Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Nesse tempo havia uma especial expectativa pelo sábado, momento de chegada do “Cavaleiro Andante”. Com sofreguidão liam-se os continuados, as séries históricas e de aventuras, as páginas humorísticas – em suma, tudo!
Nas férias, era um pouco mais complicado, uma vez que no Algarve era difícil de encontrar a revista. Mas o meu pai, incansável, enviava-nos nuns rolinhos de papel pardo, que chegavam no início da semana (os correios eram rápidos), os números da revista. A abertura desse tesouro era uma liturgia. E a cor da capa ressaltava em toda a sua magnitude. O exemplo que hoje reproduzo é indiscutível.
Aqui está Sherlock Holmes com as personagens fundamentais de um novo continuado que dava os primeiros passos. A autoria da capa é de Fernando Bento (1910-1996), que considero com Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005) um dos grandes clássicos portugueses da BD. Aqui estão todas as características e qualidades de Bento – o traço inconfundível, capaz de interpretar o carácter e a psicologia, a criteriosa escolha da cor, a segurança irrepreensível, capaz de dar vida, realismo e romance à ilustração.
Devo dizer que a literatura e a ilustração para jovens exigem um domínio muito especial da técnica e da arte. Tudo importa e não é aceitável para um jovem, de atenção desperta, um erro de movimento ou de perspetiva. E Fernando Bento era muitíssimo cuidadoso nesses campos. Olhando para Lucy Parr e para Mary Holder compreende-se todo um mundo de diferenças e de distância… Percebemos a virtude e a perversidade.
Durante as férias havia maior disponibilidade para ler tudo… E as histórias de quadradinhos eram uma magnífica introdução para a literatura a sério – Moby Dick, Beau Geste… Adolfo Simões Müller teve, aliás, a grande qualidade de ser muito criterioso na escolha de desenhos e escrita de qualidade. Por isso o «Cavaleiro Andante» (1952-1962), na sequência do «Diabrete» (1941-1951) foi um caso especial nesta arte.
Essa a memória que hoje recordo. Não esqueço, obviamente, «O Papagaio» (1935), «O Mosquito» (1936) e o «Mundo de Aventuras» (1949), mas o meu tempo foi o do «Cavaleiro Andante»…
Estátua de São Francisco Xavier (ao centro), Angiró (à esquerda) e Bernardo, o japonês (direita) no Parque Xavier (Cidade de Kagoshima, Japão)
10. REVENDO E RESUMINDO
A memória de um velho, quando conta até dez, fica tão contente que até lhe apetece repetir tudo o que disse antes. Tudo não, nem tanto conseguirá, mas , pelo menos, o quanto lhe reponha na mão o fio da meada que sempre lhe parece esquecida... Tenho que recordar o que contei, para me lembrar do que pensava contar a seguir. Tudo isto é fado. Quando três portugueses arribam ao Japão arribam ao Japão em 1543 ou, seis anos mais tarde, ali chega a primeira missão de jesuítas, conduzida por S. Francisco Xavier, o país encontrava-se num período conturbado, durante o qual vários "reinos", senhores feudais e da guerra, combatiam entre si, sem que o imperador tivesse sobre eles qualquer autoridade ou fosse, simplesmente, o poder unificador da nação japonesa. Tal período inicia-se com as guerras Onin (1467-1477) e prolonga-se sté à queda do shogunato Ashikaga e ao desencadear da reunificação do Japão por Oda Nobunaga (1568). Francisco Xavier parte de Goa a 15 de Abril de 1549, acompanhado de três cristãos japoneses (um dos quais, Yajiro, de que já falei, era samurai, os outros dois sendo, provavelmente, seus servos, que com ele teriam fugido do Japão na nau de de Jorge Álvares, e que Xavier teria encontrado em Malaca em Dezembro de 1547). Completavam o grupo o padre Cosme de Torres e frei João Fernandes. Desembarcam em Kagoshima, terra natal de Yajiro, em 15 de Agosto de 1549, onde são recebidos de braços abertos. Como nós fomos, em 2010, na igreja de S.Francisco Xavier, naquela cidade. O tempo e o modo do Japão, à hora da chegada dos portugueses, será a circunstância em que se desenvolverá o chamado século cristão, com o progresso rápido da evangelização e, depois, com as perseguições até ao martírio de muitos (sobretudo japoneses) e à expulsão de todos os missionários e dos portugueses mercadores. As rivalidades entre senhores feudais, a sua própria concorrência ao baptismo cristão para obterem armas de fogo e o benefício do comércio dos portugueses (sobretudo este, posto que, quanto a mosquetes, depressa os japoneses os fabricaram em Sakai); o movimento de unificação, conduzido pelos senhores da guerra Nobunaga, Hideyoshi e Yeasu, este vindo a ser o iniciador do shogunato Tokugawa; a influência política das seitas e mosteiros budistas ( e falarei dos kenmon); a desconfiança do bakufu , aliás alimentada por adventícios holandeses e ingleses, de que a evangelização católica visava objectivos de cruzada e conquista política... Tudo isto pesou no destino do cristianismo e dos portugueses no Japão! Diga-se, a talho de foice, que a tal ideia de cruzada não era só pura invenção protestante: os próprios Xavier, Valignano e outros jesuítas tiveram muitas vezes de enfrentar pessoas e conceitos firmados nas cortes portuguesa e espanhola, que defendiam que o Japão deveria ser outro Peru, como terra de conquista espiritual e temporal! Mas, como já disse, é sobretudo interessante, hoje em dia, observaros sucessos e insucessos do cristianismo no Japão, de um ponto de vista cultural ( se o budismo se japonizou, que se passou com a inculturação do cristianismo?) e político (seria a cristianização percebida, pelo crescente poder centralizador, mais como ameaça à independência e autenticidade japonesa, ou, pragmaticamente, como mais um obstáculo à reunificação?). Já referi Shusaku Endo, e com ele nos interrogámos sobre o porquê do cristianismo surgir, aos japoneses, como estrangeiro. E verificámos, com o professor Suzuki Norihisa, como o cristianismo progrediu no Japão em tempos de mutação social e subversão de valores, mas esses são, simultâneamente períodos em que também se faz sentir uma maior necessidade de coesão nacional. Vimos que quando, com S.Francisco Xavier, em 1549, chegaram os primeiros jesuítas, o Japão atravessava um período de instabilidade e guerras intestinas, nas quais, aliás, se envolveram representantes do shintoísmo e do budismo, designadamente monges budistas, sem que essa religiões conseguissem responder às aspirações a uma nova ordem espiritual e secular de grande parte das populações. Assim, foram estas sensíveis à pregação de novos valores, e rapidamente o número de convertidos ultrapassou as três centenas de milhar. Mas também é facto que a cumplicidade circunstancial entre jesuítas -- procuravam induzir a conversão das massas pela prévia adesão dos senhores -- e os daimyo -- que calculavam que a sua conversão lhes facultaria o acesso ao comércio dos portugueses -- foi um factor de instabilidade, como todas as alianças em tempos conturbados, e, sobretudo, um risco político perceptível pelos arquitectos da unificação do Japão, pois o cristianismo proclamava uma ordem política e social assente na ideia da responsabilidade das pessoas perante o único Deus de todos. Contrariamente ao budismo, religião importada da China (ou Índia-China-Coreia) um milénio antes, mas que logo se adaptou à coexistência sincrética com o shintoísmo autóctone, o cristianismo não se misturava, era a alternativa do Deus único e transcendente ao "politeísmo" e animismo locais, era a proposta de redenção do homem originalmente pecador contra uma visão optimista da natureza humana em convívio com os kami, era uma perspectiva linear e escatológica do tempo frente a uma concepção cíclica do mesmo, era a ideia de pessoa livre,e em consciência ela mesma responsável perante Deus, face a uma ética de integração social baseada na pertença do indivíduo à natureza, ao grupo e à família. Era, finalmente, uma visão universalista do mundo, mas oposta ao particularismo dos valores próprios da cultura nipónica. Todas essas razões políticas e culturais, mais outros factores já pontados, e ainda as rivalidades entre ordens religiosas católicas -- quando arribaram dominicanos, franciscanos e agostinhos espanhóis, vindos pela rota de Manila, sem respeito pela determinação papal do Padroado Português do Oriente, que Filipe II (I de Portugal) respeitara -- tudo isso levou Toyotomo Hideyoshi, em 1587, a publicar os primeiros éditos do que se tornaria, nas décadas seguintes, uma perseguição ao cristianismo, até à expulsão dos portugueses.