FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO
13. DO YAKI-TORI AO SHOGATSU
Mais ao gosto do lusitano paladar dos nossos descobridores do Japão.em 2010, esteve o jantar em Roppongi, Tokyo, em que saborearam, com saké e cerveja fresquinha, yaki-tori e outros populares petiscos. Petiscos, sim, porque ninguém é tão petisqueiro como o japonês. Os vários ryori, incluindo e sobretudo o kaiseki-ryori, obedecem a regras, como aquelas "de cinco", que já referimos. Mas num país onde todos os comportamentos sociais são educados e regidos com o rigor de uma etiqueta, aos artistas e artesãos se reconhece a intervenção dos kami, o jeito que os espíritos têm para nos inspirar... Quanto mais sofisticado e caro for um restaurante japonês, mais o freguês terá de se submeter às inspirações do chefe: respeitadas as regras da sazonalidade e frescura dos ingredientes e, em grau de sofisticação crescente, a tal "regra dos cinco", o "chefe" inventa e cria. Assim, do mesmo modo se cultiva a descoberta incessante de novas iguarias, como a da sua própria apresentação, quer pela invenção artística da sua disposição à vista, ao cheiro, ao paladar e aos sentidos táctil (da textura "al dente") e térmico, em cerâmicas, porcelanas e lacas sempre diversas e sugestivas... Nas tasquinhas em que se servem yaki-tori e uma sucessão de acepipes, que vão dessas espetadas de frango a favas descascadas e enfiadas em pezinhos finíssimos de raminhos -- como cerejas -- a variedade é rainha. Até nos temperos e molhos. Afinal, fomos ali para descontrair, conversar e ir petiscando. E mesmo para falar com desconhecidos, sentados ao mesmo balcão. Em sítios perdidos nas montanhas (que são mais de metade do território japonês), muitas vezes comi peixinhos dos ribeiros espertos (como diria o nosso Eça), empalados longitudinalmente, e assim verticalmente dispostos sobre um braseiro cinzento, grelhando lentamente. Acompanhados de raízes do monte, cozidas ou avinagradas. Em cada lugar o apetite acendia uma ideia na mente do cozinheiro. Senti-me sempre muito feliz: em comunhão com a natureza, com muito pouco se fazem grandezas...
Não sei qual a origem do yaki-tori. Dizem testemunhos coevos que, no sec. XVI, a carne de vaca, o seu leite, bem como ovos - e a própria galinha? - foram introduzidos pelos hábitos alimentares dos portugueses na dieta japonesa. Pelo menos na de alguns daimyo, samurai e mercadores que frequentavam os bárbaros do sul... O mesmo se diz da tempura, e é certo que, a uma certa cozinha ou gastronomia se chamava namban-ryori. Nalguns biombos namban, podemos ver o desembarque de alimentos que seriam carnes fumadas. Também sabemos que, nesses tempos, chegaram ao Japão produtos provenientes das Américas: o milho, a batata doce, o tomate. A melancia também, hoje tão apreciada como refresco ou sobremesa de Verão... À tempura também se chamava nanban-yaki, como, neste nosso século, ainda há quem chame ao escabeche japonês - que muitas vezes se assemelha ao nosso - nanban-mariné... A era Momoyama, que corresponde ao tempo forte do século cristão ou português no Japão, foi período de muitas inovações de ordem militar, política, económica e cultural. Gastronómica também. Como foi o tempo da reforma e definitiva canonização da cerimónia do chá, com Sen-no Rykiu. Então nascerá o kaiseki ryori, como adiante melhor veremos. Neste folhetim, hoje, prefiro opor à informalidade de uma yaki-tori-ya (ou tasquinha de yaki-tori ou churrasco) o kaiseki do Ano Novo, que é, para uma família japonesa, a nossa tradicional consoada de Natal, com a sua celebração e as suas regras.Este passo que agora damos será de contrastes ou nem por isso: ocorre-me, ao ouvir o primeiro andamento do concerto nº25, em dó maior, KV503, para piano e orquestra do Mozart, o movimento inicial da Marselhesa. Nunca me ocorreu o inverso, isto é, lembrar-me de Mozart, ouvindo o hino francês. Este, só o escuto por acaso, e sempre vagamente distraído. Talvez por isso o reconheça na sua raiz. Mas vamos ao kaiseki do Ano Novo, em que participei, em casa de um amigo japonês, conforme a todas as regras tradicionais da celebração nipónica, logo após ter eu sido padrinho desse senhor, que se convertera ao catolicismo e se baptizara aos cinquenta anos de idade. O Ano Novo ou Shogatsu ( literalmente: mês certo, correcto, sendo escrito em dois caracteres, sho, significando a rectidão, é também componente das palavras correspondentes a honestidade como à figura geométrica quadrado; gatsu é a lua, e o mês) é um dia de celebração, à volta do qual giram vários outros dias de visitas e congratulações, de ofertas e presentes. Na noite de Ano Bom, milhões de japoneses vão aos santuários shintoístas, para chamar a atenção e a protecção dos kami, através de óbulos, bater de palmas e orações... E todos desejam a todos vida resistente e longa, com a flexibilidade do bambu e a persistência do pinheiro. O Tçuzu, na sua História, conta-nos isso tudo ,sem esquecer os arranjos de pinheiro e bambu pendurados nas portas das casas, nem as refeições festivas. E, hoje em dia, assim vemos tudo como era já no século XVI e muito antes... O kaiseki de Ano Bom integra-se na primeira celebração anual do chá (hatsugama). Mandam as regras que comece ao meio dia, com uma bebida quente de boas vindas aos convidados. Segue-se o kaiseki-ryori, refeição de seis serviços que antecede o matcha preparado pelo anfitrião e acompanhado de bolinhos de feijão doce e de confeitos em forma de folha de pinheiro (estes,verdes) e de flor de ameixeira (côr de rosa). Mas vejamos de que consta essa sucessão de iguarias: o primeiro serviço (um pouco de sashimi, de arroz, e uma misoshiru) propõe-se aconchegar o estômago para o saké que virá a seguir, com um caldo rescendendo a yuzu (espécie de lima) e contendo camarão e raros legumes; o terceiro serviço é yakimono, peixe ou marisco grelhado na brasa, inteiramente limpo e sem espinhas, e mais arroz; o quarto serviço apresenta um sunomono ( comida avinagrada), em regra de caranguejo,com acompanhamento de nabo e camarão aromatizados com yuzu; vem mais saké, sempre em servidores e copos ou taças diferentes; o quinto serviço é precedido de hashiharai que, literalmente se traduziria por "lavagem dos pauzinhos" mas é um gole de água quente, ligeiramente aromatizada, para clarear o palato e prepará-lo para um saké mais solene, e só nos traz uns umeboshi, picles de abrunho, e outros de daikon (espécie de nabo alongado) com ovas de peixe; o sexto e úíltimo serviço, imediatamente antes do chá, é vegetariano e consta novamente de nabo e daikon cozidos ou em picles, e folhinhas de nabiça. Tudo isto é servido com parcimónia e cerimónia, em cerâmicas, porcelanas ou lacas diversas. Como mais adiante veremos e entenderemos, o kaiseki-ryori não é parte essencial da cerimónia do chá, mas uma refeição que pode antecedê-la, a fim de proteger o estômago da amargura do matcha. Nos mosteiros zen, o chá verde era tomado para alertar o espírito para a meditação. E aconselhavam-se os praticantes da mesma a não se encherem copiosamente de comida.
Camilo Martins de Oliveira