A VIDA DOS LIVROS
De 18 a 24 de agosto de 2014
«O Essencial sobre o Tema da Índia no Teatro Português», de Duarte Ivo Cruz (INCM, 2011) é um ensaio que constitui uma excelente oportunidade para compreendermos a leitura, contraditória e algo surpreendente, que foi sendo feita em Portugal sobre a Índia, o Império e os seus fumos…
DESCONFIANÇAS DA ÍNDIA
As considerações que constituem esta obra são do maior interesse não só porque fazem uma análise muito completa sobre a dramaturgia portuguesa a propósito do tema da Índia, mas também porque a integram na reflexão e nas repercussões globais do debate interno sobre a expansão imperial. Tal ligação permite-nos entender melhor o que encontramos em «Os Lusíadas» na algo surpreendente e ainda incompreendida fala do Velho do Restelo, bem como nas opiniões de Sá de Miranda presentes na sua importante obra poética. Como Eduardo Lourenço tem salientado ao longo da sua obra ensaística, o tema do império para os portugueses envolve sempre sentimentos paradoxais, desde a glorificação à depressão. Neste texto, verifica-se que essa contradição sente-se desde sempre, o que obriga a um especial esforço de compreensão que chega aos nossos dias. Aliás, uma certa recusa de debate sobre a atitude portuguesa no mundo decorre da coexistência de fatores conflituais. De facto, a Índia «percorre a História e a Literatura» e «marca a mentalidade como centro de cultura ‘alternativa’ ao espírito europeu, origem de um estilo, referência mitológica, alfobre de heróis…». Entende-se, perante o paradoxo, que haja o que o autor designa como «um início politicamente incorreto». Começamos pela «Farsa Chamada Auto da Índia» de Gil Vicente, representada perante a «Rainha Velha, D. Leonor, em 1509. Podemos ainda aludir o «Auto da Fama» (1520), o «Auto Pastoril Português» (1523) e o «Triunfo de inverno» (1529), mas sente-se no «Auto da Índia», como no «Auto da Barca do Inferno» e na «Exortação da Guerra» uma atitude crítica, que parte da ideia de que, estando a África e Marrocos mais próximos, há dispersão de recurso ao ir até à Índia. Constança deixa partir o marido sem choro nem desgosto, até por «o demo o levar / à sua negra canela»… E, «três anos há / que partiu Tristão da Cunha», e o marido regressa «tão negro e tostado», a tal ponto que ela já não o quer. E que se diz? Que ele passou por «fadigas / tantas mortes, tantas brigas / e perigos descompassados / que assim vimos destroçados / pelados como formigas», tendo sido roubado: «se não fora o capitão / eu trouxera a meu quinhão / um milhão vos certifico»… Estamos como que perante uma justificação do que dirá Camões, seis décadas depois, pela boca do referido Velho do Restelo, ao falar da «glória de mandar» e da «vã cobiça» - porque «… deixas criar às portas o inimigo / por ires buscar outro de tão longe (…) por promessas de reinos e de minas / de ouro».
UM TEMPO DE CLÁSSICOS
Duarte Ivo Cruz refere, especialmente, que a maturidade temática e cultural da dramaturgia portuguesa é tardia, ao contrário dos cronistas João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e Diogo do Couto, do cientista Garcia de Orta, da epistolografia de Afonso de Albuquerque e de D. João de Castro, da narrativa de Fernão Mendes Pinto ou da poesia encontrável na «Miscelânea» de Garcia de Resende («E na Índia em geral / há costumes desvairados / uns dos outros desviados, / tanto como bem e mal / entre eles mui costumados»). Em Francisco Sá de Miranda, na peça «Vilhapandos», encontramos ecos do cerco de Diu, em tom de desencanto: «De torna-viagem, às vezes não acho senão patranhas como agora». E não esquecemos a célebre carta a António Pereira: «Como eu vi correr pardaus / Por Cabeceiras de Basto / Cresceram cercas e o gasto / Vi por caminhos tão maus / Tal trilha e tamanho rasto. (…) Não me temo por Castela / Donde inda guerra não soa / Mas temo-me de Lisboa / Que ao cheiro desta canela / O reino nos despovoa…». Simão Machado leva à estampa a «Comédia do Cerco de Diu» em 1601, apresentando um enredo complexo de heroísmo, de sentido crítico e até de lirismo sentimental, enquanto Camões fizera, antes, representar «Filodemo» em Goa, onde a qualidade literária do poeta fica bem patente, apesar de ser relativamente desconhecida essa faceta, e de o tema da Índia ser algo marginal. Garrett, no poema «Camões», fala-nos, aliás, da chegada a Goa do grande poeta: «da soberba /Cidade de Albuquerque os muros entro. / De sobressalto o coração batia-me / ao pisar estas praias que o triunfo / viram do forte Castro». A lista de obras referidas neste livro leva-nos a concluir que há sentido crítico e resistências sobre a Índia e os seus fumos: António Ferreira em «Fanchono» (1554) dá eco dos que «deu a tormenta neles não apareceram mais», Jorge Ferreira de Vasconcelos (1555) em «Eufrosina» faz-nos encontrar uma personagem oculta ausente na Índia e na «Aulegrafia» lembra-nos que «a Índia dá-nos um rico, mata por ele cento e empobrece duzentos»… E não podemos ainda esquecer o teatro nas cristandades, a pedagogia missionária dos jesuítas, de Anchieta, Vieira ou Cavalcanti Albuquerque, e os Mistérios grandiosos representados em Goa e relatados pelo «viajante Pyrard», como nos recordaram Teófilo Braga e Hernâni Cidade.
A ÍNDIA COMO REFERÊNCIA HISTÓRICA
Nos séculos XVIII e XIX a importância para Portugal da Índia entra na penumbra, enquanto o Brasil e África se tornam mais lembrados, com a exceção do ano de 1898, aquando do IV Centenário da Viagem de Vasco da Gama. Desde uma lista de teatro de cordel aos prenúncios do romantismo, encontramos nesta transição. A inauguração do célebre Teatro da Ribeira ou Ópera do Tejo, aberto pouco antes do grande terramoto e logo destruído (vd. textos de D.I.C. no blog do CNC), levou à cena a grandiosa comédia «Alexandre na Índia» de Metastásio; Bocage, ele mesmo militar na Índia, deixou incompleta uma tragédia intitulada «Vasco da Gama ou o Descobrimento da Índia pelos portugueses»; José Agostinho de Macedo publicou «Don Luís de Athaíde ou a Tomada de Dabrul» com forte sentido heroico; e Almeida Garrett escreveu na juventude um «Afonso de Albuquerque», que ficaria incompleto. O Teatro de D. Maria II é inaugurado em 1846, tendo concorrido para a peça de abertura diversas obras sobre o tema da Índia, nenhuma tendo sido escolhida (já que o tema eleito foi o dos «Doze de Inglaterra», de Jacinto Aguiar Loureiro). Alexandre Monteiro levaria, porém, à cena dois anos depois o tema do regresso de Camões da Índia e em 1857 D. José de Lacerda assinaria o drama «Os Portugueses na Índia», mal recebido pelo público… A lista do teatro levado à cena inclui desde o drama histórico «O Rajá de Bounsuló» de Licínio de Carvalho (1854) à «Índia» de Pinheiro Chagas (1869) e à «Indiana» de Tomás Ribeiro (1873). Como se disse, o ano de 1898 conheceu uma série de peças celebratórias de Vasco da Gama, da autoria de Marcelino Mesquita, Sousa Monteiro, Cipriano Jardim, Silva Gaio e Júlio de Castilho… Merecem ainda alusão D. João da Câmara que escreveu e fez representar, fora do concurso realizado, «O Beijo do Infante», e o poema dramático de Guerra Junqueiro «Pátria» (1896) – onde se fala de «Meus impérios distantes divididos / Minha terra natal inculta e só». O tema chega aos nossos dias, passando por Goa, mas o interesse atual deve-se à necessidade de uma releitura contemporânea e crítica da busca de uma identidade pelos mundos repartida…
Guilherme d'Oliveira Martins