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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MULHERES QUE ESCREVEM VIVEM PERIGOSAMENTE


 

«Nós mulheres intelectuais, saímos perdedoras em assuntos de amor», afirmou e escreveu a poetisa lírica argentina Alfonsina Storni antes de se suicidar. Safo, a mais antiga de todas as poetisas deixou o registo do quanto o futuro da escrita se lembraria das mulheres escritoras. Safo, poetisa grega nascida entre 630 e 612 a.C., viveu em Mitilene, local que constituiu um forte centro cultural no séc. VII a.C., e terá sido uma mulher muito respeitada durante a Antiguidade, mas da sua obra restam apenas fragmentos já que a sua poesia de conteúdo erótico, foi profundamente censurada na Idade Média pelo poder dos monges copistas.

Carson McCullers escreveu o seu maior romance, Coração Solitário Caçador (1940) cujo êxito veio a destruir-lhe o casamento com um frustrado escritor. Virgínia Woolf afogou-se num rio pois sentira bem o quanto a loucura da escrita se lhe tornara insuportável.


Não prolongando a lista, logo nos surge uma explicação no livro de Stefan Bollman “Mulheres que escrevem vivem perigosamente”, sugerindo que, se as mulheres mais criativas e inteligentes se desesperavam com a vida a pontos de a não suportar, e seria razoável pensarmos que o que dá asas e permite voar aos homens é o que destrói as mulheres. Mais acrescenta, de resto bastaria pensar-se que as mulheres governam o quotidiano dos homens, dando-lhes condições para escreverem (ou fazer qualquer outra coisa), mas quem é que governa o dia-a-dia delas?

Então pergunta-se, terá a mulher de ser a musa de si própria? Só poderão ser elas as companheiras auxiliares decididamente doadas inteiramente aos homens? Ou és só minha ou …deveriam saber, como escreveu Alfonsina Storni que


Todo o cérebro activo transporta uma alma quebrada,

e o homem, nas mulheres, busca algo de festiva.

Cuida melhor da casa a mulher modesta

e avessa a grandes rasgos de fantasia.

 

Um dia, um minuto provocou de alguma forma que a mulher constatasse que se não detinha nas pulsões de um homem. Como afirmava Robert Musil «A mulher cansou-se de ser o ideal do homem e tomou em mãos a tarefa de conceber a imagem que deseja ter de si.» Desconheço se o homem atingiu já a maturidade que requer o saber entender isto. Ele que me não interprete mal, pois nunca deixarei de defender que o homem também tem carecido que a mulher lhe dê a liberdade certa, ou seja, aquela que o liberta dela, permanecendo o amor e a admiração como núcleos de não domínio.

Ainda assim creio que a escrita tem uma vertente muito perigosa que é a da solidão no mausoléu do esquecimento, confundindo mais a mulher os seus próprios dons do que o homem. Continua também o túnel que conduz e reduz a que o futebol seja importante e a compra de roupa uma futilidade.

Facilmente se continua a chamar egoísta a uma mulher que é lutadora, ao ponto de recordar que, Marguerite Yourcenar dizia de si própria: ter havido um momento na vida em que deixara de ser uma mulher que escrevia para se tornar, acima de tudo, uma escritora – ou seja, uma escritora que às vezes também é mulher.


Ainda hoje, como antes, as mulheres continuam a ter de estar preparadas para a sua obra ser examinada à luz da pequena diferença com grandes consequências.


Claro está que esta questão se não coloca do mesmo modo numa sociedade como um Islão ou a de um país ocidental. A simultaneidade do não simultâneo poderá ser a forma mais gentil de designar o choque de culturas, sendo certo que a percepção das ideias e dos modos de as manifestar, estão e estarão na ordem do dia. 


Com curiosidade constatei, numa breve pesquisa sobre esta temática, que, em 1713 o jornal The Guardian registava que as belles lettres (expressão francesa que implicava a preocupação da estética nas artes) se coadunavam melhor com o universo feminino pela circunstância de as mulheres disporem de mais tempo! De facto é espantoso que nos surja Jane Austen em 1813 com Orgulho e Preconceito, e se possa achar que o processo de interpretação da vida interior e exterior do ser humano, as suas contradições e subsistências possam resultar de um ter mais tempo!

 


Enfim, creio que o romance trouxe uma fresca auto-estima às mulheres, proporcionando-lhes experiências que nunca teriam tido no mundo acanhado em que na maioria viviam. A leitura mostra os ângulos da luz em que se pode mover a vida no universo. A leitura insinua-se à pluralização da vida. Vida ou vidas até então desconhecidas, que, proporcionam espectros de linguagem diferenciada com outros leitores e leitoras criando estradas de comunicação nunca mais interrompidas.

Talvez pelo que acima mencionei ainda mais me espanta o que veio escrito no jornal The Gardien já que raramente ao longo da vida as mulheres tinham uma hora que pudessem chamar sua sem o medo de estar a roubar esse tempo a alguém que viria sempre antes dela.

Uma mulher punha filhos no mundo! Seja esse o seu destino, ainda que se não entenda a razão de o homem não optar pela mesma receita, sobretudo, quando já no séc. XX fazia da Beat Generation (embrião do movimento hippie) uma interpretação pobre da mistura dos dois sexos.


Diga-se que não existiu uma sucessão contínua ou inquestionável da opressão da mulher na escrita e na leitura, descurando que a Revolução Francesa lhe imprimiu uma certa viragem positiva: a própria Simone de Beauvoir a explica.


Curioso também que Karen Blixen depois do seu casamento estabeleceu uma fortíssima relação amorosa com Denys Finch e quando a aventura africana terminou, ficou de novo na dependência material da família, da qual, na realidade nunca se libertara talvez por não ter sabido conhecer o suficiente da cultura dos Massai e dos Somalis. Hanna Arendt assinalou este regresso ao grau zero e constatando que Karen Blixen só quando tudo perdeu, se tornou artista com os contos África Minha de 1937.


Enfim, propõe-se que nunca se esqueça que a escrita é uma poderosa forma de resistência e a leitura um acto de bravura só consolidado no conhecimento.


Arundhati Roy está persuadida de que a verdadeira liberdade consiste em libertar-se do papel de vítima. Nesta base, escrita e actividade politica têm a sua origem na mesma tensão de vida, numa algo similar visitação ao controlo do deus da história, mas não é desse deus que eu falo quando me refiro à escrita. Aí só conheço aquele deus das pequenas coisas, dos sorrisos, dos arrepios e do surpreendente.


Então viver perigosamente na escrita ou na leitura passará pela coragem de ter a mão aberta ao deus da perda, do pacto, do sonho, do amor, e fintar esse mesmo deus sempre que nos impeça de nos percorrermos em demanda do «porque lêem?» «porque escrevem?», a literatura não tem sexo, nem nacionalidade, nem raça como afirmava a grande Toni Morrison.


Claro!, que a imaginação não se submete a rótulos pois não entrega a chave da arte aos sedutores e alcoviteiras improvisados de gente.


«O coração, se pudesse pensar, pararia», escreveu o terno poeta Fernando pessoa no seu Livro do Desassossego.


Permito-me acrescentar que temos de ser nós, mulheres, a criar o nosso próprio céu, a nossa própria liberdade e que não há nenhum braço que nos ampare e sim caminhamos sozinhas, e, por vezes, num profundo amor compreendido na relação reciproca e na relação com a realidade/universo, e será então chegado o tempo da poetisa morta, irmã de Shakespeare, vestir o corpo que tantas vezes despiu.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Setembro 2014