missão jesuíta e a expansão do cristianismo. Por sua vez baptizado com o nome de Dom Bartolomeu, Omura Sumitada oferece, em 1580, o porto de Nagasaki aos jesuítas que, com a cidade, o haviam fundado. Cidade e porto por eles serão assim administrados até 1592, ano em que Toyotomi Hideyoshi submete Nagasaki ao poder do governo central que, a par e passo com a unificação política e militar do Japão, se vinha afirmando. Não esqueçamos, todavia, que, em 1586, o daimyo de Satsuma, Shimazu, que não era cristão, ocupara Nagasaki  - pelo que a nau do trato, nesse ano, fundeou em Hirado  - tendo então Hideyoshi, em 1587, derrotado Shimazu e reinstalado o cristão Sumitada, ainda que submetendo-o, como Kyushu inteira, ao seu poder. Inicialmente, Toyotomi Hideyoshi, tal como o seu chefe e antecessor Oda Nobunaga  -  que, aliás, entrara em guerra aberta com os mosteiros budistas, ao ponto de arrasar todos os do monte Hiei, perto de Kyoto, e dizimado os sus monges  -  era bem disposto para com o cristianismo. O padre Luís Fróis pretende mesmo que ele se teria convertido, não fosse o preceito moral impeditivo da poligamia e da concubinagem... Há até quem suspeite de que o decreto de 1587, banindo os missionários do Japão, terá sido um gesto de raiva por uma japonesa cristã ter recusado ser concubina de Hideyoshi...  Mas razões políticas determinaram as medidas decretadas contra a missão cristã. Houve certamente quem intrigasse junto do kampaku (governo), assim reagindo ao controlo, pelos portugueses, da cidade, porto e comércio de Nagasaki, e da ascensão, em fortuna e força, dos daimyo cristãos, alguns dos quais tinham levado o zelo na demonstração da sua fé ao ponto de destruirem mosteiros e santuários budistas e shintoístas. Hideyoshi receou que esse poder ascendente conduzisse à subversão da sua autoridade sobre o Japão, ameaçasse o processo de unificação e centralização política e militar em curso, ou, ainda, que o cristianismo destruísse valores, usos e costumes tradicionais do povo japonês. Por outro lado, Hideyoshi não quis aplicar na totalidade as disposições do decreto anti-cristão. Astuto, percebeu que separar bruscamente o comércio do cristianismo, ou dos portugueses, seria arriscado, pois poderia levar daimyo cristãos a sublevarem-se, com apoio português. Assim, sempre mantendo a ameaça que o decreto era, foi tolerando a prática da religião cristã e a presença dos jesuítas, enquanto ia incitando mercadores japoneses a aventurarem-se, em navios próprios, no exterior, e enviava a Manila, para encetarem comércio com os espanhóis, por via da rota do pacífico (Filipinas, Perú, Europa), mensageiros seus. Data dessa altura, desrespeitando o exclusivo do Padroado Português do Oriente, a vinda de missionários espanhóis, de outras ordens religiosas, não jesuítas,ao Japão. E também se desenvolverá o comércio com países protestantes europeus, designadamente a Holanda. Tendo sido, durante 69 anos, o porto por excelência dos portugueses e, por 35, o centro da missão católica, Nagasaki foi sede de bispado e contava muitas igrejas, ao serviço de uma população maioritariamente católica. Ali nasceram a voga e a moda namban, e dali se foram propagando pelo Japão o gosto e estilos portugueses. Recorro a um saboroso trecho do relato de uma missão ao Miyako (Kyoto), em Fevereiro de 1590, feito pelo padre visitador Alessandro Valignano: Na manhã seguinte, os Portugueses, revestidos do seu mais fino vestuário, formaram filas e saíram. Era um espectáculo maravilhoso ver cachos de gente que se reuniram, vindos de longe e de perto, para ver a procissão antes dela chegar a Miyako. À medida que nos aproximávamos da cidade, todas as ruas por onde passava a procissão estavam cheias de gente sem conta, e todos os que observavam esta ordeira procissão de inabituais e exóticas pessoas que passeavam em vestidos resplandecentes, estavam muito admirados e falavam uns com os outros, dizendo que cada um dos da procissão devia ser um bodisatva descido dos céus... E que nos conta João Rodrigues, o Tçuzu, numa carta? Quando Hideyoshi deixou Nagoya para atender sua Mãe doente em Kyoto, todos os daimyo que estavam em Nagoya acompanharam-no a Miyako, vestidos  à moda do nosso país. Os alfaiates de Nagasaki estão todos tão ocupados que não têm um momento para poupar, e ainda assim o acompanharam a Miyako. Recentemente, jóias de âmbar, cordões de ouro e botões tornaram-se populares entre eles. Agrada-lhes a nossa comida, especialmente ovos de galinha e carne de vaca, que os japoneses dantes detestavam. O próprio Hideyoshi começou a gostar grandemente desses alimentos. É bastante admirável como tantas coisas dos Portugueses acabaram por ter tão boa fama entre eles... Os mercadores japoneses que frequentavam Nagasaki foram, naturalmente, os pioneiros da popularização do gosto namban. E aqueles que, como alguns samurai também, puderam observar as naus portuguesas, e assistiram a desembarques, procissões e missas, desenvolveram atitudes de imitação dos comportamentos portugueses. E alguns daimyo manifestaram o desejo de adquirirem relicários como os que os crentes usavam trazer e, em carta de Setembro de 1594, conta o missionário Francesco Pasio: Hideyoshi gosta muito de vestuário português, e os membros da sua corte, por emulação, vestem-se muitas vezes ao estilo português. Isto é verdade mesmo para daimyo não cristãos. Usam rosários de madeira exótica ao peito, penduram um crucifixo ao ombro ou à cintura, e às vezes até trazem um lenço na mão. Alguns, especialmente dispostos à gentileza, decoraram o Pai Nosso e a Avé Maria, e recitam-nos enquanto andam pelas ruas. Não o fazem por troça dos cristãos, mas para mostrarem a sua familiaridade com a última moda, ou porque pensam que é coisa boa e eficaz para o sucesso da sua vida quotidiana. Isso levou-os a gastar grandes somas na compra de brincos ovais com representações de Nosso Senhor e de Sua Santa Mãe... Hoje ainda se empregam vocábulos japoneses de origem portuguesa nas preces e na liturgia cristãs, como na designação de peças de vestuário e objectos de uso corrente. E podemos ver, na pintura de biombos, como noutra pintura de género japonesa, não só namban-jin (portugueses), suas naus, cavalos, mercadorias, igrejas e escravos, mas também muitos japoneses que, em cenas das ruas de Kyoto, ou assistindo a representações em teatros noh e kabuki, estão vestidos à portuguesa. Mas a cultura namban foi mais longe ainda: despertou a curiosidade por outras regiões do globo, outros povos, costumes e conhecimentos, na astronomia, na geografia, na cartografia, nas artes e na medicina. Como médico se distinguiu o padre Luís de Almeida, cristão novo,que entregou vida e bens à Companhia de Jesus, e tem hoje uma estátua na cidade japonesa de Oita. Sobre ele escreve o padre Luís Fróis: O Pe. Luís de Almeida havia já trinta anos que estava na Companhia em Japão, e tinha quase 60 anos de sua idade. Foi uma das pessoas de quem Deus Nosso Senhor muito se serviu nestas partes. A ele se pode atribuir a fundação da casa de Bungo (Oita), que depois foi colégio, e ainda das mais que naquele tempo havia, porque ele as sustentava todas com a esmola com que entrou na Companhia, e com sua indústria sustentou muitos anos os Padres e Irmãos e as casas. Ele foi o que inventou fazer o Hospital em Bungo junto de nossa casa, onde se recolhiam as crianças enjeitadas, filhos de gentios, que por sua pobreza têm por melhor remédio matá-los quando nascem. Ele curava, sendo Irmão, por suas mãos todos os doentes de chagas e podridões afistoladas, e de todas as enfermidades, que ali pela fama concorriam, por ser cousa tão nova em Japão, e os remediava corporal e espiritualmente. E tinha ali feita uma botica com tantos materiais e mezinhas que mandava vir da China, que para tudo se achava remédio em sua caridade...


Camilo Martins de Oliveira