A VIDA DOS LIVROS
«Memórias Soltas» de Manuel Jacinto Nunes (Aletheia, 2009) são recordações ao correr da lembrança de um dos economistas portugueses que melhor compreendeu uma ciência social que apenas poderá singrar e responder às crises se souber lidar com a incerteza.
UM REALISTA ESPERANÇOSO
Manuel Jacinto Nunes (1926-2014) era um homem culto e sereno. Conheci-o em diversas circunstâncias e em funções múltiplas e tive dele sempre a mesma impressão de afabilidade, de inteligência, de sobriedade e de abertura de espírito. Foi assim até à última vez que nos vimos, com a sua simpatiquíssima mulher, na embaixada de um país amigo. Como se compreenderá, ao longo de muitos contactos, houve momentos mais complexos e outros mais distendidos, mas a sua natureza não era dada a alterações de humor. A sua atitude circunspecta associava-se a um humor fino, que a extraordinária cultura tornava muitas vezes deliciosamente surpreendente. Dotado de grande experiência, partilhava a ideia que um dia foi expressa pelo dramaturgo que nos deixou por estes dias, Ariano Suassuna: «o otimista é um tolo, o pessimista, um chato, bom mesmo é ser realista esperançoso». Assim o conheci sempre. O Professor Jacinto Nunes era, sobretudo, um pedagogo e um estudioso, um académico atento, por isso punha reservas relativamente às simplificações e aos dogmatismos. Conta a lenda que Oliveira Salazar, de quem o economista foi Subsecretário de Estado, com poderes muito alargados, sendo Ministro das Finanças A.M. Pinto Barbosa, lhe teria dito que sabia das suas inclinações keynesianas, mas que tal não o trazia preocupado porque isso lhe passaria. A verdade é que nem Jacinto Nunes era um seguidor ortodoxo de qualquer escola, nem a sua coerência de humanista e a crença na sociedade aberta viriam a esmorecer vida fora. Aliás, por isso mesmo, foi um dos esteios fundamentais da transição constitucional, com provas dadas, gozando do respeito geral de quem com ele trabalhou – o interesse nacional e a democracia articulavam-se com os ideais europeus dos pais fundadores do pós-guerra, cujos valores partilhava.
CONHECEDOR DA HISTÓRIA ECONÓMICA
Conheci-o como Governador do Banco de Portugal, como Vice-Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças, como Presidente da Caixa Geral de Depósitos, como Presidente da Academia das Ciências, mas sobretudo como profundo conhecedor da história económica, em especial do último século, já que esteve no centro dos acontecimentos e das decisões desde muito jovem. O seu currículo é impressionante. Quando elaborei os Subsídios para a História do Ministério das Finanças contei com o seu inexcedível apoio. E lembro-me de ele ter ficado surpreendido pelo facto de o resultado dos seus contributos, quase até à hora de fechar a edição, ter sido inteiramente aproveitado, tal a sua riqueza e pertinência. E testemunho que a sua memória e o seu escrúpulo iam até à indicação rigorosa e detalhada dos valores monetários, negociados ou renegociados, designadamente no âmbito do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. E foi muito interessante (e para mim uma experiência riquíssima) o facto de os testemunhos dos Professores Pinto Barbosa e Jacinto Nunes encaixarem um no outro impecavelmente. Houve uma complementaridade total de entendimento e de compreensão dos problemas, relativamente a um período muito complexo da vida nacional. O Ministro e o Subsecretário de Estado de outrora reconstituíram-me, cada um por si, em manhãs de trabalho intenso e sem gravadores, esses tempos de fim da autarcia e de internacionalização necessária, percebendo-se as resistências do Presidente do Conselho, nas vésperas de adesão à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), do fim da pauta aduaneira protecionista, da alteração do velho sistema fiscal dos rendimentos normais e do prenúncio da grave questão colonial. E se falo de articulação, a verdade é que havia por vezes leituras diversas, não nos factos, mas nos objetivos, o que muito enriqueceu esses testemunhos, que o tempo e a moderna historiografia plenamente confirmaram. Se Pinto Barbosa (membro do governo de 1950 a 1965) trazia longas e preciosas notas, muito completas, que explicava detalhadamente, Jacinto Nunes, membro do governo de 1955 a 1959, tinha poucos apontamentos, mas revelava um conhecimento de pormenores, num grau impressionante, o que se deveu à circunstância de ter tido a seu cargo, em simultâneo, num período determinado, as áreas do Tesouro e do Orçamento, o que em termos de funcionamento da Administração Pública era decisivo.
ACADÉMICO E HUMANISTA
Se me perguntarem o que retenho do meu contacto com Manuel Jacinto Nunes e dos seus ensinamentos, digo, sem sombra de dúvida, que é a sua faceta de académico e humanista, capaz de compreender a ciência económica como uma ciência social difícil e sempre posta em causa, em razão da incerteza e da complexidade. A recente crise financeira e as suas origens tiveram, por isso, da sua parte uma apreciação fortemente crítica, uma vez que descria dos determinismos e das projeções lineares, e não esquecia os ensinamentos da sua dissertação de doutoramento sobre «Rendimento Nacional e Equilíbrio Orçamental» (1957). E, se conhecia, como muito poucos, toda a obra de John Maynard Keynes (acusando muitos que falavam dela de a não terem lido), o certo é que compreendeu criticamente o seu alcance. A essência do problema para Keynes era a incerteza, afastando a ideia da previsibilidade perfeita e exigindo a prova real nas políticas públicas. A condição «ceteris paribus» é posta em causa pela história, em razão da mutabilidade determinada pelas invenções técnicas. E a verdade é que Keynes não esqueceu a moeda. O mestre português sempre disse, por isso, que os seguidores do professor de Cambridge leram (e mal) uma parte apenas da sua obra, relativa à instabilidade do capitalismo, mas não compreenderam a exigência de respostas práticas à incerteza social e política. Afinal, como Jacinto Nunes ensinava, na linha de Leijonhufvud: «o keynesianismo tornou-se, diferentemente da ideia de Keynes, uma teoria antimonetária e não relacionada com a teoria dos preços». Não pode desprezar-se a política monetária, já que o motivo especulação constitui razão para a variação das taxas de juro a longo prazo, que devem ser acompanhadas em nome de um investimento são. De facto, a política de investimento do Estado não é neutral, importando saber qual a capacidade produtiva (como disseram Harrod e Domar) e que o emprego é um problema político. Com meridiana clareza, o professor sabia que para compreender uma obra é preciso lê-la toda, inclusive as entrelinhas e integrar as lacunas… Leitor permanente, atento e insaciável, considerou, por exemplo, o dinamismo de Schumpeter um elemento crítico fundamental para a ciência moderna, não pela suposta profecia do austríaco, mas pelo seu método de partir da capacidade inovadora do empresário a longo prazo. Do mesmo modo, reteve na obra de François Perroux a importância da relação entre o poder (macrodecisão) e a sociedade humana, incorporando a complexidade e as assimetrias no desenvolvimento das instituições e da concorrência. Com o seu sorriso inconfundível e o olhar curioso, a Manuel Jacinto Nunes foi sempre a cultura crítica que o entusiasmou, nunca qualquer dogmática iludida com o controlo da realidade.
Guilherme d'Oliveira Martins