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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO

 

Sobremesa “o primeiro prazer de qualquer comida: o dos olhos que a vêem”

11. SHABU-SHABU E OUTRAS IGUARIAS

 

O grupo que o CNC reunira para uma visita ao Japão desembarcou no aeroporto internacional de Kansai, construído sobre uma ilha artificial, no mar junto à costa leste da ilha de Honshu, distando umas dezaenas de quilómetros de Kyoto e Osaka. Ficámos alojados em Kyoto, pelo que, ao fim do dia, alguns de nós se sentiram com força e coragem para uma caminhada a pé até Gion, bairro antigo de bares, restaurantes, casas de chá, onde actuam gueishas que ali têm escolas e residências. Fomos sentir o ambiente e jantar  -  sentados em tatami, tapetes de palha de arroz que cobrem o chão, à moda tradicional japonesa  --  a um restaurante de shabu-shabu. Dá-se tal nome a uma fervura de carne de vaca, cortada em finíssimas fatias e que, tenríssima, se desfaz na boca, e legumes. Shabu-shabu é uma onomatopeia, apenas tenta reproduzir o ruído da fervura daquele caldo, ao qual cada um vai buscar, com os seus ohashi ou pauzinhos que servem de talher, os pedaços de substância que logo leva à boca, depois de os mergulhar no molho temperado que verteu numa tigela... É este o ponzu, com um toque de lima ou de sésamo. Tal como o sukiyaki  (que é parecido, se serve nos mesmos restaurantes, mas é mais apurado) e o tonkatsu (este sendo de carne de porco panada e frita, petisco mais barato, muito popular em tasquinhas), estes pratos surgem, ao jeito e para o paladar japonês, durante a restauração Meiji e inicialmente em Kobe e Yokohama, portos abertos aos estrangeiros, cidades mais cosmopolitas, já que aí mais facilmente se impôs o hábito de consumode carne, "à ocidental", muitas vezes prescrito pelo budismo. Os lusitanos convivas  -  ainda que queixosos de dores nas pernas por se sentarem "à japonesa"  - apreciaram o prato  de inculturação do nosso bife no gosto nipónico... Mas apesar dos meus repetidos esforços, já não consegui converter nenhum deles a partilhar comigo, nos restantes dias de estadia, o pequeno almoço japonês, composto de peixe grelhado, legumes ou algas e arroz acompanhado de picles, além da infalível sopa de pasta de soja fermentada ( miso-shiru), de que tanto gosto... E quanto às outras refeições em que se serviu cozinha local  -   com excepção do teppan-yaki (peixe ou marisco, carne de vaca e legumes, grelhados na chapa), herança ainda da era Meiji, ou da tempura (peixe ou marisco e legumes vários, fritos ao jeito dos nossos peixinhos da horta), preparado que, dizem, tem origem portuguesa, no sec. XVI  --  pouco generalizado foi o apetite despertado pelas iguarias nipónicas... Todavia, trata-se de uma das mais delicadas gastronomias do mundo, e tem também uma dimensão cultural e estética que não nos deixa indiferentes. Passo a contar. Pesquisas arqueológicas descobriram que remonta a dez mil anos antes de Cristo (início do período Jomon) o regular consumo de peixe e marisco no Japão, e desde muito cedo se criou o hábito de o comer cru. Será só no período Yayoi ( do fim do Jomon,em 300 a.C. até 300 d.C.)  que se inicia a cultura do arroz no arquipélago, e esse cereal tornar-se-á no principal alimento do povo japonês. Completando a nutrição das proteínas do pescado e dos hidratos de carbono do arroz, recorreu-se ao consumo de algas marítimas e de raízes e verduras que as montanhas ofereciam. Destes produtos se retiraram depois condimentos, temperos e acompanhamentos: a fermentação do arroz em água deu o vinho japonês ou sake, donde se tirou vinagre, a fermentação de soja forneceu miso para sopa ou shoyu para molhos, além de que a pasta dessa leguminosa se popularizou como tofu. Com a introdução do budismo, no sec.VI, a propagação de uma alimentação vegetariana levou à importação de legumes da China, para serem cultivados no Japão. Tudo tem a ver com geografia e religião. Até, ao que parece, o significado de tempura: consta do livro de bordo da nau em que regressaram ao Japão os quatro meninos fidalgos de Omura  pois fora a duquesa Dona Catarina de Bragança que ordenara o embarque de peixe frito para consumo daqueles, por se estar então nas têmporas da Quaresma...

   Pessoalmente, sempre gostei de começar um jantar japonês pelo sashimi, essas finas fatias pequeninas de peixe cru, que levemente mergulhamos num ponzu ou num shoyu com wasabi. E de a terminar, antes do doce ou da fruta (sempre em porções mínimas), com a tigela de arroz cozido (o pão japonês), acompanhado de picles e de uma miso shiru. Pelo meio, o kaiseki ryori  (ou, em sentido lato, típica refeição japonesa, conceito derivado do honzen ryori,  ideia de ementa com vários serviços e suas regras, própria à corte imperial no período Heian) poderá ter mais ou menos pratos , seguindo os modos de cozinhar que a tradição assim classificou:

      1. Shirumono ou sopas  --  que podem ser caldos claros (sumashiru) ou de pasta de soja (misoshiru)

      2. Yakimono ou grelhados  --  que podem ser de peixe, marisco, carne e legumas

      3. Nimono ou guisados  --  em regra de peixe em caldo de shoyu e sake

      4. Agemono ou frituras  --  de peixe, galinha ou legumes, a tempura sendo uma classe autónoma nesta categoria

      5. Mushimono ou cozidos ( a vapor)  --  que podem ser de camarão ou outro marisco, numa gelatina de farinha e ovo

      7. Sunomono e Aemono  --  peixe e legumes avinagrados ( suno) como escabeche, ou num molho de sésamo ou tofu (ae)

      8. Yosemono e Nerimono  --  preparados, os primeiros com agar-agar e certos peixes ou galinha, de forma a constituir gelatina à sua volta, os segundos para formarem uma          pasta

      9. Gohammono  --  arroz (gohan) cozido com ingredientes vários

      10. Menrui  --  pasta (massas alimentícias) servidas quentes ou frias

      11. Nabemono  --  caldos substanciais,feitos com tofu, peixe, galinha, legumes.

   Mas os grandes chefes nipónicos aconselham-nos algumas ementas, a partir do ichiju-sansai, onde assentam todas as propostas. Este é constituído por uma sopa e três pratos: um de sashimi, outro de yakimono, e um de nimono. Um kaiseki-ryori terá normalmente onze serviços, incluindo, no final, o kudamono (fruta) e os wagashi ( bolinhos ou doces, em regra de feijão) com o matcha  (feito com chá verde em pó, amargo, como na cerimónia do chá). Dizem alguns desses mestres da culinária nipónica que, importante mesmo, é que a ementa inclua iguarias confeccionadas de cinco maneiras, com cinco paladares e cinco cores, para agradar aos cinco sentidos dos convivas. Os cinco preparos são cortar (como para o sashimi), ferver, grilhar, fritar e cozer. Os cinco paladares são doce, salgado, azedo, amargo e aromático. As cinco cores: branco, preto, amarelo, vermelho e verde. Os cinco sentidos: vista (apresentação), ouvido (ruídos da comida), olfacto (aromas e cheiros), tacto (sensação de quente ou frio) e, no fim ou topo de todos, o paladar. Por outro lado, além da indispensável frescura dos ingredientes, e tradicionalmente também por ela, as ementas japonesas procuram os produtos da estação do ano, e a forma e decoração dos pratos ou tigelas em que os alimentos são servidos diferem sempre uns dos outros, conforme o petisco que apresentam e a cor e atmosfera das estações do ano. Em refeição festiva, esses suportes de laca ou porcelana finas oferecem, com as cores e disposição dos alimentos que contêm, o primeiro prazer de qualquer comida: o dos olhos que a vêem. Mas não é preciso ir a um ryotei caríssimo para usufruir desse gosto estético e gastronómico. Até as lancheiras, as caixas do o-bento ou merenda do almoço obedecem a esse cuidado estético: muitas vezes, ao deparar com quadros do Mondrian, evoquei a geometria da arquitectura japonesa, ou ainda o desenho de portas e janelas, como das lanternas portáteis, em que a translucidez do papel de arroz se apoia em discretas tiras de madeira. Quando, no shinkansen (comboio-bala), a caminho de Tokyo, abri a caixa do meu bento, logo reparei nos compartimentos lineares e desiguais no tamanho desenhado por finas divisórias de madeira, contendo cada um a sua dose de alimentos diferentes pela cor, pela substância, pelo paladar. O seu consumo não obedece a qualquer ordem pré-estabelecida: vamos comendo, daqui e dali, conforme conversamos com eles. Na sua apresentação, está todavia a proposta de oferta, em quantidades que serão, para nós, umas amostras, de produtos próprios à estação da natureza. E a intenção de nos conformar a ela, tornando-os mais apetecíveis pelo prazer cromático que, à vista, cada petisco em seu arrumo dá. Em toda a sua sofisticação, o bento é almoço de merendeira, comida popular para o funcionário, o viajante, o empregado de comércio ou escritório, o trabalhador comum. 

Camilo Martins de Oliveira