Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


Portão Oriental do Nijo-jo

Portão Oriental do Nijo-jo

 

19. O NIJO-JO

 

O Nijo-jo que visitámos não é o que Luís Froes nos descreve, como já referi, nem outro; falo de cor, mas se não me falha a memória, além do que conhecemos hoje, houve dois anteriores, já desaparecidos, mas que se situavam nas proximidades do actual. Este, cuja construção se concluiu em 1603 - muito embora tenha sido ampliado e contemplado com novos edifícios, nas décadas seguintes - ergueu-se quando o imperador conferiu a Tokugawa Yeasu, o sucessor de Nobunaga e Hideyoshi, o título de Seii-tai-shogun (ou Condestável), que aqueles seus antecessores no comando das campanhas de reunificação do Japão não tinham recebido. Yeasu fez questão em obtê-lo, já que, embora não tivesse poder executivo, a autoridade do Imperador lhe conferiria legitimidade política para o exercício das suas funções de generalíssimo e chefe do governo. O palácio fortificado Nijo-jo, relativamente próximo do palácio imperial simbolizava assim essa  legitimação e sublinhava o poder delegado no Shogun. E doravante, os daimyo, bem como os altos funcionários e comandantes militares, teriam de passar pela audiência do shogun, assim significada em Kyoto, capital imperial, ainda que o domicílio do generalíssimo e a sede do seu governo (bakufu) se estabelecesse em Edo (hoje Tokyo), onde os senhores feudais teriam, aliás, residência obrigatória, junto do shogun, seis meses por ano. O Nijo-jo, subsequentemente, passou a acolher os Tokugawa apenas quando eles viessem a Kyoto visitar o Imperador. Dentro da cerca da fortificação, rodeada por um fosso de água, estão dois palácios. Ao entrarmos pelo portão oriental, somos conduzidos ao Ninomaru, palácio hoje reduzido a menos de metade do que ali fora inicialmente edificado, depois de lhe ter sido acrescentado uma importante área coberta, várias construções comunicantes com as já existentes e com o Honmaru, o outro palácio do complexo ( palácio principal seria, com a sua alta torre, mas, destruído pelo fogo no sec.XVIII, é hoje uma construção de 1893). Tais edifícios, incluindo um teatro para representações de noh, ergueram-se entre 1624 e 1626, precisamente para servirem de recepção à visita do imperador Gomizuno-o ao terceiro shogun Tokugawa, de seu nome próprio Iemitsu. O paço para temporária habitação do Imperador, o Gyoko Goten, hoje desaparecido, situava-se entre os dois palácios, e a eles se ligava por corredores. Nesse paço, o Imperador bebeu cerimonialmente saké com o shogun Iemitsu, seu cunhado, e o pai deste, o segundo e então já ex-shogun Hidetada, seu sogro. A 9 de Setembro de 1626, terceiro dia da sua estadia, foi Gomizuno-o convidado a assistir a uma representação de noh e, posteriormente, a conviver com o seu anfitrião no grande salão, ou sala de audiências do Ninomaru, residência do shogun. E foi esse salão ou ohiroma que também nós visitámos. Penetrando no Ninomaru - passámos primeiro pela Karamon, porta monumental, ao gosto chinês, superada por uma coberta com símbolos dourados da família imperial e da Tokugawa, e ainda pelo portão interior dos coches, com o seu pórtico de madeira esculpida de flores, pavões e outras aves voadoras - fomos surpreendidos pelo gemido ou chiar das tábuas (há quem aí reconheça o pio ou o canto de rouxinóis) do piso do largo corredor que fomos percorrendo: assim foi feito propositadamente para que não houvesse entradas furtivas nem inesperadas surpresas. Mas logo fomos envolvidos pela nobre dimensão das salas de cedro robusto, sobre o qual, nas paredes, tectos e portas, aplicações de ouro fino e pinturas de cores calorosas e discretas criam um cenário de acolhedora grandeza. A pintura das paredes e fusuma é de artistas da escola Kano, e aqui se encontram as obras de maior dimensão dessa família de pintores. Os motivos são tigres e panteras entre bambus, gansos selvagens e garças povoando paisagens de Inverno e neve, pavões exibindo-se ou andorinhas voando. E por aí chegámos à referida ohiroma, salão decorado por magníficos pinheiros, de vigorosos troncos e ramos, e verde folhagem sobre fundo de ouro. O tecto, todo trabalhado em caixilhos, tem pinturas geométricas florais. O salão ordena-se por duas divisões ou pisos de diferente altura: o jodan, mais elevado, ao fundo do qual está a tokonoma, a parte mais recuada, onde se sentava, nas audiências, o shogun (em qualquer sala japonesa, o lugar de honra é sempre, de frente para a entrada, o mais afastado desta); e o gedan, um degrau abaixo, onde se sentavam os outros senhores. Como era de regra, o shogun tem, à sua direita, uma tsuke-shoin, espécie de escritório, para escrita, e, à sua esquerda, uma estante montada num recuo da parede, de prateleiras não alinhadas (chigaidana) e as fusuma com frisos dourados (chodaigamae), tudo com pinturas de pinheiros resistentes, da autoria da Kano Tanyu, que aliás enchem as paredes do salão. Os visitantes descobrem hoje o ohiroma com manequins representando uma audiência do shogun (sentado no jodan, acima dos restantes) aos senhores que, sentados sobre os joelhos, se inclinam respeitosamente, deixando-nos ver melhor os seus brasões bordados nas costas das riquíssimas vestes... A cena assim montada refere-se à última audiência: aquela em que, corria o ano de 1868, Tokugawa Yoshinobu, 15º e derradeiro shogun, comunicava a nobres e governantes que entregara ao Imperador Meiji todos os poderes que a sua família reunira durante mais de 260 anos... No século XVI - quando, com o movimento de reunificação militar e política do Japão, se reafirmou o poder central do shogunato, reconhecido pelo Imperador - o nosso padre Cosme de Torres definia mais ou menos assim a autoridade do estado nipónico e seu exercício: O estado secular deste país divide-se por duas autoridades, ou nobres principais, um dos quais trata da concessão de honras, e outro do poder, da administração e da justiça. 

Ambos esses nobres vivem em Miyako. O que trata das honrarias chama-se Ô (Rei) e é hereditário o seu ofício; o povo venera-o como aos seus ídolos, e como tal o louvam... Chegando ao termo do nosso percurso do Ninomaru, admirámos, na kuroshoin, sala na área de aposentos do shogun, a pintura, por Kano Naonobu, de sakura (cerejeiras em flor) sobre as fusuma: sobre fundo de ouro claro, surgem os troncos quase imaginários, vigorosos, grossos e torcidos, mais artísticos e sugestivos do que realistas e naturais, donde explodem ramos etéreos de flores de um rosa branco, que nos lava o olhar... Ocorreu-me então um texto do padre João Rodrigues, o Tçuzu, que ali poderá ter estado, e que nos diz mais ou menos o seguinte: A primeira e mais importante das artes mecânicas deles é a pintura. São muito habilidosos a pintar coisas da natureza, que copiam o melhor que podem, com grande exactidão. Apresentam nas suas pinturas muitas coisas fantasiadas e mais concebidas pela imaginação do que descobertas na natureza, tais como flores imaginárias e figuras inteligentemente desenhadas e ligadas entre si... De acordo com o seu melancólico temperamento, inclinam-se geralmente para pinturas de solidão e comoção profunda, como as que retratam as quatro estações do ano. Atribuem uma cor especial a cada estação e descrevem as várias coisas que nela crescem ou se encontram. Por exemplo: associam o branco ao Inverno, à conta da neve, geada e frio daquela estação, e também à conta das diversas espécies de aves selvagens, como gansos, cisnes, garças e muitas outras que, durante o Inverno, chegam da Tartária, voando em bandos. A cor verde é associada à Primavera, porque as plantas, vegetais e flores, nas árvores e nos campos, estão em rebento, e também por causa da névoa que por essa altura cai. O vermelho colore o Verão, à conta do grande calor, com os frutos amadurecendo nas árvores e tudo em flor. O azul é a cor do Outono, quando a fruta já está bastante madura e as árvores largam as suas folhas à descida da sua energia para as raízes, onde fica armazenada à espera. Deste modo se diz que o fruto é produzido na Primavera, floresce e viceja no Verão, é colhido no Outono, e se esconde no Inverno, quando as árvores murcham e perdem as folhas... Estes quadros, sucessivamente pintados nas paredes e painéis das salas, são muito agradáveis e comoventes, por tão vivamente descreverem a natureza nas diferentes estações. E neste folhetim de cerejas que se vão comendo, rebenta-se-me uma sagacidade antiga, talvez aquela que melhor percebe quando se interroga: João Rodrigues veio, há quase meio milénio, de Sernancelhe, lá das montanhas do norte-interior de Portugal, feridas e marcadas, acolhidas e temperadas pelos rigores e pelas clemências das estações...  Sofreu e saboreou, em menino, as graças e desgraças do tempo circular, do tal que, antes de o sentirmos, envelhecendo, mais escatológico por nos parecer fatal, fatal, sim, nos surge só pela repetição do nascimento, da maturidade, do envelhecimento e, finalmente, do silêncio interrogador das estações de cada ano... Fez-me o Tçuzu pensar que, no Nijo-jo dos primeiros shogun Tokugawa, alguma mensagem haveria nos temas das pinturas interiores do Ninomaru: afinal, bambus e pinheiros resistentes, estes tão sólidos e verdes, acolhem tigres e falcões, e as sakura eternizam a Primavera como promessa... Ano Novo, Era Nova: o shogunato Tokugawa será flexível como o inquebrável bambu, e resistente como o persistente pinheiro. E mesmo as aves vindas de frios bárbaros nele encontrarão repouso. Durou quase três séculos. Tinha eu uns oito anitos, acabara de chegar a Portugal com meus pais, minha Mãe, cheia de disciplinada e nórdica boa vontade, ainda se debatia arranhadamente com a fala portuguesa. Passámos a Entrecampos, a caminho de uma corrida de touros no Campo Pequeno, ao gosto de meu Pai. Sobre a entrada de um estabelecimento comercial, uma placa anunciava: Casa de Pasto. Minha Mãe, sempre curiosa, interrogou: Casa de Pasto? O que é isso? Ao que meu Pai, que lhe detestava o sotaque, respondeu, imperturbado: É uma escola de pensamento. Ali aprendemos a mastigar as ideias, a ruminá-las e digeri-las. Nunca mais me esqueci de que nada se percebe à primeira vez.

 

Camilo Martins de Oliveira