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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO

 

culto do chá

 

15. CHA-NO-YU (II)

 

Na sua História da Igreja do Japão, o jesuíta João Rodrigues  -  talvez o português, o europeu e o missionário do sec.XVI-XVII que melhor entendeu a língua, os costumes, a cultura e a alma japonesa  - diz-nos que o propósito da arte e da cerimónia do chá  -  a cha-no-yu  -  é dispor os participantes para a cortesia, o polimento, a modéstia, a moderação exterior, a calma, a paz do corpo e da alma sem qualquer soberba ou arrogância, fugindo de toda a ostentação, grandeza exterior ou magnificência... Antes de lermos mais texto do Tçuzu  - e para o entendermos melhor, e melhor percebermos a profundidade com que esse jesuíta de Sernancelhe, chegado ao Japão com dezasseis anos apenas,entendeu a alma nipónica  - volto a recorrer ao Professor Daisetz Suzuki: Isso a que se chama cha-no-yu no Japão e "cerimónia do chá" ou "culto do chá" no Ocidente, não é simplesmente beber chá...   ... mas é a arte de cultivar aquilo a que se poderá chamar "psico-esfera" , ou atmosfera psíquica, ou o campo interior da consciência. Podemos dizer que ela é o que então se gera dentro de cada si-mesmo, enquanto se está sentado na penumbra de uma salinha de tecto baixo, assimetricamente construída, tendo nas mãos uma tigela de chá, tosca, sim, mas eloquente sobre a personalidade de quem a fez, ouvindo o som da água fervente na chaleira de ferro sobre o braseiro. Esperemos um pouco, e sentirmo-nos-emos mais compostos, cada um de nós ouvindo, a pouco e pouco, o som que nos chega de fora da janela. É a água escorrendo e gotejando de uma cana de bambu que a traz de algures na montanha. esse gotejar não é sincopado nem excessivo, tem o ritmo que conduz a mente a um estado de tranquila passividade. Mas a mente está realmente activa, ao ponto de poder plenamente apreciar o efeito sintético das coisas todas, que estão fora e dentro da sala do chá. O que constitui o enquadramento da mente ou "psico-esfera" assim gerada é a realização de um espírito de pobreza entregue a todas as formas de dicotomia: sujeito e objecto, bem e mal, certo e errado, honra e desgraça, corpo e alma, ganho e perda, etc... 

   E o Prof. Suzuki cita então Kyogen-Shikan, nome japonês de um mestre zen chinês, dos últimos anos da dinastia Tang:

          A pobreza do ano passado ainda não era perfeita;

          A pobreza deste ano é absoluta. 

          Na pobreza do ano passado, havia lugar para o cabo de uma verruma

          A pobreza deste ano deixou a própria verruma desaparecer...

   E comenta: a pobreza que não dá lugar a nada, nem sequer à ponta de uma agulha, é conhecida, na filosofia hannya, pan-jo, por Vácuo, e o princípio da cerimónia do chá baseia-se nela, já que sabi ou wabi mais não é do que a apreciação estética da pobreza absoluta. Chego aqui a um passo que me comove, a mim, leitor diário e fiel desse grande místico católico, frade dominicano alemão do sec.XIII-XIV, Mestre Eckhart. Escreve Daisetz Suzuki: A talho de fouce, é interessante observar neste passo que a noção de pobreza (armut)  de Mestre Eckhart coincide exactamente com a de Kyogen, agora mesmo referida. Num dos seus sermões, Eckhart refere-se a "quem é pobre por Deus, pois que, dentro dele, Deus não encontra lugar para o trabalhar...   ... Este homem não é objecto nem no tempo nem na eternidade...   ... Há dois objectos: um é a alteridade, o outro o si-mesmo do homem". Este tipo de homem que é livre de objectos, isto é, livre da dicotomia de sujeito e objecto, é um "homem sem abrigo", vivendo no Vácuo. "A verdadeira pobreza de espírito requer que esse homem esteja vazio de Deus e de todas as suas obras, para que, se Deus quiser agir nessa alma, seja Ele mesmo o lugar em que age."

   É a esta pobreza absoluta, tão querida por Mestre Eckhart, que nós também vamos buscar a filosofia do chá. É, na verdade, a esse Vácuo, no qual não há lugar, não só para a criatura de Deus, mas para o próprio Deus  --  porque o Vácuo é Deus e Deus é o Vácuo  --  por outras palavras, a esse nenhures e a essa intemporalidade, que Joshu, Hofuku, Ho e os demais mestres do Zen vão sorver a sua xícara de chá. A filosofia do chá é, assim, a filosofia da pobreza, da suniata ou Vácuo. Ao compreendermos isto saberemos onde se enraíza o gosto e apreço que os Japoneses têm pelo chá. Por me parecer que este discurso será de difícil entendimento para um ocidental alheio a tais contemplações, repito o que já algures referi acerca do vácuo ou nada no pensamento místico de Mestre Eckhart (que, diz-se por aí, tem processo de canonização em curso...). Vou a um caso concreto (à maneira Zen?),de um sonho do místico alemão medievo: Pareceu a um homem, como em sonho  --  era um sonho acordado  --  que ele estava prenhe de nada, como uma mulher com um menino, e no nada nasceu Deus... João Rodrigues, que sobre o chá no Japão escreveu pelo menos umas cinquenta páginas, apesar de repetidamente se referir à relação do seu consumo com a espiritualidade e práticas budistas, designadamente a meditação zen, contempla sobretudo o culto do chá pela perspectiva do carácter ou modo de ser dos japoneses. Assim, depois de mencionar ocasiões diversas em que, no seu quotidiano ou aquando de uma visita ou celebração especial, aqueles preparam, oferecem e bebem chá, debruça-se sobre a cha-no-yu como ritual especial de ascese e comunhão. Mesmo ao falar do kaiseki-ryori que a antecede (e o jesuíta marca claramente a distinção entre a refeição e a cerimónia), ele diz que o kaiseki é uma preparação para a yu e, feito como se deve, é sóbrio e moderado, não devendo os convivas conversar para além do estritamente necessário, e ainda assim em voz baixa. E comenta que a cerimónia se passa numa sala especial para o efeito, sem pompa, decorada apenas com uma breve apresentação de flores e uma pintura ou caligrafia, que inspirem meditação. Está-se num retiro, em exercício solitário, lembrando a solidão dos ermitas que se retiram do mundo das coisas passageiras para a contemplação da natureza. Os próprios utensílios e recipientes da cerimónia devem ser rústicos e simples, com aspecto que mais lembre a natureza do que o artifício. E explica, dizendo que os japoneses são geralmente dispostos à melancolia e apetecem lugares solitários, onde apreciem a beleza das rochas, das águas e da vegetação, e escutem o canto das aves... Por aí nos fala do inkyo, que consiste na renúncia à casa e propriedade a favor do seu sucessor, e o retiro para uma vida de contemplação, muitas vezes rapando a cabeça e vestindo o hábito monástico: assim procederam o Fujiwara  do Byodo-in, e Ashikaga Yoshimasa, do Ginkakuji, a quem o Tçuzu parece atribuir preceitos, regras e ritos de simplificação e espiritualização da cha-no-yu que, na verdade foram, já em finais do sec.XVI, praticados e ensinados pelo mestre Sen-no-Rikyu. Foi este mestre do chá de Toyotomi Hideyoshi, para o qual até chegou a organizar, de 7 a 10 de Outubro de 1587, em Kitano, uma gigantesca cerimónia do chá, que o generalíssimo determinara por motivos evidentemente políticos  --   e que razões da mesma índole levariam a cancelar antes de ter terminado o seu primeiro dia. Já o edital que se começara a afixar por todo o lado em Julho desse ano, convidando toda a gente a participar no evento, assim rezava: 6. Este convite é motivado pelo interesse que tenho pelos mestres do chá especialistas do estilo simples (wabi-cha). Os que faltarem serão considerados como ofensores e nunca mais poderão exercer a sua arte... Num Japão a concluir a sua unificação, até o culto do chá deveria ser normalizado. Mas algo se terá passado por essa altura, e talvez então tenha começado Sen-no-Rikyu a tornar-se suspeito aos olhos de Hideyoshi e a ir caindo em desgraça... Até ao ponto de lhe ser ordenado pelo generalíssimo, em 1591, que cometesse suicídio ritual. Assim morreu o mestre que tão estimado fora pelo seu senhor, e que criara um estilo de culto do chá, simultâneamente mais despojado e rigoroso, e mais aristocrático. Impôs-se silêncio na cerimónia e adoptaram-se gestos da liturgia católica, que o mestre descobrira nas celebrações dos jesuítas. Creio que ninguém sabe por que razão Sen-no-Rikyu foi condenado. O cancelamento do evento em Kitano terá alegadamente tido por causa uma rebelião no Kyushu, onde o cristianismo mais se desenvolvera, e é certo que é desse mesmo ano de 1587 que data o primeiro édito de perseguição dos cristãos. Mas nada indica que Sen-no-Rikyu fosse cristão. Há quem diga que Hideyoshi se apaixonara por uma jovem e formosa filha do mestre de chá, mas esta o repudiara... Seria ela a tal moça cristã que, conta outra história, recusara, por razões morais da sua fé, ser concubina do generalíssimo? Especulação apenas. De modo mais realista  --  e sendo ele meticuloso observador  --  João Rodrigues relata, como já vimos, muitas e variadas situações em que se bebe chá, e como. Não resisto agora a recordar as considerações que ele tece sobre os benefícios corporais da excelente bebida: o chá é digestivo, alivia a barriga cheia de comida a mais, fazendo descer os alimentos e descontraindo o estômago; em segundo lugar, o chá combate o sono, afasta os vapores da cabeça e os fumos do excesso de vinho, alivia cefaleias e outras dores, mantém acordado quem quiser estudar à noite; em terceiro lugar, é naturalmente leve, refresca mais do que aquece e baixa a temperatura da febre, e, se for tomado forte e em grandes quantidades deixa um gosto perfumado e agradável na boca e pode ser um antídoto a venenos; em quarto lugar, ajuda a eliminar matérias supérfluas através da urina, pois é muito diurético; em quinto lugar, é muito bom contra as pedras nos rins e vias urinárias, doença muito rara entre chineses e japoneses, porque bebem muito chá; em sexto e último lugar, ajuda à castidade, pois limpa, lava e arrefece os rins...

   Rodrigues não era médico, por isso me ocorreu consultar o padre Luís de Almeida, o tal jesuíta, cristão novo português e médico, que ingressou na companhia de Jesus no Japão, e foi ordenado padre em Macau, em 1580. Nota ele que os nobres e ricos japoneses gostam de mostrar aos seu convidados, na hora da despedida, e em sinal de estima pessoal, os seus tesouros... E esses são os utensílios com que bebem uma erva em pó chamada chá, que é uma bebida deliciosa quando nos habituamos a ela. E conta-nos depois como fora convidado, por um rico cristão japonês, para uma cha-no-yu. Mais ou menos assim: levaram-me, ladeando os seus apartamentos, até a uma porta pequena (na realidade só tem 90 centímetros de altura) pela qual só um homem pode passar sem muito desconforto. Entrando por essa porta, percorremos um corredor estreito e uma escada de cedro, feita com tanta perícia que até parecia que éramos os primeiros a pisá-la. Entrámos num pátio com mais ou menos 9 metros quadrados e por uma varanda passámos para uma casa onde iríamos comer. A sala parecia maior do que o pátio e ter sido feita antes por anjos do que por homens. Num dos lados da sala havia uma espécie de aparador, dos que se vêem por cá, e perto dele um braseiro de barro negro, com um metro de circunferência, mas que brilhava como espelho polido, apesar de ser mesmo escuro. Uma atraente chaleira de ferro fundido estava sobre um elegante tripé , e as cinzas em que repousavam as brasas de carvão pareciam cascas de ovo moídas. Não há palavras para descrever o arrumo e asseio de tudo aquilo, mas isso não nos surpreende quando consideramos que eles prestam muita atenção a esses pormenores e em mais nada pensam. O meu amigo disse-me que o Sancho tivera sorte em pagar só 600 ducados pela chaleira, pois ela valia muito mais... Quando nos sentámos, começaram a servir a refeição. Não posso recomendar a comida, porque quanto a isso o Japão é área proíbida (assim também julgou a maioria dos lusitanos membros do nosso grupo, apesar de muitos esforços com sinal contrário). Mas quanto ao serviço, ordem, asseio e os utensílios, penso que não é possível ser-se servido em qualquer parte do mundo com mais limpeza e ordem do que no Japão. Mesmo que ali estivessem mil homens a comer, nem uma única palavra seria dita pelos criados e tudo seria feito de modo maravilhosamente ordeiro. Quando a refeição terminou, todos nos ajoelhámos e démos graças, pois tal é o bom hábito guardado pelos Cristãos no Japão. Então, com as suas próprias mãos, Sancho preparou e serviu o chá...

 

Camilo Martins de Oliveira