Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Folhetins ou lembranças em fascículos são como as cerejas: vêm-nos à mão e ao gosto da boca enlaçadas umas nas outras. Recordações e ideias, memórias e representações que nos encantam o coração. Mas contá-las - não em número, mas em partilha só, a tal que nos faz bem a todos -- pode pedir-nos molduras, para que olhares e escutas se situem. Irei assim marcando, de quando em vez, o meu relato com noções e datas que ficariam bem num compêndio - dirão alguns - se sempre corretas e infalíveis... Mas tanto não posso garantir: planto apenas marcos que sinalizem um caminho de leitura. O primeiro registo militar da designação samurai data do século X, e refere-se aos guardas do palácio imperial em Heian (Kyoto). Mais tarde, samurai será a designação de uma elite guerreira, com estatuto social definido e difícil de adquirir. Os samurai estavam ao serviço do imperador, de um senhor feudal (daimyo), ou dum senhor da guerra. E tinham, a segui-los e servi-los, numerosos soldados de infantaria, de cujos nomes e feitos não reza a história, com excepção dos que, pela notoriedade da sua bravura, ascenderam à classe da nobreza guerreira que os samurai formavam. Shogun significa comandante em chefe para a supressão dos bárbaros, e o primeiro do título foi Minamoto Yoritomo. Título esse conferido, em 1192, pelo imperador que, desde então, se tornou apenas em símbolo da identidade japonesa, deixando o poder militar e político entregue ao shogun que, enquanto foi sendo membro da família Minamoto, se estabeleceu, longe de Kyoto, em Kamakura, perto da actual Tokyo. Tokyo, aliás, é o nome dado a Edo - sede do governo do shogunato Tokugawa -- já depois da chamada restauração Meiji, quando a capital imperial (Kyo) passou de Kyotopara Edo ou Tokyo. Os kanji ou caracteres sino-japoneses, que aqui não reproduzo, no caso de Kyo, pronunciam-se, em ambos os topónimos, da mesma maneira, e ambos significam capital. Já To (em Kyoto) e To (em Tokyo) ´, tendo pronúncias similares, são caracteres diferentes e com distintos significados: o primeiro é miyako (cidade capital) e acentua o facto de Kyo (Kyoto, Heian ou Miyako) o ser; o segundo quer dizer oriente ou leste, pois Tokyo, a nova capital imperial, está a leste de Kyoto. Cabe agora referir que a história do Japão, cujo registo se inicia com a escrita, vinda da China, no sec.VI, se pode dividir pelos períodos ou eras seguintes:
1. de 552 a 710: Asuka ou Kofun
2. de 710 a 794: Nara, do nome da cidade que foi a primeira capital permanente do Japão
3. de 794 a 1185: Heian, de Heiankyo, antigo nome de Kyoto, segunda capital permanente
4. de 1185 a 1333: Kamakura, do nome da cidade em que se estabeleceu o governo (bakufu) do primeiro shogun, Minataomo Yoritomo
5. de 1338 a 1573: Muromachi, período do shogunato da família Ashikaga
6. de 1568 a 1600: Azuchi-Momoyama, período de reunificação do Japão, sob a égide dos generais Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi
7. de 1600 a 1867: Tokugawa, do nome da família que, depois da vitória de Tokugawa Yeasu na batalha de Sekigahara, e da sua nomeação como shogun, em 1603, governou o Japão durante mais de 250 anos, fechado ao estrangeiro (a essa reclusão se chamou saikoku ou país dentro de si),
período também conhecido por Edo, nome primeiro de Tokyo, onde se estabeleceu o bakufu Tokugawa
8. de 1867 (data da restauração do governo imperial, com o imperador Meiji) em diante, as eras correspondem a cada um dos imperadores e desigam-se pelos respectivos cognomes: Meiji, Taisho, Showa ( que conhecemos por Hirohito), Heisei (o actual).
O século cristão ou português situa-se nos últimos vinte e cinco anos do período Muromachi e, sobretudo, durante a era Azuchi-Momoyama, ainda que abrangido, no seu final, pelo começo do shogunato Toikugawa. Mas a era Momoyama encerra quarenta anos de vitalidade e intercâmbio cultural, com os generais Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi a substituirem-se aos shogun Ashikaga e a iniciarem o movimento de unificação e centralização política e administrativa do Japão. Foi nesse tempo que muitos daimyo edificaram esplêndidos castelos, e se desenvolveram cidades onde uma nova burguesia de comerciantes ricos surgiu do intercâmbio económico e cultural com os estrangeiros portugueses. Inspirados nestes, no seu trajar, usos e costumes tão diferentes, bem como nas obras, artefactos e produtos que eles trouxeram de fora, artistas e artesãos japoneses inovaram nas artes decorativas, na pintura de biombos, portas e paredes, na escultura, no seu modo de vestir, nos seus hábitos alimentares, e até na representação do mundo e nos cuidados de saúde... Esplendor, exuberância e criatividade, adjectivam as obras de arte desse período, chamado Azuchi (topónimo de um castelo de Nobunaga, que Luís Fróis descreve) e Momoyama (por associação topográfica com o castelo de Hideyoshi em Fushimi). O padre Luís Fróis nos apresenta também o castelo-palácio de Nijo-jo, que visitou, em 1565, fortaleza edificada no centro de Kyoto pelo 13º shogun Ashikaga, de seu nome próprio Yoshiteru. Localizava-se o mesmo castelo (jo) na segunda avenida (ni jo), via principal de ligação entre as duas partes da Kyoto imperial. Destruído, foi logo ali levantado outro, mesmo ao lado, pelo shogun Ashikaga Yosiaki, irmão de Yoshiteru, mas já sob a direcção de Oda Nobunaga, sendo esse também destruído. Mas ,antes disso, Nobunaga oferecera-o ao príncipe herdeiro Kotohito, em 1579. Assim ficou esse Nijo gosho conhecido por palácio de baixo, em referência ao palácio de cima, residência do imperador Ogimachi, ao qual Nobunaga queria que sucedesse Kotohito, já como símbolo do Japão unificado.É esta a "versão" abaixo descrita por Fróis, quando conta a entrega da carta do vice-rei da Índia, D.Duarte de Menezes, assinada em 1587, pelo padre Valignano, visitador da província japonesa da companhia de Jesus, a Oda Nobunaga. O magnífico Nijo-jo que visitámos, decorado com pinturas da escola de Kano, foi erigido, um pouco mais a norte, pelo shogun Tokugawa Yeasu. Fosse qual fosse o edifício, mostra que a insistência de shoguns e generais em reerguê-lo naquele lugar corporizava a afirmação, no coração da capital imperial, de um novo poder político no Japão moderno. O Nijo-jo foi o primeiro castelo - fortaleza e residência - a ser erguido numa zona urbana - ainda em tempos de reinos guerreiros (sengoku jidai), iniciados com as chamadas guerras onin (1467-1477) - como sinal da afirmação do poder político-militar na capital e da sua ambição de unificação do país... Mais tarde, jokamachi ou cidadelas serão construídas pelos shogun Tokugawa em Edo e Kyoto, como sedes e símbolos do seu poder. E os senhores feudais terão residências obrigatórias -- eles mesmos ou suas famílias -- no regaço, por períodos definidos, desses centros. Quanto às suas próprias fortalezas, em terras suas, só mediante autorização… Mas já que este folhetim nos fala de referências, aqui transcrevo trechos de uma das maiores referências da história do Japão no sec.XVI: vamos ao capítulo 40º (1591-1592) da Histótia de Japam do padre Luís Fróis. E depois que acabou de sujeitat a seu império todo Japão, não contente com o que tinha feito, fez outra fortaleza e paços muito maiores e mais nobres e avantajados dentro da cidade do Miaco, aonde estão esses paços que arriba tratamos, e ordenou que todos os senhores de Japão fizessem ali ao redor da sua fortaleza as mais ricas casas que pudessem.E porque o Miaco estava repartido em duas partes, de maneira que pareciam duas cidades -- a uma lhe chamavam o Miaco de Riba e a outra o Miaco de Baixo -- fez essa sua fortaleza no Miaco de Riba, aonde determinou de fazer uma nova cidade e a mais sumptuosa que se pudesse fazer em todo Japão... ... E quase toda aquela parte, em que se continha o Miaco de Riba, repartiu à sua vontade os senhores de Japão, dando a cada um o sítio que lhe pareceu conveniente para suas casas, e deixando uma ruas mui largas, compridas e direitas,... ... E assim fizeram as paredes das ruas todas, que são cercas de suas casas, mui limpas e fermosas, cobertas com telhados, que tem na frontaria suas telhas douradas, feitas em madeira de rosas; nas quais fizeram em cada casa duas portas mui grandes e magníficas, com suas fronteiras e frontespícios de mui gentil e curiosa arquitectura, guarnecidas e chapeadas todas com diversas lâminas de cobre douradas maravilhosamente bem feitas, como costumam fazer em Japão; das quais uma serve para a entrada comum e ordinária da casa, e a outra está sempre fechada, feita de propósito para entrar por ela somente Quambacudono, quando for por eles convidado ou quisesse entrar a ver suas casas: porque, como em Japão estão tão postos em cerimónias exteriores, tem todos esse respeito ao senhor da Tenca, que fazem para ele uma só porta, pela qual possa entrar em suas casas... ... E dentro das cercas fizeram depois todas suas casas à maravilha limpas e sumptuosas. E porque as casas são de madeira e em Japão há grandes tremores de terra, e eles também tem outra maneira de arquitectura muito diferente da nossa de Europa, não são suas casas de muitos sobrados, mas acomodadas a seu uso. E assim fazem diversas casas, umas disjuntas e outras continuadas, com que ocupam muito maior quantidade de chão do que em Europa se ocupa. E porque eles fazem uma maneira de sobrados mui altos e soberbos, e sem dúvida tem muito maior magnificência e arquitectura que os nossos, posto que estas casas sejam comumente térreas e sem sobrados, sobem os telhados tão altos que ficam quase tão alterosas como as nossas. E assim a cumieria, como as telhas que estão ao redor daquelas casas, estão todas guarnecidas com diversas laçarias e folhagens douradas; e como em cada casa estão diversos telhados, fazem toda esta parte da cidade uma coisa mui nobre e sumptuosa.E quanto ao que toca a limpeza do interior destas casas, é cousa que com razão poderia pôr espanto em toda a parte de Europa. Também nós nos espantámos, todos, com o asseio por toda a parte no Japão. E com a acuidade da observação e descrição das coisas por Luís Fróis. Tudo o que vimos surge, nas suas formas essenciais, com as qualidades que ele tão bem apontou...
‘O conteúdo de qualquer formação artística é a pessoa do artista.’ (Umberto Eco: 2008)
No final dos anos sessenta, refunda-se uma prática da arte dentro da prática da vida. O artista é o próprio objecto – o artista produz forma (como acontece por exemplo em Eva Hesse), escolhe objectos que evocam memória e identidade (como é o caso da Arte Povera) e podendo ainda abrir-se igualmente a hipótese do artista colocar-se na vida de um outro que não o próprio (dando voz a problemas políticos e sociais, muitas vezes a partir de vídeos ou performances). O que importa é que o acto de criar já não é especial, já não é excepcional.
A arte está afastada de conotações exclusivas – a arte existe aqui e agora e não num momento e num tempo ideal. A arte está em todo o lado e existe sempre. É feita não através de uma técnica ou material próprio, mas sim a partir de convicções do artista, dos seus desafios perante o mundo e a partir da sua identidade. É entendida como sistema, processo e experiência. É um instrumento da verdade, que clarifica as condições e a personalidade do artista. O artista transmite a relação consigo mesmo, a relação com a sociedade e até a sua relação com objectos mais banais. A cultura e o vulgar são transformados em acções que documentadas são transportadas para os museus ou galerias (que passam também a ser questionados como instituições).
Os surrealistas e os dadaístas já tinham iniciado este costume, da arte dentro da prática da vida. No surrealismo e na sua revolta contra a prosa do mundo, existe a ideia de que subvertendo e revolucionando o quotidiano e o banal, dar-se-á a descoberta e a agitação da ‘vida real’. Ao utilizarem a subversão, os surrealistas produzem objectos que aparentemente familiares, triviais ou banais apresentam um elemento estranho e bizarro que surpreende. Esta ambiguidade, muitas vezes paradoxal pode ter um alto valor cognitivo – o sujeito fruidor ao ser confrontado com a simultaneidade do conhecido/desconhecido consegue ter a noção dos limites da sua compreensão.
Esta herança surrealista que explora a dualidade entre o familiar e o estranho foi muito importante para os arquitectos e artistas no final da década de sessenta. Henri Lefebvre em ‘Critique of Everyday Life’ (2008) afirma que é a mistura complexa e paradoxal que confunde forma e significado, real e ideal, absoluto e relativo, tangível e metafísico, que se torna num estímulo libertador e de aproximação à banalidade e ao insignificante. É uma tentativa equívoca de crítica ao quotidiano – que ao ser transformando pode tornar-se suportável. No mundo ocidental a perpétua espera por algo extraordinário ou mesmo bizarro elimina a insatisfação da rotina.
Deste modo, a vida típica é repudiada, é relegada para o plano da estupidez em massa. Porém, Lefebvre declara ainda que a vida tem de ser ‘nada’ para que a existência se clarifique – o nada manifesta-se no homem através da sua infinita habilidade em libertar-se de qualquer momento, instante, estado e situação.
A arte acrescenta à vida uma dimensão suplementar – como se a única forma de a suportar fosse adicionar, clarificar e aproximar o puro do impuro, o desgosto do desejo, o super-humano da desumanização.
‘Man must be everyday, or he will not be at all’ (H. Lefebvre: 2008).
Lefebvre declara que a aproximação à vida é um acto necessário de modo a ser possível refundar o quotidiano.
A crítica do quotidiano tem como principal objectivo separar a vida da decadência. A partir de agora as acções e os pensamentos não são vistos de fora e solidificados num momento que finaliza e que é para ser contemplado. A arte, sim faz parte de uma acção que ainda não terminou e que está continuamente em mudança e que pode ainda ser transformada no momento da sua fruição.
Ao ser acção que faz parte do quotidiano, ao fazer parte da vida e ao ser vida pode ser capaz de transformar, de ser activa e com a sua mensagem e alterar a sociedade.
DOMINGO LISBOETA de José de Almada Negreiros Prosseguimos as sugestões de férias! Na Gare Marítima da Rocha de Conde de Óbidos, Almada Negreiros realizou seis pinturas murais, organizadas como se fossem dois grandes trípticos, um representando cenas da vida lisboeta ao domingo, junto ao Rio Tejo, e outro, o tema da emigração, condensada numa cena de despedida no cais. Nestes trípticos, conjuga-se o desenho geometrizado, de raiz cubista, com um tema populista local. Por este último aspeto, poderia considerar-se Almada um pós-moderno «avant la lettre», ele que foi um dos principais introdutores do modernismo em Portugal, desde os anos dez do século vinte! Quando foram apresentadas ao público, estas pinturas causaram polémica, tanto de ordem estética como política. Nesse momento, os jovens interessavam-se pelo neorrealismo e pelo abstracionismo geométrico. Almada estava mais interessado nas sínteses das conquistas da vanguarda e não tanto nos seus radicalismos. Estes murais, e os numerosos guaches que foi realizando durante esses anos, atualizaram um certo cubismo picassiano, de arabesco audacioso. Na estilização das figuras, na demarcação das zonas de luz e de sombra, no recorte dos perfis, todas as possibilidades expressivas das linhas são exploradas, quer sejam estruturantes quer sejam envolventes. Há por vezes malícia no modo como acentuam algum pormenor; enfatizam a teatralidade dos gestos das figuras humanas, podendo reparar-se que, quanto mais pura é a forma, mais nítido é o gesto, como o braço que se estende para apanhar o boné que caiu à água; e, ricas de implicações espaciais, as linhas comandam a composição e acentuam o construtivismo que, desde o início da sua atividade de desenhador, sempre interessou a Almada e que o levará até um peculiar abstracionismo de cariz conceptual, em 1957.
Como em muitas outras pinturas de sua autoria, Almada utiliza a luz lateral. Na Gare Marítima, ela ajuda a integrar as pinturas no espaço arquitetónico, pois essa direção é propositadamente coincidente com a da luz real que entra pelas grandes janelas. Almada alcança, nas suas melhores obras, uma ampla generalização, sendo cada pintura sua concebida como um jogo de planos, atingindo uma visão válida da estrutura de qualquer tema. Se mantém um ou outro esquema tradicional, e se o ideal clássico decorrente da síntese das partes é visado no jogo de planos, a verdade é que as relações rítmicas dessas partes são modernas. É nessa ritmicidade que importa reparar. Rui-Mário Gonçalves (in CNC – Obras de referência).
interior da Igreja de São Francisco Xavier, em Kagoshima
7. OS SENPUKU
Senpuku é sinónimo de kakure, e refere-se ao que se esconde, se refugia ou anda foragido. A utilização do primeiro termo para designar os cristãos clandestinos que, depois de tolerada a sua religião, por pressão das potências estrangeiras, já na segunda metade do sec.XIX, regressaram ou aderiram à Igreja Católica, terá talvez um duplo propósito: o de diferenciar esses ortodoxos dos cristãos que, sobretudo na região de Urakami, cerca de Nagasaki, tinham sobrevivido no sincretismo dos princípios, representações e práticas da sua fé com conceitos, imagens e ritos shintoístas e budistas (pelo que aliás, começaram a ser tolerados pelo shogunato Tokugawa, em finais do sec.XVIII) ; e, ainda, o de sublinhar que, mesmo não sendo kakure, um japonês cristão é um estrangeirado, quase um foragido que se esconde, um senpuku. Os missionários franceses que chegaram ao Japão nas últimas décadas do séc. XIX pregavam um cristianismo rigorista, pouco conciliador e nada acomodatício ( a Igreja era ainda dominada pela docência de Pio IX), bem diferente da procura de entendimento das culturas indígenas e consequente inculturação da mensagem evangélica que preocupava os jesuítas portugueses do sec. XVI. Os kakure com que então depararam pareceram-lhes herejes desviacionistas. Leia-se este passo do padre Cousin, escrito em 1878: ... Esta pobre gente continua a cantar, a baptizar, a pedir a Deus perdão dos seus pecados, mas têm as casas decoradas com ídolos e frequentam templos budistas com medo das perseguições! Os caminhos de Deus são incompreensíveis, e que tormento é pensar que essas almas tão próximas do céu possam cair no inferno! ( Pobre padre Cousin, coração bom e bem intencionado, quiçá vítima desse jeito de pensarsentir, a que erradamente se chama integrismo!). A nova Igreja japonesa - essa que nasceu com os senpuku e a missionação do sec.XIX - fica estigmatizada por um profundo sentimento de diferença e estranheza. É uma comunidade nipónica que professa uma fé estrangeira, que os corta das suas tradições populares e da visão do mundo própria da sua cultura. Contarei adiante duas ou três histórias que se passaram comigo e ajudarão a perceber melhor essa realidade secreta. Mas antes, devo apresentar aqui dois trechos de um escrito do mestre e moralista zen Suzuki Shosan (1579-1655) de refutação da pregação católica: A crer nos ensinamentos cristãos, existe um grande Buda chamado Deus, o único Buda, senhor supremo do mundo, criador do universo e de todos os seres. Esse Buda, Jesus Cristo de seu nome, nasceu numa terra longínqua há uns mil e seiscentos anos, para salvar a humanidade. Na ignorância desse acontecimento, dizem eles, outras regiões honram falsos deuses como Gautama ou o Buda Amida... Refutação: Se Deus, senhor do universo, criou o mundo e os seres, como é que esse Deus tem negligenciado até agora inúmeras nações, privando-as da sua manifestação? ... ... Os cristãos nada sabem do despertar, desse estado uno da consciência original. Na sua ignorância dedicam um culto a um só buda. No shintobudismo japonês, simplificando, os kami, como os bodhisatva, são espíritos múltiplos e diferentemente aparecidos, como almas e coisas, mesmo se referidos a um despertar inicial, não redutível a um ser transcendente. Escreve ainda Suzuki Sensho: A intenção fundamental dos budas do passado, do presente e do futuro é guiar os seres para a iluminação. Assim, segundo a palavra, os budas viram-se directamente para o espírito das pessoas a fim de que estas contemplem a sua essência e atinjam o despertar... ... Os cristãos, todavia, fundamentam o seu ensinamento numa visão redutora da realidade da existência, e essa mais não faz do que aumentar o campo dos pensamentos, dos receios e das emoções. Isto leva-os a inventar um criador do universo, conceito que paralisa o espírito e o leva a recair ciclicamente nos seus desvios - e pensam eles que assim caminham para o despertar! A tradição do pensamento e da religiosidade oriental especificamente japonesa vai transmitindo uma noção circular do tempo e e unidade original do existente e da sua transcendência, conceitos bem diferentes do nosso tempo escatológico e da transcendência como outro, absoluto mas distinto. Um japonês cristão sente-se, assim, enquanto cristão, fora do seu mundo japonês. Numa das fases da minha vida no Japão, vivi dez anos numa casa construída, no parque da residência de uma família da velha aristocracia nipónica, sendo nós, assim, vizinhos. Visitávamo-nos, o senhor era um prestigiado professor universitário, toda a família era viajada e falava línguas europeias; melómanos, a senhora tocava koto e cantava em japonês, a nora e os netos tocavam Bach nos seus violinos... Acontecia, em dias de calmaria e sossego, eu abrir as janelas da minha sala de música, onde escutava aquilo a que chamamos música clássica. As senhoras e as crianças assomavam às janelas da sua mansão, para ouvirem o meu programa. E agradeciam... Também sabiam que a Isabel e eu íamos regularmente à missa católica, à igreja de um mosteiro de beneditinos americanos, que não ficava longe. Nunca nos falaram disso, nem de religião. Em casa deles, as refeições eram tipicamente japonesas, a conversa formal e cordata, os temas sendo música e história. Ao fim de nove anos, a nora morreu. Soubémos que as cerimónias fúnebres se desenrolariam, em dois dias distintos, num templo próximo, cuja confissão, nem eu, nem o meu motorista conseguimos apurar. Ao primeiro dia, o templo sem imagens estava cheio de gente que recitava, em japonês, algo parecido com salmos em ofícios cristãos sem música. Ao segundo dia, o templo já tinha imagens, os netos tocaram Bach, celebrou-se missa em japonês e eu mesmo ofereci o meu braço à senhora da casa, já idosa, a caminho da mesa da comunhão. Só então me foi dado saber que aquela família professava a fé católica. Tal como outras famílias antigas do Japão, entre as quais os Hosokawa que, entretanto viram um dos seus ir a primeiro ministro. Em 1994, foi Lisboa capital europeia da cultura, e um coro budista da seita Shingon a Portugal veio dar uns concertos. Um deles na igreja de S.Roque, simultâneamente, e em concórdia, com o Coro Gregoriano de Lisboa, então dirigido pela saudosa Eng.ª Maria Helena Pires de Matos. Em Janeiro de 1995, dá-se o grande terramoto de Kobe. Para além de umas toneladas de conservas de peixe oferecidas às vítimas desalojadas, pareceu-me bonito trazer até Kobe, ao próprio lugar onde tudo fora arrasado, incluindo uma escola e igreja católica, o nosso Coro Gregoriano. Assim se realizou, em igreja construída, com cartão reciclado, no local da destruída, uma oração pela paz, com a participação do coro budista que fora a Lisboa. A mesma oração se repetiu em Tera-Dera, mosteiro shingon perdido nas montanhas... Em Tokyo, organizámos um concerto num conhecido auditório de música clássica, este só com o Coro Gregoriano, transmitido por uma cadeia de televisão japonesa. Lotação esgotada, e grande audiência televisiva. Propusera ao arcebispo de Tokyo que o nosso Coro oferecesse à diocese, na sua vastíssima catedral de Santa Maria, uma missa de Sto. António de Lisboa e pela paz. Foi aceite a proposta, com a condição de que a diocese, a seu pedido, não faria publicidade. Milhares de japoneses encheram o templo. E cá fora, formavam-se filas de espera, que chegaram a atingir os três quilómetros! Foi tudo feito em silêncio, como, talvez no silêncio de Deus, a apostasia do padre Cristóvão Ferreira... Em 2012, o grupo de curiosos do CNC foi acolhido na igreja de S. Francisco Xavier, em Kagoshima, pelo seu pároco japonês. A história da chegada do missionário jesuíta, a memória dele e uma estranha forma de gratidão (escrevo assim, lembrado da estranha forma de vida da Amália Rodrigues) foram-nos ditas por cristãos japoneses que, quatrocentos anos depois, quiseram edificar aquele templo e nele invocar o visionário jesuíta. Tudo muito simples, como num reencontro de velhos amigos. E eu só pensei que o que nós, portugueses, tínhamos feito pela edificação daquela igreja no sec.XX, tinha sido há mais de quatrocentos anos. Anos antes, quando - Comissário Geral de Portugal na Exposição Universal de Aichi, cuja capital é Nagoya, cidade dos Toyota, onde as sinalefas do próprio metropolitano estão em japonês e português, pelos muitos nissei ou brasileiros de etnia nipónica que ali hoje vivem -- propus ao bispo a reposição, em recintos de paróquias da sua diocese, da exposição sobre S. Francisco Xavier -- toda ela montada em painéis fáceis de dispor e expor -- e a distribuição gratuita do respectivo catálogo, devidamente traduzido em japonês, que o pavilhão de Portugal acolhera na sua sala de exposições temporárias... Vi recusada a proposta que, evidentemente, fora feita pelo representante de Portugal, não pelo católico: as religiões têm o seu lugar na história, a fé tem a sua verdade actual nos corações... A fé, no Japão, deve ser japonesa. Não vi aí nacionalismo algum. Vindo de um país onde, tantas vezes, se confunde fé e cultura local, e se submete aquela a esta - mais do que a razão permite - apenas vislumbrei o mistério do espírito de Pentecostes. E os participantes na viagem do CNC que visitaram, já em Tokyo, a igreja de Santo Inácio, no recinto da Universidade Sophia, puderam admirar, na cúpula do templo circular, o seu desenho em flor de lótus, símbolo do despertar de Buda. Na capelita adjacente, a guia-intérprete que nos acompanhava e me perguntara se poderia assistir à nossa missa, confidenciou-me: Sensei, pensei que estava na cerimónia do chá...