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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO

 

Jardim do Templo Ryoanji, em Kyoto

Jardim do Templo Ryoanji, em Kyoto

 

20. KARESANSUI

 

Kare-sansui escreve-se com quatro kanji: os dois primeiros formam as duas sílabas significantes do verbo kareru (ru sendo a terminação dos verbos japoneses no infinitivo), que quer dizer secar; san é montanha, sui é água. Os jardins zen japoneses são secos, com pedras ou rochas que evocam montanhas ou ilhas, sobre gravilha que se penteia para que sugira mares ou cursos de água. Visitámos alguns desses jardins em Kyoto, os mais notáveis sendo o do mosteiro de Nanzenji, desenhado por Kobori Enshu, no princípio do séc. XVII, e o de Ryoanji, este criado, quase um século antes, pelo monge Tokuho Zenketsu. Neste se contam quinze rochas, mas nunca vistas pela mesma perspectiva; se não mudarmos de posição, há sempre umas que nos escapam... Rectangular, com 25 metros de comprimento e 10 de largura, não tem árvores nem arbustos, nem flores; apenas gravilha branca e rochas pequenas, algumas circundadas de musgo. E tem aquela tentação da contagem certa do número de ilhas ou montanhas... Está essa no cerne daquele jardim: só serve, precisamente, para percebermos que é inútil a insistência em acertar, seja no que for, pelos nossos próprios meios. O génio do Zen está em nós, adormecido, não há esforço, cálculo ou técnica, que o acorde. O seu despertar, o satori, surgirá do nosso inconsciente, depois de nos termos sentido pouco à vontade com a agitada preocupação das nossas análises: só desistindo da nossa presunção acederemos à realização da força que está em nós. Este jardim, cada um de nós o poderá imaginar em múltiplas figuras, cada um de nós saberá sempre, no fim da meditação contemplativa, que a inesperada paz está no esquecimento da nossa imposição. Na arte do tiro de arco e seta, que os zen tanto praticaram, fecham-se os olhos, a pontaria certeira é, necessariamente, uma intuição do objetivo. O Inconsciente como morada do despertar é, na caligrafia -exercício artístico de perfeição - como na poesia japonesa, um estado da alma: a beleza criada nasce do despojamento de nós. Parafraseando Novalis, direi: quanto mais vazios, mais verdadeiros. Bem sei que isto é difícil de explicar, a nossa visita a jardins zen foi como abrir uma porta para olhar o incompreensível... Conta o Prof. Doutor Daisetz Suzuki que Chiyo (1703-75), a célebre poetisa de haiku, apesar da fama de que gozava na sua terra, pediu a um mestre forasteiro que lhe explicasse o que era um haiku autêntico, de genuína inspiração poética. Diz o Prof. Suzuki: Ele deu-lhe um tema para um haiku, bem convencional: o cuco. É este um dos pássaros mais apreciados, para mote, pelos poetas que compõem haiku e waka.: o cuco canta de noite enquanto voa, é difícil ouvi-lo porque voa e vê-lo porque canta. Reza assim um dos waka sobre cucos 

 

      Hototogisu                                Ouvindo o grito do cuco

      Nakitsuru kata wo:                   Pró ar olhei, em sua direcção 

      Nagamureba,                            Em busca donde vinha o som;

      Tada ariake no                          E que vi eu? 

      Tsuki zo nokoreru.                    A lua a crescer no céu.

Os waka, como este têm trinta e uma sílabas (5+7+5+7+7), os haiku, que surgem posteriormente, apenas dezassete (5+7+5). Diz-se que Chiyo nunca mais acertava num haiku que agradasse ao mestre... Até que, conta-nos Suzuki, certa noite, ela se pôs a cogitar tão intensamente no tema que nem sequer se deu conta de que já amanhecia, nem de que os shoji se iluminavam palidamente, quando este haiku aconteceu no seu espírito:

 

      Hototogisu,                                Ó cuco, cuco!

      Hototogisu tote,                        Toda a noite cuco...

      Akenikeri!                                 Amanheceu por fim!

O comentário seguinte é do professor japonês: Quando o mostraram ao mestre, ele logo o aceitou como um dos melhores haiku jamais compostos sobre o cuco. E isso porque esse haiku comunicava verdadeiramente o genuíno sentimento íntimo da autora sobre o hototogisu (cuco), e ali não havia qualquer esquema artificial ou intelectualmente calculado para qualquer espécie de efeito; ou seja, não havia qualquer "ego", por parte do autor, com vista à sua própria glorificação... O haiku é uma curtíssima forma de poema, cuja tradição costuma ser filiada num poeta da segunda metade do século XVII, que, praticante do zen, se reclamava do espírito de despojamento do eu-próprio e seus laços (muga) e de solidão (sai-shiori): chamava-se Basho e viveu de 1643 a 1694. Foi várias vezes invocado, ao longo da nossa peregrinação nipónica. Diz-se que o haiku com que iniciou a respectiva escola e modo de poesia foi o seguinte:

 

      Furu ike ya!                               Ah, o velho charco!

      Kawasu tobikomu ,                    Pra lá salta uma rã :

      Mizu no oto.                              O som da água!


Aí está uma realidade intuída pela iluminação de um som...

O nosso João Rodrigues, o Tçuzu, na sua Arte Breve da Língoa Japoa, impressa em Macau, no ano de 1620 (há uma edição anterior, intitulada Arte da Lingoa de Japam, publicada em Nagasaki em 1604) faz um sumário da arte poética japonesa: fala de uta, tanka, renga, haikai. Será este último o próximo antepassado do haiku. Diz o padre Rodrigues, mais ou menos, isto: O haikai é um tipo de poema, como o renga. É escrito num estilo muito coloquial, com palavras e frases de todos os dias. Muito embora este tipo de poema não seja obrigado a tantas regras como o renga, pode ter o mesmo número de versos. Pode começar com dois versos de sete sílabas (tsukeku) e continuar depois com três de cinco, sete, cinco sílabas cada. Por exemplo:

 

      Abunaku mo ari                          Acaso eu correrei 

      Abunaku mo nashi,                     O risco de ter medo             

      Hotarubi no                                 Daquele lume

      Kayaya no noki ni                        Que o lento pirilampo deixa

      Haitsukite.                                  No beiral de palha?

No Ryoanji, quem terá contado rochas? Só me lembrei de que talvez pudesse traduzir haiku por... surpresa !

 

Camilo Martins de Oliveira