A VIDA DOS LIVROS
De partida para a Índia, levamos na bagagem vasta literatura. Manteremos os nossos amigos ao corrente da peregrinação. «De Ceuta a Timor» (Difel, 1998) de Luís Filipe Thomaz é uma referência já por nós encontrada noutros momentos e a que agora recorremos na parte indo-portuguesa.
UMA CONQUISTA DE SURPRESA
Uma Viagem à Índia é um desafio de aventura e de magia. O mar chama-nos para os horizontes mais distantes. Não por acaso Thomas Morus deu origem portuguesa ao herói da «Utopia» – Rafael Hitlodeu. Falar do Mediterrâneo Oriental é lembrar o Golfo Pérsico, Ormuz, a rota da seda, o Mar Arábico, a Índia, os cavalos, as especiarias. D. Pedro das Sete Partidas trouxe para a Livraria da Corte o relato fantástico de Marco Polo e obteve informações sobre o Índico, já presente na geografia da Antiguidade. Pode dizer-se que a identidade portuguesa se foi construindo em relação à possibilidade de ir além dos limites. Qual seria o projeto do Infante D. Henrique? Zurara alinhou razões políticas, militares, científicas, económicas e religiosas. É difícil saber o que foi planeado e o que resultou da evolução das circunstâncias. O certo é que era uma alternativa ao domínio não europeu do Mediterrâneo Oriental que estava em causa. Ceuta e Marrocos revelaram-se insuscetíveis de preencher as carências materiais do reino. Daí a necessidade de ir para diante na costa de África… E depois de ir até à Ásia desconhecida, «entre perigos e guerras esforçados». A viagem, a descoberta, a procura da incerteza tornaram-se marcas de uma identidade baseada na alternância entre a glória e a desilusão, mas capaz de se consolidar pelo culto da vida tal como é vivida. Eduardo Lourenço tem-nos feito ver que, mais do que a ciclotimia, interessa a coexistência de fatores complementares e até paradoxais. Temos de estar disponíveis para nos descobrirmos tal como somos, nas Índias deste mundo… «Em fevereiro de 1510, sem que ninguém estivesse á espera, Afonso de Albuquerque apareceu no porto de Goa com a sua frota. (…) Com o sultão ausente, em guerra no Decão, a rendição foi instantânea: os mouros mais importantes ajoelharam-se e ofereceram a Albuquerque as chaves da fortaleza» («História de Goa», Pedro Avelar, 2012). A situação geográfica de Goa é excecional, quem dominasse a cidade dominaria o comércio marítimo do Índico… E, na expressão de Raquel Soeiro de Brito, em Goa construiu-se «a maior e a mais brilhante de todas as cidades tropicais fundadas pelos Portugueses, o maior empório comercial do mundo de então, assim como o maior centro de proselitismo religioso, como mostram as igrejas que os Portugueses construíram e as imponentes ruínas que o tempo conservou». Lembrar hoje Goa e a sua magnificência é invocar o símbolo fundamental do Império do Oriente. «O viajante da época que entrasse no mercado de Goa rapidamente se aperceberia da riqueza dos produtos ali transacionados: ouro, marfim e ébano de Moçambique; pérolas das ilhas Barein; pimenta de várias regiões; plantas medicinais e tapetes persas, seda e moedas de prata de Ormuz, que ali chegavam graças ao movimento das caravanas; índigo, açúcar, cera, ópio, alume, metais e tecidos provenientes de Diu. O comércio mais cobiçado era o da pimenta e o dos cavalos». A circulação mercantil e a relação com as populações são a chave do sucesso alcançado. De Ormuz a Malaca e depois até às Molucas, à Indochina, à China e ao Japão, o império do Oriente ganha um impulso significativo. E Afonso de Albuquerque desempenhou um papel inestimável (mas mal compreendido) na criação desta rede de contactos e influências. Na relação dos portugueses com as populações, lembremo-nos da política de casamentos, referida nas palavras de próprio: «aqui se tomaram algumas mouras, mulheres alvas e de bom parecer, e alguns homens limpos e de bem quiseram casas com elas e ficar aqui nesta terra, e me pediram fazenda, e eu os casei com elas e lhes dei o casamento ordenado de Vossa Alteza, e a cada um seu cavalo e casas e terras e gado, aquilo que arrazoadamente me parecia bem» (22.10.1510).
A MEMÓRIA DE S. FRANCISCO XAVIER
São Francisco Xavier é um caso muito especial de «pescador de almas», e o seu carisma prolongou-se muito para além da sua existência terrena. Tendo baseado a sua ação na catequese das crianças e adolescentes e na consolidação dos colégios, visava converter pessoas, falando com elas e pregando a mensagem evangélica… Aconteceu, porém, que a sua presença, o seu exemplo e a força da sua palavra deram-lhe um prestígio não apenas junto dos cristãos, mas junto de todos, designadamente dos hindus. Também a presença de Camões em Goa merece alusão, pelo caráter complexo e irrequieto da personalidade, pelo seu sentido crítico, ciente da importância da ambição e da cobiça, prenúncios dos «fumos da Índia», mas também pela sua ineptidão para «fazer fazenda», nunca tendo chegado a assumir um cargo oficial prometido na feitoria de Chaúl. Refira-se que durante os séculos XVII e XVIII, o português era a língua franca no Índico e em parte da Ásia litoral, constituindo de algum modo o vernáculo da classe média. No caso de Goa o português e o concanim influenciaram-se e enriqueceram-se mutuamente, apesar das naturais resistências sociais. Como afirma Francisco de Bethencourt, havia «uma relação porosa entre a elite local, os portugueses recém-chegados (nobres, oficiais régios, negociantes ou artesãos) e as castas superiores dos brâmanes (que dominavam o sacerdócio, a administração e as profissões letradas) e os chardós (que constituíam uma espécie de aristocracia rural), enquanto as classes inferiores dos sudras (camponeses livres e artífices) e dos curumbins (trabalhadores braçais sem terra) desempenhavam um papel produtivo fundamental para a economia da cidade».
ECOS DA «CARREIRA DA ÍNDIA»
Após a união pessoal entre Castela e Portugal, a importância de Goa foi-se perdendo, sobretudo em resultado da concorrência comercial e da hostilidade militar de holandeses e ingleses, o que levou à diminuição das receitas da Carreira da Índia e à adoção de medidas muito gravosas, entre as quais a criação do imposto sobre a alimentação. Pode dizer-se que, sobretudo depois de 1630, há perda significativa da influência portuguesa nos mares e no número de fortalezas. Já em março de 1622 as forças persas, com apoio britânico, tinham conquistado Ormuz, peça fundamental do império marítimo português no Mar Arábico («o mais célebre empório e escala do mundo»), e em 1662 seria cedida a cidade de Bombaim aos ingleses como dote no casamento da princesa Catarina com Carlos II, na ideia de que os ingleses poderiam ajudar-nos na defesa dos interesses na Ásia. A perda de Malaca, em 1640, tinha sido, porém, um golpe decisivo para a perda de influência portuguesa no Sudeste Asiático, acrescendo à conquista de Mascate e à perda de fortalezas na costa indiana de Canará… Se em meados do século XVI a pimenta que chegava ao mar Vermelho por terra não concorria com a que chegava a Lisboa pela rota do Cabo, ao longo do século XVII o domínio que os portugueses tinham nas importações de pimenta declinou decisivamente, a que correspondeu um crescimento do comércio inter-regional. Assiste-se à passagem do eixo de gravidade do império de Goa para o Brasil e Macau, com a Carreira da Índia a fazer-se progressivamente com passagem pela Bahia, mercê da importância do açúcar e do tabaco e depois do ouro… Muito se discute sobre a decadência de Goa: uns falam da morte de D. João de Castro (1548), outros da chegada dos holandeses, outros ainda referem os erros de Filipe III de Portugal e do conde-duque de Olivares e, por fim, há quem prefira lembrar as perdas de 1650 a 1660… O certo é que o processo foi gradual. Cada um desses momentos foi um passo no sentido de uma menor influência, apesar de, entre 1760 e 1770, ter havido a ampliação do território de Goa, em virtude das novas conquistas.
A IMPORTÂNCIA DO PADROADO
Uma última palavra sobre o Padroado português, instituído no século XVI, segundo o qual Portugal tinha a responsabilidade exclusiva de levar a cabo a expansão do catolicismo na Ásia. Assim, Portugal podia estender a sua influência religiosa aos territórios que não estavam sob sua administração. Em 1622 foi estabelecida em Roma a Sagrada Congregação para a Propagação da Fé, para os territórios não ocupados pelos portugueses, sendo esses vicariatos dependentes do Papa. Coincidindo com a guerra luso-holandesa, a Propaganda Fide contribuiu para enfraquecer a influência na Ásia. No final do século XVII, Roma incentiva a criação de um clero regular nativo, mas o Padroado português volta a ganhar peso com D. João V, em virtude do poder económico do ouro do Brasil. No entanto, a dissolução da Companhia de Jesus diminuirá a influência do Padroado, e a extinção das ordens religiosas masculinas, depois de 1834, originou a perda pelo Padroado português das dioceses de Meliapor, Cranganore, Cochim e Malaca e o surgimento de um conflito sério do clero português com os missionários da Propaganda Fide. As respostas da Igreja à situação passaram pelo reforço do culto a S. Francisco Xavier, pela ação dos Seminários de Rachol (Goa), S. José (Macau) e Colégio de Cernache, pela Concordata de 1857, que previa uma influência portuguesa significativa nas missões da Ásia, pela necessidade de garantir a ocupação efetiva da Conferência de Berlim (1884-85) e pelo reconhecimento pela República de que a Lei da Separação não se aplicaria ao Padroado Português do Oriente, em nome da assistência às populações indígenas…
Guilherme d'Oliveira Martins