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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO

 

Momiji na área do templo de Byodo-In(Kyoto)

12. A NATUREZA É COMUNHÃO

 

No seu Dai-Nippon (O Grande Japão) descreve a dado passo Wenceslau de Moraes esta cena ao ar livre: Nos grupos preguiçosos observa-se, como uma revelação, o instinto do japonês para despir o seu kimono, para pousar na erva o seu pé nu; é o instinto inconsciente para a natureza, para a terra-mãe; é essa paixão predominante, intensíssima, duma animalidade enternecedora, que o leva a oferecer-se em nudez à carícia dos contactos, do ar, da água, do solo, da criação que o rodeia... Parece-me este sentimento mais próximo do do algarvio Teixeira Gomes do que do "nobel" Yasunari Kawabata, por exemplo: sem perder sensualidade, nem sentido algum do prazer de estar, a comunhão do japonês com a natureza, quiçá porque envolta de cultura shinto, é simultâneamente telúrica e mística. Sensual, afectiva e espiritual. Se fosse japonês de gema, teria Ortega dito que el hombre es un transfuga de la naturaleza ?  Traduzo o início desse magnífico romance do Kawabata, intitulado Kyoto:

   Chieko descobria que, no tronco do velho bordo, tinham desabrochado violetas.

   «Olha, elas também florescem este ano», pensava ela perante essa doçura da primavera repentinamente presente.

   Era, na verdade, uma árvore grande, esse bordo, tanto maior por estar num exíguo jardim, no centro da cidade, e porque as ancas de Chieko nem sequer igualavam o tronco espesso. Tronco de casca velha e rude, coberta de musgo verde, nada em comum tinha, é verdade, com o corpo tenro da adolescência...

   À altura das ancas de Chieko, o tronco inclina-se ligeiramente para a direita; um pouco acima da sua cabeça, baixa muito para a direita. Após esse movimento, os ramos surgem, estendem-se e tomam posse do jardim. Os mais compridos, já pesados nas extremidades, dobram-se ligeiramente.

   Ali onde a árvore mais se inclina, talvez um pouco abaixo, adivinham-se duas pequenas cavidades no tronco; em cada uma delas, rebentaram violetas. E, em cada primavera, dão flores. Tanto quanto Chieko se recorde, ali estiveram esses dois rebentos de violetas.

   Cerca de trinta centímetros separam as violetas de cima das de baixo. A menina que Chieko era, acabava por perguntar-se:

   «Será que as violetas de cima e as de baixo se encontram? Conhecer-se-ão? Que significado terá, para as flores, "encontrar-se", "conhecer-se"? »

   Em todas as primaveras havia ali três ou cinco flores, nunca mais. Eram poucas mas, todavia, naquelas cavidades do alto da árvore, em todas as primaveras, surgiam botões e desabrochavam flores. Chieko comtenplava-as da galeria, ou do pé da árvore, levantando a cabeça; acontecia-lhe ser tocada pela "vida" dessas violetas no tronco, mas, por vezes, a "solidão" delas invadia-a:

   «Ali nasceram, ali continuam a viver...»

...............

   Era um dia de primavera muito doce, em que o céu se enche de bruma, como árvore em flor. 

 Creio que caberá aqui a prometida transcrição de passos ou trechos do capítulo Momiji! de Serões no Japão do nosso Wenceslau: O mês de Novembro (e em Novembro chegou ao Japão o grupo do CNC), para o sentimento profundamente amante do nipónico pelas coisas gentis da criação, é, fora de dúvida,um mês abençoado. É em Novembro que floresce o crisântemo, o que já é dizer muito. (O crisântemo, bastas vezes o lembrámos durante a nossa peregrinação, é a flor imperial).  Mas convém advertir que as galas outonais não ficam por aqui....   Pois no Japão, mercê das circunstâncias especiais do clima e também da especialidade da própria vegetação,o espectáculo é, mais do que em qualquer outro canto do mundo, especialmente sedutor.  - Momiji !  - ora aqui está uma palavra que nenhum japonês deixará de pronunciar sem alvoroço. Momiji quer dizer, em geral  --  folhagem vermelha do outono  --  mas aplica-se de preferência para designar uma certa árvore, aqui muito abundante, cujas folhas, graciosamente digitadas, o Outono com intensíssimo deslumbramento ruboriza. Ao momiji chamam os franceses érable, os ingleses maple, e nós chamamos bordo, se não erro; penso que as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido. São,neste país, vários os sítios preferidos para se ir admirar os momiji, em meados de Novembro. Sem me afastar muito do meu poiso, cito o vale do Arima, e em Kyoto e seus subúrbios o parque de Kiyomizo... Nós admirámos a magnificência outonal dos Momiji, sobretudo em Kyoto, quer cerca do Pavilhão de Prata, ou do Byodo-in, como ao longo do passeio pela "senda dos filósofos" até ao parque de Maruyama e ao templo de Kiyomizu-dera, de cujo elevado terraço o nosso olhar cobriu uma verdadeira floresta de bordos cintilantes de tons de outono ao pôr do sol. Já Moraes apontava este ponto de vista como um dos melhores em Kyoto. Nesse mesmo terraço, Chieko revela ao seu namorado Shinichi que, recém nascida, fora encontrada ao abandono e adoptada pelos que hoje eram seus pais. Fá-lo, à mesma hora equinocial do anoitecer, ainda que na primavera: Do Nishiyama (cadeia de montes que circunda Kyoto do lado ocidental, oposto ao do Kiyomizu, situado no lado oriental, junto ao Higashiyama), estendiam-se os tons cálidos de um crepúsculo primaveril, que invadira, como bruma alaranjada, metade do céu de Kyoto...   ... «Já está escuro!». E, pela primeira vez, Chieko voltou-se para ele. Brilhavam-lhe os olhos. «Tenho medo», disse ela, levantando os olhos para o tecto do grande templo. A espessa cornija de cipreste, massa perdida na profundeza das trevas mergulhava sobre eles. Assim termina o capítulo que, como vimos, começara com rebentos de violetas no tronco de um momiji. Wenceslau de Moraes termina o seu capítulo em modo popular e poético: Antes de pôr termo ao assunto dos momiji, talvez não venha fora de propósito, a citação de alguns exemplos de poesia popular, do folclore sempre tão digno de consulta em qualquer caso que se estude. A seguinte uta (poesia) dá bem ideia do interesse que desperta a curiosa coloração:

 

             Aki ó-matsu

         Hito ó-mayoasu,

            Momiji-kana!

    A tradução aproximada... e de pé quebrado, é como segue:

           Quando vem vindo o Outono

           Quanto alvoroço se sente!...

           -- Ânsia d´ir ver, nas florestas,

           O momiji, em rama ardente!... 

   A uta é uma cantiga popular, mas o que Moraes aqui liberrimamente traduz  --  numa quadra ao gosto português  --   é um haiku.  Já não sei se seria haiku também o original da última quadra:

   Outras vezes, o momiji traduz a volubilidade, a inconstância de carácter; em contraste com o pinheiro, cuja rama persistente, em qualquer época do ano, retém a mesma cor. Diz outra uta:

           Muda de cor o momji,

           Tu também és variante.

           Eu sou qual verde pinheiro,

           No mesmo verde constante.

Apenas sei que, na celebração do Ano Novo  --  que é, como o Natal para nós, festa de família  --  o símbolo que se vê em todo o lado forma-se com uma cana de bambu e um raminho de pinheiro, e quer dizer: sê flexível como o bambu e persistente como o pinheiro. Resta-me traduzir uns haiku, poemas de dezassete sílabas (5-7-5) que recolhem sempre um momento  --  instante no tempo  --  de comunhão  --  da alma e dos sentidos  --  com a mãe natureza e os seus espíritos. Um para cada estação do ano:

           minha terra onde

        em redor o meu olhar

          vê sorrir os montes...

   Este é de Shiki.O riso ou sorriso das montanhas assinala a primavera...

           cálido Verão

        mas onde tão brancos são

            rostos de virgens...

   De Seido. Nem tudo o calor consome.

           manhã de outono

        diz a brisa segredos

           que sopra às folhas...

   De Seibi. Pelo rumor das folhas se conhece o Outono.

           dormem os montes

        será que estão sonhando

           um sonho jmontanha?

   De  Mutsuo Takahashi, nosso contemporâneo. O sono do inverno é sonho grande.

A nossa descoberta dessa epifania dos momiji no longínquo Japão, fez-me lembrar o episódio dos Contos do Genji, quando o príncipe confia a um velho monge que fora até àquele retiro perdido na montanha em busca da cura para o mal que o perseguia, essa ideia de que a flor que só uma vez, em toda a eternidade, desabrocha, nunca se poderá encontrar... Ao que o monge responde, com os olhos marejados de lágrimas, com este waka:

           no fundo dos montes

           uma só vez abri

           a minha porta de pinho

           e vislumbrei a flor

           que jamais vira... 

Quando, há muitos anos já, vim pela primeira vez a Kyoto, foi em meados de Agosto, na despedida do Verão, para assistir à celebração do Dai-monji, esse fogo que, nas encostas do Higashiyama se acende com a forma do carácter Dai (grande) e alumia a cidade, onde se apagaram as luzes eléctricas, para que todos possam ver aqueles lumes de escolta, luzes flamejantes que acompanham as almas que regressam aos espaços celestes. Percebi mais tarde que também anunciavam o Outono e o esplendor cromático dos momiji, cheio de um sol intrínseco. Lendo Kawabata: As tintas das montanhas abrasadas pelos "Lumes da Escolta", lá longe, sobre as trevas do céu, despertavam no coração de Chieko os tons do Outono nascente...


Camilo Martins de Oliveira