FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO
Nº. de inventário: FO/0634
Créditos fotográficos: © Hugo Maertens/BNP Paribas/Museu do Oriente, Lisboa.
18. KABE NI MIMI ARI, SHOJI NI ME ARI
Uma pintura de Tosa Mitsuyoshi, mestre da escola de apelido Tosa, do século XVI, representa a mesma cena do conto V do Genji, que Kano Eitoku pintou num biombo. Têm as duas obras diferenças de estilo e de execução; afinal, sempre são de escolas diferentes... Mas ambas as narrativas pictóricas são fiéis ao texto do romance, desde o Príncipe Genji a espreitar por detrás de uma canas, ao braço direito que Murasaki estende em direcção ao pardal que, voando, lhe foge. Gesto que, simultâneamente, é desejo de prender, apreensão, e livre adeus, como se o amor morasse na despedida... Artistas japoneses que, pintando a poesia subtil dos Contos do Genji, nos lembram Novalis: a poesia é o real absoluto; quanto mais poético, tanto mais verdadeiro. Os temas tratados na arte japonesa são recorrentes, respeitam-se e atendem-se como tradições que se devem cultivar, não só porque qualquer herança é mais espiritual, cultural, do que material, mas também, e sobretudo, porque o ir beber às mesmas fontes e pensarsentir os mesmos temas é factor de coesão social, é comunhão que sustenta um entendimento mútuo mais enraizado e profundo, donde resulta que a comunicação entre eles seja - como dizem os antropólogos - de alto contexto. Pelo muito tempo que vivi na cultura japonesa, talvez tenha sentido, ao olhar para a pintura da neve sobre bambus numa fusuma do Nijo-jo, o mesmo que maravilhou o padre Gaspar Vilela, quase meio milénio antes, perante outra pintura com o mesmo tema. Também no Namban Bunka-kan, em Osaka, está um biombo representando o santuário de Itsukushima, aquele cujo torii se ergue do mar e marca a entrada religiosa para o complexo de santuários shinto e templos budistas que povoam a ilha de Myajima, perto de Hiroshima. Nesse quadro surgem uns namban, com o seu capitão protegido -- à maneira -- pelo habitual guarda-sol. Faz par com outro, sem namban-jin, e representando o célebre panorama de Amanohashidate. Este par de vistas, assim se foi juntando sempre, é das regras. Também pode aparelhar-se o panorama de Matsushima, considerado, com os dois de que falamos, um dos três mais belos do Japão. Temos, no Museu do Oriente, em Lisboa, um biombo, que há muitos anos adquiri em Kyoto, representando Itsukushima, e pintado nos finais do primeiro quartel do sec. XVIII, pouco menos de um século depois do que está no Namban Bunka-kan: não tem par (ter-se-á perdido ou seguiu divergente caminho de vendas) e - nota-se pelo nariz curto, e pela falta de calçado condizente - os namban-jin são já japoneses vestidos à moda namban... Vinda da China, logo no sec. VI-VII, a pintura de interiores, nos templos e palácios nipónicos, aplicava-se nas paredes, nas portas ou divisórias deslizantes (fusuma) e nos biombos. A tudo se chamava shohei-ga, à pintura (ga) sobre paredes e fusuma shoheki-ga. Inicialmente ambas seguindo a tradição chinesa ou kara-e, todas foram evoluindo ao gosto da tradição japonesa ou yamato-e, muito embora grande parte dos temas chineses se mantivessem, ainda que a pintura de biombos se libertasse para histórias e cenas mais ao gosto japonês ou com mais atualidade - desde cenas de batalhas a panoramas do Japão, até às cenas de rua, como as dos rakuchu-rakugai-zu, ou à "reportagem" namban... No templo e mosteiro de Shunko-in - aquele que guarda, no complexo monástico de Myoshin-ji, o sino português de 1577, salvo da igreja de Nossa Senhora da Assunção de Kyoto - pudemos ver algumas fusuma, cuja pintura é atribuída a Kano Eigaku, celebrando personagens e temas do confucionismo, ou seja, ainda na tradição kara-e ou chinesa. Explicou-nos o abade que a filosofia de Confúcio se casava bem com o budismo zen e que, dada a influência deste na via do guerreiro ou samurai, faziam ali sentido as alusões confucionistas à inteireza de carácter, lealdade e honra. Cabe-me notar aqui que, para além de Confúcio, de um sino católico religiosamente preservado ao longo de séculos, e, ainda, de uma lanterna de pedra com símbolos cristãos disfarçados (do tempo dos senpuku ) no cuidado jardim, o Shunko-in tem a principal parte deste desenhada como símbolo do santuário de Ise que, hoje em dia é o "vaticano" do shintoísmo... Mas já falámos de sincretismo. Peritos em caligrafia sino-japonesa (os kanji) dizem que o desenho do ideograma que significa capital e, em japonês, se lê kyo ( como em Kyoto ou Tokyo ) corresponde ao grafismo da forma das tais lanternas de pedra, as quais, na verdade, ladeavam as avenidas de acesso às sedes do poder ou do sagrado. Em Horiyuji magnificamente edificado na planície de Yamato, pátria do Japão, havia paredes pintadas ao gosto dos temas chineses nas representações da dinastia Tang, ou não fossem, o mosteiro e os templos, edificados pelo príncipe regente Shotoku Taishi, protector do budismo no sec.VI-VII. Eram pinturas murais, executadas por técnicas já utilizadas na China e na Coreia, provavelmente as primeiras a serem feitas no Japão. No pavilhão dourado, destacava-se uma, que infelizmente só conhecemos por fotografia: com 3m13X2m60, datava do ano 700 e representava o paraíso do Buda Amida. Estão ali três figuras de sereníssima expressão : trata-se da trindade ou Tríade Amida, que reconhecemos em esculturas ainda hoje existentes no oratório da senhora Tachibana (sec.VII), conservado na galeria dos tesouros de Horiyuji. A tríade volta a surgir noutra escultura em bronze - da autoria do famoso Tori, e dedicada ao príncipe Shotoku - colocada no pavilhão dourado ou principal, onde se reunem os oragos de Horiyuji, confirmando assim que a trindade Amida seria ali a principal invocação. Esta tríade, também conhecida por Tríade Shaka (versão japonesa do sânscrito Sakya, nome do clã do Buda histórico) mostra apenas o Amida ladeado por dois acólitos. Mas a este e outros aspectos da artes budistas voltaremos, quando contarmos as nossas visitas ao Todai-ji e ao Byodo-in, e ainda à percepção do budismo japonês pelos nossos missionários do século XVI. Por agora, basta-nos recordar alguns exemplos da pintura artística de parede (hekiga-e ) e de divisórias e portas deslizantes (fusuma-e ) com que deparámos nos nossos passeios pelos interiores de mosteiros e palácios. São esses, em regra, bastante sombrios, a luz do dia penetra apenas através de folhas de papel translúcido, encaixilhadas nas janelas e em divisórias das salas, ambas deslizantes, que dão pelo nome de shoji. E terá sido tal penumbra que foi convidando à pintura colorida -- designadamente no estilo Yamato-e -- aplicada directamente sobre a madeira daqueles suportes, ou sobre papel ou seda, de modo a dar mais brilho e calor aos aposentos. No Koncho-in do Nanzen-ji, em Kyoto, admirámos as shoji da Hasso-seki,,a casa do chá desenhada por Kobori Enshu, em 1622. E as fusuma-e, obras atribuídas a Hasegawa Tohaku e Kano Naonobu, uma com macacos e árvores, outra com garças e bambus. No mesmo Nanzenji - ou templo zen do sul - descobrimos fusuma pintadas por Genshin Kano e Eitoku Kano, e, no Ko-Hojo - pequeno pavilhão trazido para ali do castelo de Momoyama, o tal em Fushimi, erigido por Hideyoshi - a fusuma pintada por Kano Tanyu, que nos mostra um tigre a beber água: Mizunomi no Tora... No palácio imperial de Kyoto, as fusuma que separam três salas de espera distintas - de acordo com a categoria protocolar de quem esperava - diferenciam-nas pelos temas da pintura: o tigre, a garça, a cerejeira... Deus me perdoe a preferência: de todas estas obras de arte tão subtil, uma há que me aparece em sonhos, confundida na noite: a pintura daquele macaco que, com uma mão, se segura ao ramo e, de braço esquerdo esticado, esforçadamente se debruça e, estendendo em calculado esforço o direito, com essa mão procura apanhar em baixo o reflexo da lua... Vimo-la no Koncho-in, Hasegawa Tohaku a pintou em finais do sec.XVI. Aparição que me surge, por vezes, com a lembrança de um dito popular que tem a ver com paredes e janelas (shoji) : kabe ni mimi ari, shoji ni me ari... Isto é: as paredes têm ouvidos, as janelas têm olhos... Será que só a lua se esconde?
Camilo Martins de Oliveira