A FORÇA DO ATO CRIADOR
Etty Hillesum (1914-1943)
"Etty Hillesum e Carl Gustav Jung e a importância do eu desconhecido"
‘Eu costumava achar que tinha de produzir muitos pensamentos geniais por dia e agora, por vezes, sou como um terreno em pousio, onde nada cresce, mas sobre o qual paira um céu baixo e sereno.’ Etty Hillesum, Diário, 3 de Julho de 1942
O diário de Etty Hillesum (1914-1943) anuncia a importância da construção de um mundo interior para que o processo de criação possa acontecer e revela que a vida interior do sujeito que cria deve coincidir à vida interior do objeto criado. A escrita do diário mostra a importância da interiorização regular, por parte do sujeito no processo de criação.
‘What is commonly called ‘self-knowledge’ is a very limited knowledge, most of it dependent on social factors, of what goes on in the human psyche.’ (Jung, 1958). Carl Gustav Jung no ensaio ‘The Undiscovered Self’ (1958) afirma que o conhecimento profundo que o homem tem de si próprio é conseguido através do instinto. O instinto abre caminho ao inconsciente.
Etty ansiava ser escritora e tendo a seguinte premissa por base – ‘Corpo e alma são uma só coisa’ – mostrou-se muito libertador. Tudo o que é experimentado dentro do seu ser – sentimentos, fantasias, emoções, impulsos e sonhos – é uma outra maneira de viver e isto participa ativamente na construção do eu criador. Para escrever o seu diário, Etty confiou a sua alma e vitalidade a uma insignificante folha de papel – ‘Mas é sempre difícil chegar ao âmago das coisas através de palavras.’ Só então os seus pensamentos poderiam ser claros e os sentimentos profundos e verdadeiros. Mas uma grande inibição e falta de confiança não deixava os seus pensamentos serem exteriorizados de forma livre e completa – na maior parte das vezes esses pensamentos ficavam presos dentro de si. Etty sentia que algo estava profundamente encarcerado. E praticava a escrita todos os dias de modo a ver e ouvir o seu interior – porque para criar precisava de encontrar uma forma, a sua própria forma.
Etty ansiava ultrapassar os limites físicos do seu corpo – o diário funcionava como transporte, transcendência e projecção do seu eu. Era difícil escrever sentimentos extremamente profundos, mesmo sendo nítidos e claros. Apesar do seu eu encarcerado e das inibições que sentia, as revelações vão-se tornando cada vez mais verdadeiras e profundas na sua entrega cada vez mais total ao desconhecido – na sua entrega espiritual a Deus e na sua entrega física a Westerbork.
Jung, em ‘The Undiscovered Self’, trás a ideia de que o homem transporta consigo um microcosmos – um cosmos infinito em miniatura. E são precisamente, os instintos que o ligam em simultâneo ao macrocosmos e ao microcosmos. Porém, o homem contemporâneo vive constantemente dividido – a entrega aos instintos ao desconhecido nunca é total, nunca é verdadeira. O consciente racional reprime muitos lados da sua natureza. Instinto, para Jung, é um impulso cego e indefinido e afirma-se na entrega total do homem ao desconhecido, aquando confrontado com uma situação externa específica. A sua forma é antiga, é arquetípica – mais antiga até que a forma do corpo humano. O saber do homem consiste essencialmente numa adaptação constante dos padrões primordiais de ideias dadas à priori. O homem contemporâneo conhece-se a si próprio limitadamente – o seu autoconhecimento vai até ao momento em que o homem toma consciência de si próprio – uma capacidade largamente dependente das condições circunstanciais, da necessidade de conhecimento e de controlo das tendências instintivas. O seu consciente está tão orientado para observar e investigar o mundo a seu redor e esta tarefa é tão exacta e recompensadora que o homem contemporâneo se esquece de si próprio neste processo, perdendo de vista a sua natureza instintiva mais profunda – a concepção de si próprio substitui deste modo o seu ser real e verdadeiro. Para Jung, o mundo que o homem contemporâneo vive é puramente conceptual. Os produtos da sua atividade consciente progressivamente substituem a realidade. Esta separação da natureza instintiva leva a conflitos patológicos permanentes entre o consciente e o inconsciente, o espírito e a natureza, o saber e a fé. E a solução para este problema profundo, da personalidade que se desconhece e que está fragmentada, não se encontra em mudanças sociais e políticas, de acordo com Jung ‘The Western man is in danger of losing his shadow altogether of identifying himself with his fictive personality and of identifying the world with the abstract picture painted by scientific rationalism.’
A escrita trouxe a Etty Hillesum uma grande clareza e calma: ‘Agora estou imaculadamente limpa por dentro.’ Para Etty, mais importante do que a concretização de grandes e vagos pensamentos, é a pequena redação elementar que anula tudo o que é superior, importante e admirável. Escrever é possuir, reter as coisas por palavras e por imagens e assim possui-las: ‘E agora que não quero possuir mais nada e estou livre, agora possuo tudo, agora a minha riqueza interior é infinita.’ Etty sentia o quanto ela mesma se atrapalhava – pensava que não conseguia escrever nada porque não se aceitava como era na totalidade – e desejava viver ainda mais interiormente e escrever tudo exatamente como sentia por dentro para que pudesse descobrir o seu eu. Etty acreditava que neste processo de pôr para fora tudo, pudesse criar no fim um todo coerente e consistente que pudesse dar forma ao caos que sentia por dentro.
Ana Ruepp