Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Mais ao gosto do lusitano paladar dos nossos descobridores do Japão.em 2010, esteve o jantar em Roppongi, Tokyo, em que saborearam, com saké e cerveja fresquinha, yaki-tori e outros populares petiscos. Petiscos, sim, porque ninguém é tão petisqueiro como o japonês. Os vários ryori, incluindo e sobretudo o kaiseki-ryori, obedecem a regras, como aquelas "de cinco", que já referimos. Mas num país onde todos os comportamentos sociais são educados e regidos com o rigor de uma etiqueta, aos artistas e artesãos se reconhece a intervenção dos kami, o jeito que os espíritos têm para nos inspirar... Quanto mais sofisticado e caro for um restaurante japonês, mais o freguês terá de se submeter às inspirações do chefe: respeitadas as regras da sazonalidade e frescura dos ingredientes e, em grau de sofisticação crescente, a tal "regra dos cinco", o "chefe" inventa e cria. Assim, do mesmo modo se cultiva a descoberta incessante de novas iguarias, como a da sua própria apresentação, quer pela invenção artística da sua disposição à vista, ao cheiro, ao paladar e aos sentidos táctil (da textura "al dente") e térmico, em cerâmicas, porcelanas e lacas sempre diversas e sugestivas... Nas tasquinhas em que se servem yaki-tori e uma sucessão de acepipes, que vão dessas espetadas de frango a favas descascadas e enfiadas em pezinhos finíssimos de raminhos -- como cerejas -- a variedade é rainha. Até nos temperos e molhos. Afinal, fomos ali para descontrair, conversar e ir petiscando. E mesmo para falar com desconhecidos, sentados ao mesmo balcão. Em sítios perdidos nas montanhas (que são mais de metade do território japonês), muitas vezes comi peixinhos dos ribeiros espertos (como diria o nosso Eça), empalados longitudinalmente, e assim verticalmente dispostos sobre um braseiro cinzento, grelhando lentamente. Acompanhados de raízes do monte, cozidas ou avinagradas. Em cada lugar o apetite acendia uma ideia na mente do cozinheiro. Senti-me sempre muito feliz: em comunhão com a natureza, com muito pouco se fazem grandezas...
Não sei qual a origem do yaki-tori. Dizem testemunhos coevos que, no sec. XVI, a carne de vaca, o seu leite, bem como ovos - e a própria galinha? - foram introduzidos pelos hábitos alimentares dos portugueses na dieta japonesa. Pelo menos na de alguns daimyo, samurai e mercadores que frequentavam os bárbaros do sul... O mesmo se diz da tempura, e é certo que, a uma certa cozinha ou gastronomia se chamava namban-ryori. Nalguns biombos namban, podemos ver o desembarque de alimentos que seriam carnes fumadas. Também sabemos que, nesses tempos, chegaram ao Japão produtos provenientes das Américas: o milho, a batata doce, o tomate. A melancia também, hoje tão apreciada como refresco ou sobremesa de Verão... À tempura também se chamava nanban-yaki, como, neste nosso século, ainda há quem chame ao escabeche japonês - que muitas vezes se assemelha ao nosso - nanban-mariné... A era Momoyama, que corresponde ao tempo forte do século cristão ou português no Japão, foi período de muitas inovações de ordem militar, política, económica e cultural. Gastronómica também. Como foi o tempo da reforma e definitiva canonização da cerimónia do chá, com Sen-no Rykiu. Então nascerá o kaiseki ryori, como adiante melhor veremos. Neste folhetim, hoje, prefiro opor à informalidade de uma yaki-tori-ya (ou tasquinha de yaki-tori ou churrasco) o kaiseki do Ano Novo, que é, para uma família japonesa, a nossa tradicional consoada de Natal, com a sua celebração e as suas regras.Este passo que agora damos será de contrastes ou nem por isso: ocorre-me, ao ouvir o primeiro andamento do concerto nº25, em dó maior, KV503, para piano e orquestra do Mozart, o movimento inicial da Marselhesa. Nunca me ocorreu o inverso, isto é, lembrar-me de Mozart, ouvindo o hino francês. Este, só o escuto por acaso, e sempre vagamente distraído. Talvez por isso o reconheça na sua raiz. Mas vamos ao kaiseki do Ano Novo, em que participei, em casa de um amigo japonês, conforme a todas as regras tradicionais da celebração nipónica, logo após ter eu sido padrinho desse senhor, que se convertera ao catolicismo e se baptizara aos cinquenta anos de idade. O Ano Novo ou Shogatsu ( literalmente: mês certo, correcto, sendo escrito em dois caracteres, sho, significando a rectidão, é também componente das palavras correspondentes a honestidade como à figura geométrica quadrado; gatsu é a lua, e o mês) é um dia de celebração, à volta do qual giram vários outros dias de visitas e congratulações, de ofertas e presentes. Na noite de Ano Bom, milhões de japoneses vão aos santuários shintoístas, para chamar a atenção e a protecção dos kami, através de óbulos, bater de palmas e orações... E todos desejam a todos vida resistente e longa, com a flexibilidade do bambu e a persistência do pinheiro. O Tçuzu, na sua História, conta-nos isso tudo ,sem esquecer os arranjos de pinheiro e bambu pendurados nas portas das casas, nem as refeições festivas. E, hoje em dia, assim vemos tudo como era já no século XVI e muito antes... O kaiseki de Ano Bom integra-se na primeira celebração anual do chá (hatsugama). Mandam as regras que comece ao meio dia, com uma bebida quente de boas vindas aos convidados. Segue-se o kaiseki-ryori, refeição de seis serviços que antecede o matcha preparado pelo anfitrião e acompanhado de bolinhos de feijão doce e de confeitos em forma de folha de pinheiro (estes,verdes) e de flor de ameixeira (côr de rosa). Mas vejamos de que consta essa sucessão de iguarias: o primeiro serviço (um pouco de sashimi, de arroz, e uma misoshiru) propõe-se aconchegar o estômago para o saké que virá a seguir, com um caldo rescendendo a yuzu (espécie de lima) e contendo camarão e raros legumes; o terceiro serviço é yakimono, peixe ou marisco grelhado na brasa, inteiramente limpo e sem espinhas, e mais arroz; o quarto serviço apresenta um sunomono (comidaavinagrada), em regra de caranguejo,com acompanhamento de nabo e camarão aromatizados com yuzu; vem mais saké, sempre em servidores e copos ou taças diferentes; o quinto serviço é precedido de hashiharai que, literalmente se traduziria por "lavagem dos pauzinhos" mas é um gole de água quente, ligeiramente aromatizada, para clarear o palato e prepará-lo para um saké mais solene, e só nos traz uns umeboshi, picles de abrunho, e outros de daikon (espécie de nabo alongado) com ovas de peixe; o sexto e úíltimo serviço, imediatamente antes do chá, é vegetariano e consta novamente de nabo e daikon cozidos ou em picles, e folhinhas de nabiça. Tudo isto é servido com parcimónia e cerimónia, em cerâmicas, porcelanas ou lacas diversas. Como mais adiante veremos e entenderemos, o kaiseki-ryori não é parte essencial da cerimónia do chá, mas uma refeição que pode antecedê-la, a fim de proteger o estômago da amargura do matcha. Nos mosteiros zen, o chá verde era tomado para alertar o espírito para a meditação. E aconselhavam-se os praticantes da mesma a não se encherem copiosamente de comida.
Aproveitando as férias, temos invocado referências fundamentais dos nossos setenta anos de cultura e sinais da criatividade portuguesa e do diálogo entre a terra, o mar e as gentes.
Os ecos dos nossos amigos têm sido fantásticos.
Helena Vaz da Silva, Sophia de Mello Breyner e Maria Keil tiveram uma recetividade extraordinária e um número muito assinalável de partilhas. Aguardamos agora, com expectativa, as respostas ao concurso de Verão e sabemos que tem havido intensas pesquisas e conversas para assegurar a candidatura aos aliciantes prémios previstos…
Hoje partilhamos uma fotografia que nos enternece. Fernando Amado rodeado de Isabel Ruth, Manuela de Freitas e Glória de Matos. E não resistimos à tentação de lembrar a criatividade que Fernando Amado punha nas suas criações, a ponto de um dia Almada ter protestado por discordar de uma interpretação do encenador. Perante a insistência crítica de Almada Negreiros, autor da peça, Amado foi perentório: «O Senhor aqui está em silêncio, porque disto percebo eu!»… E ficou-se…
O English Channel ainda treme com a queda do baluarte francês às mãos das forças nazis. Falando na House of Commons a 1940 August 20, recentíssimo na Premiership, Sir Winston S. Churchill ecoa a coragem ética dos The Few num dos seus mais memoráveis war speeches. Vive-se o auge da Battle of Britain. Os Aliados recuam, no milagre chamado Dunkirk. Germany domina de Warsaw a Calais. — Conjugue-moi le verbe gouverner à tous les temps! A atenção de Berlin concentra-se nos últimos resistentes. Esgrimindo o Diktat von Versailles, o Führer aponta a Wehrmacht para Moscow e dispara a Luftwaffe contra London. Os planos de invasão intensificam-se com os bombardeamentos mais um saboroso last appeal to reason de Herr Adolph Hitler, discurso de veraneio massivamente distribuído por bombardeiro nos céus de London. — Hmm! One law for them, and another for all the rest! Com o regresso à Cold War jogado nas fronteiras da Ukraine e nos cálculos das sanções económicas à liderança russa, a ameaça do terrorismo islâmico recobre hoje as páginas dos jornais. Mr David Cameron afirma que não enviará mais UK soldiers para a Mesopotamie. O conflito de Gaza segue com intermitências. O vulcão islandês Eyjafjallajokul ameaça entrar em erupção no teto do mundo.
Mild weather pela ilha em semana nublada, com o regresso de férias marcado por novas vagas de glorious spin. O calendário indica one-month to go para o crucial neverundum escocês e também um momento definidor na história ocidental vivido no temível 1940. Em Westminster, Mr Churchill louva o heroísmo dos pilotos da Royal Air Force para deter a operação nazi cunhada de Sealion. O Prime Minister faz o ponto da situação dos primeiros 12 meses da II World War, notando a sua diferente natureza estratégica e sublinhando com satisfação o menor número de baixas humanas face à guerra de atrito em 1914-18. O discurso davidiano é notável no que diz e como é dito a um esmagador Nazi power que se agigantara tal qual filisteu Goliath. As palavras denotam a estatura moral e emocional do war leader: “The gratitude of every home in our Island, in our Empire, and indeed throughout the World, except in the abodes of the guilty, goes out to the British airmen who, undaunted by odds, unwearied in their constant challenge and mortal danger, are turning the tide of the World War by their prowess and their devotion. Never in the field of human conflict was so much owed by so many to so few. All hearts go out to the fighter pilots.”
Mr Churchill responde a célebre intervenção feita pelo chanceler germânico no Reichstag, a “a solemn hour” apresentada ao German Volk como exórdio à sanidade e aos Londoners enquanto ultimato à razão. São 120 minutos a discorrer sobre a “Nazi Revolution” após a conquista de Paris, entre a promoção de heróis como o Field Marshal Hermann Göring e os anúncios da “eternal greatness of the National Socialist Greater German Reich.” Ora, o discurso vira anedota aquando da distribuição aérea. A morale dos irredutíveis indígenas não quebra como previsto pelos comandos nazis. No céu e na terra, os corações estão irmanados. Depois do que assinara no Munich Agreement, aliás, a palavra de Herr Adolph Hitler não valia aqui one pence sequer. O Führer alienara a credibilidade ao negociar ardilosamente com RH Neville Chamberlain. Como sustenta Marcus Cícero em De Officiis, a fundação da justiça é a boa-fé. E por boa-fé entende a verdade e a fidelidade em promessas, juras e acordos. Ontem como hoje, o poder tem destes limites imateriais.
Por pensar em cómicos… O humorista Tim Vine ganha o 2014 Edinburgh Fringe Award na ilustre categoria de Funniest Joke. A sua one-liner vitoriosa no Pleasance Courtyard: "I’ve decided to sell my hoover... well, it was just collecting dust". A graça aparece na stand-up tour ‘Timtiminee Timtiminee Tim Tim To You,’ mas o Dave Award abre fronteiras de comicidade no debate escocês. — Dear, at the end of the day, short of money with all these millions around?… Crisis, what crisis?!
O antigo Cine-Teatro Ginásio, na Rua Nova da Trindade, hoje centro comercial de qualidade, ocupa o espaço e a tradição de sucessivas salas de espetáculo, desde rigorosamente 1845, quando ali foi fundado o “Novo Gymnasio Lisbonense”, mais vocacionado para o que então se chamava “circo de cavalinhos”, com dança, variedades, palhaços e por vezes animais amestrados.
Durou menos de um ano, pois, no mesmo local, contíguo ao que viria a ser, poucos anos decorridos o Teatro da Trindade, é erguido de raiz, em 1846, o Teatro do Ginásio, iniciativa da chamada Sociedade da Igualdade Teatral, designação de curioso conteúdo histórico, que reuniu um construtor civil, José da Silva Reis, um tipógrafo, João José de Moura, e o fiscal do Teatro de São Carlos, Manuel Machado. Sousa Bastos, no “Diccionário do Theatro Português” que temos citado nestas evocações, remete desta vez para um comentário de Julio Cesar Machado: “era um teatrinho de cartas, sem proporções, sem espaço, sem comodidades, mas alegre, simpático”… na inauguração estreou-se o grande ator Taborda, que viria a ser figura dominante da cena da época.
Em 1852 o mesmo Manuel Machado funda uma Sociedade Dramática do Teatro Ginásio de Lisboa, consegue um subsídio do Governo, concedido por Rodrigo da Fonseca e inaugura, no mesmo ano, o terceiro Teatro do Gymnasio. Marina Tavares Dias evoca a inauguração, na presença de D. Maria II, de D. Fernando e do D. Pedro V, num espetáculo ainda dirigido pelo Taborda. A coroa apoiou financeiramente a construção, de maiores dimensões, agora implantada em terrenos cedidos pela Igreja do Loreto. Marina Tavares Dias recorda os elencos desta fase: Lucilia Simões, Eliza Santos, Guilherme Silveira, nomes grandes da época. E sempre o Taborda, a quem o Rei ofereceu, na noite da estreia, o seu alfinete da gravata!... (cfr. Marina Tavares Dias, “”Lisboa Desaparecida” vol 2 – 1990.)
Este Teatro Ginásio arde em Novembro de 1921.
É reinaugurado, em 27 de Novembro de 1925, com novo e complicado projeto do arquiteto João Antunes. M. Felix Ribeiro recorda o novo edifício: “Os Foyers da 1ª e da 2ª ordem estavam decorados em estilo árabe, assemelhando-se a um terraço, com um balcão alpendrado, provido de curiosos arabescos. Reproduz fotografias e plantas e refere, numa marquise da 1ª ordem, dois vitrais, alusivos à Comédia e à Farsa.” (in “Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa – 1896-1939” – 1978)
O Teatro Ginásio mantem uma tradição irregular de qualidade, tanto de elencos como de repertório: por lá passaram, ao longo das temporadas, Eduardo Brazão, Maria Matos, Alves da Cunha, Lucinda Simões, Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, num repertório também desigual na sua alternância. Mesmo assim, foram representadas peças de Moliere, Garrett, Ibsen, mas sobretudo os modernos portugueses da época – Jaime Cortesão, Vasco Mendonça Alves, Eduardo Swalback ou Ramada Curto.
Até que se converte em Cinema Ginásio, sem grande sucesso, e fecha para demolição nos anos 50. Esteve cerca de 20 anos abandonado. E seja-me permitida uma nota pessoal: na fase de inicio da demolição do interior (pois a fachada, em boa hora, foi conservada e dura até hoje) visitei o Ginásio e pude recolher parte do arquivo, doado ao então Conservatório Nacional, hoje Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa , onde viria a ministrar, durante anos, cadeiras de História do Teatro.
João César Monteiro disse que a poesia não é filmável e que é inútil persegui-la, mas demonstrou que é possível uma aproximação numa das suas obras referenciais - «Sophia de Mello Breyner Andresen» (1969).
É um dos mais belos filmes da história do cinema português e é uma homenagem serena não apenas à poesia, mas ao mar português, à nossa costa fantástica.
Em cada momento desta obra, nós encontramos a sensibilidade do cineasta e o carisma de Sophia.
E quando Xavier estranha o tom de voz de sua mãe a ler «A Menina do Mar» ele está a dizer-nos que a poesia prolonga e completa a realidade.
Do mesmo modo, como quando a Mãe Sophia ralha com os filhos, o que encontramos é a vida vivida, imperfeita, dada a perturbações, que são o melhor elogio à liberdade de ser que nos leva diretamente à Dignidade do Ser.
As minúsculas e as maiúsculas não são indiferentes… Sophia e João César aqui estão, em memória de Carl Dreyer…
A memória e o elogio do génio poético.
A poesia não é filmável, mas o cinema pode levar-nos à essência da palavra…
"E o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos, e o seu manto de púrpura nas águas"…
«O Essencial sobre o Tema da Índia no Teatro Português», de Duarte Ivo Cruz (INCM, 2011) é um ensaio que constitui uma excelente oportunidade para compreendermos a leitura, contraditória e algo surpreendente, que foi sendo feita em Portugal sobre a Índia, o Império e os seus fumos…
DESCONFIANÇAS DA ÍNDIA As considerações que constituem esta obra são do maior interesse não só porque fazem uma análise muito completa sobre a dramaturgia portuguesa a propósito do tema da Índia, mas também porque a integram na reflexão e nas repercussões globais do debate interno sobre a expansão imperial. Tal ligação permite-nos entender melhor o que encontramos em «Os Lusíadas» na algo surpreendente e ainda incompreendida fala do Velho do Restelo, bem como nas opiniões de Sá de Miranda presentes na sua importante obra poética. Como Eduardo Lourenço tem salientado ao longo da sua obra ensaística, o tema do império para os portugueses envolve sempre sentimentos paradoxais, desde a glorificação à depressão. Neste texto, verifica-se que essa contradição sente-se desde sempre, o que obriga a um especial esforço de compreensão que chega aos nossos dias. Aliás, uma certa recusa de debate sobre a atitude portuguesa no mundo decorre da coexistência de fatores conflituais. De facto, a Índia «percorre a História e a Literatura» e «marca a mentalidade como centro de cultura ‘alternativa’ ao espírito europeu, origem de um estilo, referência mitológica, alfobre de heróis…». Entende-se, perante o paradoxo, que haja o que o autor designa como «um início politicamente incorreto». Começamos pela «Farsa Chamada Auto da Índia» de Gil Vicente, representada perante a «Rainha Velha, D. Leonor, em 1509. Podemos ainda aludir o «Auto da Fama» (1520), o «Auto Pastoril Português» (1523) e o «Triunfo de inverno» (1529), mas sente-se no «Auto da Índia», como no «Auto da Barca do Inferno» e na «Exortação da Guerra» uma atitude crítica, que parte da ideia de que, estando a África e Marrocos mais próximos, há dispersão de recurso ao ir até à Índia. Constança deixa partir o marido sem choro nem desgosto, até por «o demo o levar / à sua negra canela»… E, «três anos há / que partiu Tristão da Cunha», e o marido regressa «tão negro e tostado», a tal ponto que ela já não o quer. E que se diz? Que ele passou por «fadigas / tantas mortes, tantas brigas / e perigos descompassados / que assim vimos destroçados / pelados como formigas», tendo sido roubado: «se não fora o capitão / eu trouxera a meu quinhão / um milhão vos certifico»… Estamos como que perante uma justificação do que dirá Camões, seis décadas depois, pela boca do referido Velho do Restelo, ao falar da «glória de mandar» e da «vã cobiça» - porque «… deixas criar às portas o inimigo / por ires buscar outro de tão longe (…) por promessas de reinos e de minas / de ouro».
UM TEMPO DE CLÁSSICOS Duarte Ivo Cruz refere, especialmente, que a maturidade temática e cultural da dramaturgia portuguesa é tardia, ao contrário dos cronistas João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e Diogo do Couto, do cientista Garcia de Orta, da epistolografia de Afonso de Albuquerque e de D. João de Castro, da narrativa de Fernão Mendes Pinto ou da poesia encontrável na «Miscelânea» de Garcia de Resende («E na Índia em geral / há costumes desvairados / uns dos outros desviados, / tanto como bem e mal / entre eles mui costumados»). Em Francisco Sá de Miranda, na peça «Vilhapandos», encontramos ecos do cerco de Diu, em tom de desencanto: «De torna-viagem, às vezes não acho senão patranhas como agora». E não esquecemos a célebre carta a António Pereira: «Como eu vi correr pardaus / Por Cabeceiras de Basto / Cresceram cercas e o gasto / Vi por caminhos tão maus / Tal trilha e tamanho rasto. (…) Não me temo por Castela / Donde inda guerra não soa / Mas temo-me de Lisboa / Que ao cheiro desta canela / O reino nos despovoa…». Simão Machado leva à estampa a «Comédia do Cerco de Diu» em 1601, apresentando um enredo complexo de heroísmo, de sentido crítico e até de lirismo sentimental, enquanto Camões fizera, antes, representar «Filodemo» em Goa, onde a qualidade literária do poeta fica bem patente, apesar de ser relativamente desconhecida essa faceta, e de o tema da Índia ser algo marginal. Garrett, no poema «Camões», fala-nos, aliás, da chegada a Goa do grande poeta: «da soberba /Cidade de Albuquerque os muros entro. / De sobressalto o coração batia-me / ao pisar estas praias que o triunfo / viram do forte Castro». A lista de obras referidas neste livro leva-nos a concluir que há sentido crítico e resistências sobre a Índia e os seus fumos: António Ferreira em «Fanchono» (1554) dá eco dos que «deu a tormenta neles não apareceram mais», Jorge Ferreira de Vasconcelos (1555) em «Eufrosina» faz-nos encontrar uma personagem oculta ausente na Índia e na «Aulegrafia» lembra-nos que «a Índia dá-nos um rico, mata por ele cento e empobrece duzentos»… E não podemos ainda esquecer o teatro nas cristandades, a pedagogia missionária dos jesuítas, de Anchieta, Vieira ou Cavalcanti Albuquerque, e os Mistérios grandiosos representados em Goa e relatados pelo «viajante Pyrard», como nos recordaram Teófilo Braga e Hernâni Cidade.
A ÍNDIA COMO REFERÊNCIA HISTÓRICA Nos séculos XVIII e XIX a importância para Portugal da Índia entra na penumbra, enquanto o Brasil e África se tornam mais lembrados, com a exceção do ano de 1898, aquando do IV Centenário da Viagem de Vasco da Gama. Desde uma lista de teatro de cordel aos prenúncios do romantismo, encontramos nesta transição. A inauguração do célebre Teatro da Ribeira ou Ópera do Tejo, aberto pouco antes do grande terramoto e logo destruído (vd. textos de D.I.C. no blog do CNC), levou à cena a grandiosa comédia «Alexandre na Índia» de Metastásio; Bocage, ele mesmo militar na Índia, deixou incompleta uma tragédia intitulada «Vasco da Gama ou o Descobrimento da Índia pelos portugueses»; José Agostinho de Macedo publicou «Don Luís de Athaíde ou a Tomada de Dabrul» com forte sentido heroico; e Almeida Garrett escreveu na juventude um «Afonso de Albuquerque», que ficaria incompleto. O Teatro de D. Maria II é inaugurado em 1846, tendo concorrido para a peça de abertura diversas obras sobre o tema da Índia, nenhuma tendo sido escolhida (já que o tema eleito foi o dos «Doze de Inglaterra», de Jacinto Aguiar Loureiro). Alexandre Monteiro levaria, porém, à cena dois anos depois o tema do regresso de Camões da Índia e em 1857 D. José de Lacerda assinaria o drama «Os Portugueses na Índia», mal recebido pelo público… A lista do teatro levado à cena inclui desde o drama histórico «O Rajá de Bounsuló» de Licínio de Carvalho (1854) à «Índia» de Pinheiro Chagas (1869) e à «Indiana» de Tomás Ribeiro (1873). Como se disse, o ano de 1898 conheceu uma série de peças celebratórias de Vasco da Gama, da autoria de Marcelino Mesquita, Sousa Monteiro, Cipriano Jardim, Silva Gaio e Júlio de Castilho… Merecem ainda alusão D. João da Câmara que escreveu e fez representar, fora do concurso realizado, «O Beijo do Infante», e o poema dramático de Guerra Junqueiro «Pátria» (1896) – onde se fala de «Meus impérios distantes divididos / Minha terra natal inculta e só». O tema chega aos nossos dias, passando por Goa, mas o interesse atual deve-se à necessidade de uma releitura contemporânea e crítica da busca de uma identidade pelos mundos repartida…
Momiji na área do templo de Byodo-In(Kyoto) 12. A NATUREZA É COMUNHÃO
No seu Dai-Nippon (O Grande Japão) descreve a dado passo Wenceslau de Moraes esta cena ao ar livre: Nos grupos preguiçosos observa-se, como uma revelação, o instinto do japonês para despir o seu kimono, para pousar na erva o seu pé nu; é o instinto inconsciente para a natureza, para a terra-mãe; é essa paixão predominante, intensíssima, duma animalidade enternecedora, que o leva a oferecer-se em nudez à carícia dos contactos, do ar, da água, do solo, da criação que o rodeia... Parece-me este sentimento mais próximo do do algarvio Teixeira Gomes do que do "nobel" Yasunari Kawabata, por exemplo: sem perder sensualidade, nem sentido algum do prazer de estar, a comunhão do japonês com a natureza, quiçá porque envolta de cultura shinto, é simultâneamente telúrica e mística. Sensual, afectiva e espiritual. Se fosse japonês de gema, teria Ortega dito que el hombre es un transfuga de la naturaleza ? Traduzo o início desse magnífico romance do Kawabata, intitulado Kyoto:
Chieko descobria que, no tronco do velho bordo, tinham desabrochado violetas.
«Olha, elas também florescem este ano», pensava ela perante essa doçura da primavera repentinamente presente.
Era, na verdade, uma árvore grande, esse bordo, tanto maior por estar num exíguo jardim, no centro da cidade, e porque as ancas de Chieko nem sequer igualavam o tronco espesso. Tronco de casca velha e rude, coberta de musgo verde, nada em comum tinha, é verdade, com o corpo tenro da adolescência...
À altura das ancas de Chieko, o tronco inclina-se ligeiramente para a direita; um pouco acima da sua cabeça, baixa muito para a direita. Após esse movimento, os ramos surgem, estendem-se e tomam posse do jardim. Os mais compridos, já pesados nas extremidades, dobram-se ligeiramente.
Ali onde a árvore mais se inclina, talvez um pouco abaixo, adivinham-se duas pequenas cavidades no tronco; em cada uma delas, rebentaram violetas. E, em cada primavera, dão flores. Tanto quanto Chieko se recorde, ali estiveram esses dois rebentos de violetas.
Cerca de trinta centímetros separam as violetas de cima das de baixo. A menina que Chieko era, acabava por perguntar-se:
«Será que as violetas de cima e as de baixo se encontram? Conhecer-se-ão? Que significado terá, para as flores, "encontrar-se", "conhecer-se"? »
Em todas as primaveras havia ali três ou cinco flores, nunca mais. Eram poucas mas, todavia, naquelas cavidades do alto da árvore, em todas as primaveras, surgiam botões e desabrochavam flores. Chieko comtenplava-as da galeria, ou do pé da árvore, levantando a cabeça; acontecia-lhe ser tocada pela "vida" dessas violetas no tronco, mas, por vezes, a "solidão" delas invadia-a:
«Ali nasceram, ali continuam a viver...»
...............
Era um dia de primavera muito doce, em que o céu se enche de bruma, como árvore em flor.
Creio que caberá aqui a prometida transcrição de passos ou trechos do capítulo Momiji! de Serões no Japão do nosso Wenceslau: O mês de Novembro (e em Novembro chegou ao Japão o grupo do CNC), para o sentimento profundamente amante do nipónico pelas coisas gentis da criação, é, fora de dúvida,um mês abençoado. É em Novembro que floresce o crisântemo, o que já é dizer muito. (O crisântemo, bastas vezes o lembrámos durante a nossa peregrinação, é a flor imperial). Mas convém advertir que as galas outonais não ficam por aqui.... Pois no Japão, mercê das circunstâncias especiais do clima e também da especialidade da própria vegetação,o espectáculo é, mais do que em qualquer outro canto do mundo, especialmente sedutor. - Momiji ! - ora aqui está uma palavra que nenhum japonês deixará de pronunciar sem alvoroço. Momiji quer dizer, em geral -- folhagem vermelha do outono -- mas aplica-se de preferência para designar uma certa árvore, aqui muito abundante, cujas folhas, graciosamente digitadas, o Outono com intensíssimo deslumbramento ruboriza. Ao momiji chamam os franceses érable, os ingleses maple, e nós chamamos bordo, se não erro; penso que as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido.São,neste país, vários os sítios preferidos para se ir admirar os momiji, em meados de Novembro. Sem me afastar muito do meu poiso, cito o vale do Arima, e em Kyoto e seus subúrbios o parque de Kiyomizo... Nós admirámos a magnificência outonal dos Momiji, sobretudo em Kyoto, quer cerca do Pavilhão de Prata, ou do Byodo-in, como ao longo do passeio pela "senda dos filósofos" até ao parque de Maruyama e ao templo de Kiyomizu-dera, de cujo elevado terraço o nosso olhar cobriu uma verdadeira floresta de bordos cintilantes de tons de outono ao pôr do sol. Já Moraes apontava este ponto de vista como um dos melhores em Kyoto. Nesse mesmo terraço, Chieko revela ao seu namorado Shinichi que, recém nascida, fora encontrada ao abandono e adoptada pelos que hoje eram seus pais. Fá-lo, à mesma hora equinocial do anoitecer, ainda que na primavera: Do Nishiyama (cadeia de montes que circunda Kyoto do lado ocidental, oposto ao do Kiyomizu, situado no lado oriental, junto ao Higashiyama), estendiam-se os tons cálidos de um crepúsculo primaveril, que invadira, como bruma alaranjada, metade do céu de Kyoto... ... «Já está escuro!». E, pela primeira vez, Chieko voltou-se para ele. Brilhavam-lhe os olhos. «Tenho medo», disse ela, levantando os olhos para o tecto do grande templo. A espessa cornija de cipreste, massa perdida na profundeza das trevas mergulhava sobre eles. Assim termina o capítulo que, como vimos, começara com rebentos de violetas no tronco de um momiji. Wenceslau de Moraes termina o seu capítulo em modo popular e poético: Antes de pôr termo ao assunto dos momiji, talvez não venha fora de propósito, a citação de alguns exemplos de poesia popular, do folclore sempre tão digno de consulta em qualquer caso que se estude.A seguinte uta (poesia) dá bem ideia do interesse que desperta a curiosa coloração:
Aki ó-matsu
Hito ó-mayoasu,
Momiji-kana!
A tradução aproximada... e de pé quebrado, é como segue:
Quando vem vindo o Outono
Quanto alvoroço se sente!...
-- Ânsia d´ir ver, nas florestas,
O momiji, em rama ardente!...
A uta é uma cantiga popular, mas o que Moraes aqui liberrimamente traduz -- numa quadra ao gosto português -- é um haiku. Já não sei se seria haiku também o original da última quadra:
Outras vezes, o momiji traduz a volubilidade, a inconstância de carácter; em contraste com o pinheiro, cuja rama persistente, em qualquer época do ano, retém a mesma cor. Diz outra uta:
Muda de cor o momji,
Tu também és variante.
Eu sou qual verde pinheiro,
No mesmo verde constante.
Apenas sei que, na celebração do Ano Novo -- que é, como o Natal para nós, festa de família -- o símbolo que se vê em todo o lado forma-se com uma cana de bambu e um raminho de pinheiro, e quer dizer: sê flexível como o bambu e persistente como o pinheiro. Resta-me traduzir uns haiku, poemas de dezassete sílabas (5-7-5) que recolhem sempre um momento -- instante no tempo -- de comunhão -- da alma e dos sentidos -- com a mãe natureza e os seus espíritos. Um para cada estação do ano:
minha terra onde
em redor o meu olhar
vê sorrir os montes...
Este é de Shiki.O riso ou sorriso das montanhas assinala a primavera...
cálido Verão
mas onde tão brancos são
rostos de virgens...
De Seido. Nem tudo o calor consome.
manhã de outono
diz a brisa segredos
que sopra às folhas...
De Seibi. Pelo rumor das folhas se conhece o Outono.
dormem os montes
será que estão sonhando
um sonho jmontanha?
De Mutsuo Takahashi, nosso contemporâneo. O sono do inverno é sonho grande.
A nossa descoberta dessa epifania dos momiji no longínquo Japão, fez-me lembrar o episódio dos Contos do Genji, quando o príncipe confia a um velho monge que fora até àquele retiro perdido na montanha em busca da cura para o mal que o perseguia, essa ideia de que a flor que só uma vez, em toda a eternidade, desabrocha, nunca se poderá encontrar... Ao que o monge responde, com os olhos marejados de lágrimas, com este waka:
no fundo dos montes
uma só vez abri
a minha porta de pinho
e vislumbrei a flor
que jamais vira...
Quando, há muitos anos já, vim pela primeira vez a Kyoto, foi em meados de Agosto, na despedida do Verão, para assistir à celebração do Dai-monji, esse fogo que, nas encostas do Higashiyama se acende com a forma do carácter Dai (grande) e alumia a cidade, onde se apagaram as luzes eléctricas, para que todos possam ver aqueles lumes de escolta, luzes flamejantes que acompanham as almas que regressam aos espaços celestes. Percebi mais tarde que também anunciavam o Outono e o esplendor cromático dos momiji, cheio de um sol intrínseco. Lendo Kawabata: As tintas das montanhas abrasadas pelos "Lumes da Escolta", lá longe, sobre as trevas do céu, despertavam no coração de Chieko os tons do Outono nascente...
Terra de ouriços, diz a antiga tradição sobre a origem da designação da vila. Discute-se, porém, se se trata de um ouriço-cacheiro (erinaceus europaeus) ou de um ouriço-do-mar (echinoidea). Não vamos discutir o tema, ainda que todos se inclinem hoje para o primeiro caso.
A povoação foi fundada pelos fenícios há dois mil anos, tornando-se uma das mais importantes da costa ocidental portuguesa. O primeiro foral é de 1229 e foi outorgado pelo Grão-Mestre da Ordem Militar de Avis, Frei Fernão Rodrigues Monteiro. Afonso IV (1369) e D. Manuel (1513) renovaram cartas de foral, e D. António, Prior do Crato, foi donatário da Vila, tendo planeado um desembarque gorado por ocasião da questão dinástica de 1580. A resistência das gentes da Ericeira manifestou-se antes da Restauração de 1640, tendo aqui tido lugar um dos episódios do sebastianismo, com Mateus Álvares, ermitão da capela de S. Julião, que seria condenado ao enforcamento a 13 de Junho de 1585, por não aceitar Filipe I… Temos também na retina as imagens da partida de D. Manuel II para o exílio…
A Ericeira é um lugar de memórias, que no século XIX se tornou lugar de veraneio, estação termal em Santa Marta e porto de pesca – o mais importante da Estremadura. Por isso, recordamos aqui as armas da Vila, com o famoso Ouriço e a aludimos à 4ª Alfândega do Reino, a seguir a Lisboa, ao Porto e a Setúbal.
E importa não esquecer que foram os pescadores da Ericeira que ensinaram a pesca no sul do Brasil, onde ainda hoje se lembra a mestria do mais célebre dos homens da Ericeira, o Ti Cachafana, Victorino Dias (1833-1907), símbolo de altruísmo, de sabedoria e de solidariedade! No Jogo-da-Bola ainda persiste a memória do Tio Victorino!
A crítica ao Modernismo – a introdução ao Pós-Modernismo
Será o Pós-Modernismo uma nova face do Modernismo?
O final de sessenta apresenta condições revolucionárias paradoxais, ao desejar erradicar a ideia de progresso, surgem fenómenos que voltam a olhar para o passado, para a tradição e até por vezes negando o processo de industrialização crescente. O termo pós-modernismo estabelece-se através de uma visão optimista. O prefixo ‘pós’ anuncia uma espécie de libertação, um vir ‘a seguir’.
Será que a tentativa de ultrapassar as falhas do Movimento Moderno gera já por si uma atitude pós-modernista? Existem autores que afirmam o Pós-Modernismo como sendo uma nova face do Modernismo, isto é, que o aceitam como um processo inacabado – ‘Postmodernism, as I see it, is not a new name for a new ‘reality’, or a ‘mental structure’, or ‘world view’, but a perspective from which one can ask certain questions about modernity in its several incarnations’ (Calinescu, Matei In ‘Five Faces of Modernity – Modernism, Avant-Garde, Decadence, Kitsch, Postmodernism’, Duke University Press, Durham, 2003). Ao questionarem-se os dogmas e as premissas irrefutáveis do modernismo constrói-se um novo processo que se concretiza num lugar real, que faz parte de uma determinada comunidade, que se individualiza pertencendo a alguém específico e que se abre à vida.
O Pós-Modernismo pode ser assumido como uma nova face do Modernismo através da introdução, substituição e cruzamento dos seguintes fatores:
Quebram-se os dogmas e os modelos absolutos racionais são criticados e substituídos por modelos em que a incoerência e a ambiguidade aparecem como virtudes. Decide-se pela lógica da renovação e não pela lógica da radical inovação – o pós-modernismo estabelece-se assim através de uma abertura ao antigo e ao passado (‘Quando olhamos para Gropius ou Le Corbusier o espírito moderno era a negação da história. Para os que vêm a seguir é a negação dessa negação. A história é uma grande lição. As pessoas são iguais mas também diferentes.’ (Manuel Tainha, 2008). A constante destruição do passado proposto pelo Modernismo conduz ao silêncio, às formas inócuas e puras e ao ser revisitado traz uma nova espessura e densidade aos objetos produzidos (muitas vezes irónica e corrompida).
Assiste-se à emergência da memória. A nova máxima a adoptar é a de que o criador é um colecionador de memórias e nunca trabalha a partir do zero. Cada sujeito pode aplicar diferentes modalidades de representação e de explicação da história – abre-se assim uma multiplicidade de caminhos, de pontos de vista e um enorme legado do qual o próprio modernismo faz parte.
A paródia e o absurdo são introduzidos como meio de expressão, como possibilidade face à exaustão da integridade do modernismo – a via do humor é uma herança surrealista e é muitas vezes a via mais imediata para chegar ao entendimento. Humor representa ambiguidade, escape, descontextualização, alteração de sentido, falsidade, superioridade, libertação de uma tensão, instinto, incongruência, distorção e paradoxo. (Calinescu, 2003)
Estabelece-se uma multiplicidade de linguagens, de normas estilísticas, de expressões e de autorias. O sujeito pode produzir objetos totalmente subjetivados – expondo experiências de vida interior e exterior. E o sujeito pode produzir objetos a partir de uma transmutação de personalidade –o sujeito pode tornar-se outro (muitas vezes explorando temas sociais e políticos). O fim do modernismo traz a emergência de um pensamento débil – que se deixa dominar, que não se impõe e é individual, temporal, local, tolerante e contraditória. A pureza das formas modernistas é substituída pelas formas quotidianas, banais, híbridas, pelo kitsch, pela degradação, pela destruição e pela decadência.
No final dos anos sessenta, autores como John Cage, Susan Sontag e Robert Venturi iniciam uma visão que desperta para a ‘verdadeira vida que vivemos’. Isto significa eliminar as fronteiras entre o modernismo e as restantes atividades humanas. Encorajam-se produções e atividades interdisciplinares, que podem criar formas mais ricas e polivalentes.
Ajudando a desfazer as certezas do Modernismo, Michel Foucault revelou a relatividade da moral e dos sistemas do conhecimento. Foucault admite a complexidade, a diferença e a incerteza. O ideal modernista de uma ordenada e autónoma obra de arte percepcionada por um espectador independente é refutado. Uma nova forma de subjetividade assenta na noção fenomenológica, onde o eu se revela através de um consciente liberto de preconceitos. Merleau-Ponty ao escrever o livro ‘Fenomenologia da Percepção’ em 1945 (e que teve um grande impacto na década de sessenta) revela que as relações entre o consciente e o mundo coincidem com as relações entre o corpo e a natureza e a percepção só existe assim que o eu e o mundo se ligam. Merleau-Ponty afirma a importância da interação física entre o fruidor e a obra para que haja verdadeiro entendimento. (Christov-Bakargiev, 1999)
Ao rejeitar as formas racionais e abstratas, o pragmatismo de John Dewey influenciou as novas gerações de artistas da década de sessenta. Dewey posicionou o ato criativo e a forma aberta do saber através da importância da experiência do mundo através da experiência inicial, espontânea e empírica. Em constante relação com as coisas vivas, o artista descobre-se a si próprio – o seu corpo, as suas memórias e os seus movimentos. Segundo Dewey, pode dar-se a experiência do sentido da vida e da natureza através da sensação, do sensacional, do sensível, da sensibilidade, do sentimental e do sensual. (Christov-Bakargiev, 1999)
O binómio Arte-Técnica (anunciado por Gropius no programa da Bauhaus) mantém-se como importante na produção da arquitetura da década de sessenta. Mas aponta antes na direção do reconhecimento da arte sem vanguarda, da valorização do trabalho anónimo (não autoral).
Na arquitetura renova-se o interesse pela tradição. A tradição é introduzida no sentido de que representa formas intemporais, o saber ancestral e o arquétipo. Tudo é passível de ser entendido como cultura. Por exemplo Heidegger afirma que a construção é habitar segundo o espírito da casa camponesa da Floresta Negra – só quando se pode habitar é que se pode construir. O que erigiu a casa não foi a máquina, mas sim a persistência do local, de um poder do habitar (permanecer em paz) e do ser, que situa a casa na encosta da montanha, ao abrigo do vento, voltada para sul, com sistemas adequados para as cargas de neve e os quartos virados para os lugares do nascimento. ‘Habitar’ para Heidegger revela-se segundo uma ocupação muito simples e que no entanto quando aplicada segundo uma verdade dá acesso ao ‘ser autêntico’. (Choay, 2005)