FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO
Refeição teppatsu no mosteiro zen (Kyoto)
21. HORYUJI E TODAIJI
Ainda almoçámos, em Kyoto, com satisfação de todos, num restaurante vegetariano, situado no complexo de um mosteiro zen. Nesse contexto, tal cozinha dá pelo nome de teppatsu, que nos remete para uma tigela ou prato fundo de ferro, com que os monges pediam a esmola dos alimentos que, depois, nele comiam.
O budismo zen - tal como o das seitas Jodo e Nichiren - surge no Japão, no princípio do séc. XIII, num movimento de reforma do budismo então reinante, descendente das chamadas seis seitas da capital do sul (Nara), e que se tinha mundanizado e corrompido. É interessante observar como, pela mesma altura, na Igreja Cristã Ocidental se iniciava a reforma conduzida pelas ordens mendicantes, designadamente franciscanos e dominicanos.
Como já vimos, o Budismo foi introduzido no Japão em meados do séc. VI, tendo encontrado no príncipe regente Shotoku (574-622), do qual já aqui se falou, o seu protector e promotor. Foi ele o fundador, ainda na era Asuka, do templo e mosteiro de Horyuji, que em Nara visitámos. A seguir a Shotoku, foi o imperador Kotoku, que reinou de 645 a 655, a decretar o Budismo religião legítima do Império. E, já no período Nara, o imperador Shomu (reinou de 724 a 749) afirmou que o Budismo era a religião guardiã do Estado. Mas daquelas seis seitas budistas mais antigas, hoje apenas restam três: a Ritsu, a Hosso e a Kegon. Todas as três têm as suas sés em templos de Nara. A da Kegon é no Todaiji (à letra: To=oriente, dai=grande, ji=templo, isto é, o grande templo oriental, de Nara, claro), onde estivémos e de que falaremos agora.
Talvez valha a pena olhar para este templo, inicialmente erigido em 745-52, para acolher o Daibutsu (Grande Buda), uma das maiores estátuas de bronze existentes no mundo de então e de agora, com os olhos do médico e jesuíta português do século XVI, Luís de Almeida:
...Fomos ver outro templo, chamado Daibutsu ou Grande Santo. O portão principal e os que estão de ambos os lados do adro são maravilhosamente grandes e altos; o adro com o seu claustro tem 60 alas de comprimento (os templos japoneses são construídos de modo a assim podermos calcular as suas medidas num relance). O adro e os seus claustros estão bem construídos, compactos e muito agradáveis de ver, de facto uma das coisas mais amáveis que jamais vi. O templo ergue-se no meio do adro e mede cerca de 40 alas por 30; os degraus, entrada e chão do templo estão pavimentados com grandes lages quadradas, de pedra. Duas grandes estátuas de monstros estão de cada lado da entrada e guardam o portão principal. De cada lado da porta do templo estão as estátuas das sentinelas, uma chamada Tamon e a outra Bishamon, e dizem que cada uma é rei e regulador de um dos céus. Estes guardas têm mais de 14 alas de altura e são bem proporcionados, e têm ferozes expressões nos rostos. Cada um deles pisa um demónio e estrangula-o com o pé - eles são mesmo uma maravilha de se ver. Olhar para um desses ídolos é como olhar para uma torre.
No meio do templo está a estátua de Shaka com os seus dois filhos Kannon e Seishi de cada lado. A estátua de Shaka é feita de cobre e é dourada e bem proporcionada, enquanto que os ídolos dos seus filhos são de madeira. Todas estão decoradas de ouro e têm grandes raios que delas emanam; esses raios estão habilmente envoltos e o dourado tão bem aplicado que o brilho e esplendor destas grandes estátuas é deslumbrante. Apesar de estar sentada, a estátua de Shaka tem mais de 14 alas de altura, e a altura do seu pedestal (parecido a uma bela flor) é de 6 alas. Os filhos também estão sentados e têm cerca de 9 alas de altura.
Atrás deles, levantam-se as estátuas de mais dois guardas, Komoko e Zocho, que têm o ofício de guardar mais dois céus e se parecem com as sentinelas já mencionadas. Uma ala mediria cerca de 115cm, o atual Daibutsu (que também dá pelo nome de Shaka) tem cerca de 16m e 20cm de altura, reproduziu e substituiu, em 1692, o original, datado de meados do séc. VIII (a sua fundição em bronze dourado, foi ordenada pelo imperador Shomu em 743).
Tudo o mais, os guardiões e os monstros - em seus tamanhos, feições, atitudes e gestos - corresponde hoje ainda, tal como vimos, à descrição do padre Luís de Almeida. Até os seus respectivos nomes se mantêm, o que é tanto mais de admirar quanto sabemos que as variações das invocações de Buda, dos bodisatvas e apsaras, e demais seres celestes ou míticos, induziam frequentemente japoneses e estrangeiros a cair em confusões.
Todaiji não é só aquela maior estrutura de madeira em todo o mundo (Horyuji sendo a mais antiga), que abriga o monumental Grande Buda, nem apenas o destino anual de milhões de peregrinos, que ao seu grandioso portão de entrada chegam percorrendo uma alameda antiga onde gazelas mansas lhes vêm comer à mão uns biscoitos que para ali se vendem para o efeito. Todaiji é símbolo e memória da implantação espiritual, política e social do Budismo no Japão, iniciada na era Asuka, confirmada no período Nara, e dominante no Império do Sol Nascente até ao regresso do shintoísmo como religião oficial do Imperador e do Estado, por imposição da restauração Meiji em 1867.
Todaiji também deu nome à escola de escultura budista de Nara, sequência, afinal, da tradição (ou tradução?) nipónica que, um século antes, Horyuji, bem perto dali, fizera da chinesa Tang.
Relendo Luís de Almeida e outros testemunhos da arquitetura e escultura budista-japonesa, que europeus descobriram no séc. XVI, sentimos igual espanto face à grandiosidade, força - e até violência - das imagens estatuárias ou da dimensão dos edifícios... Mas, parece, não nos impressiona a serenidade misteriosa, quase alheia, do rosto do Buda: talvez não seja referência que sirva o nosso entendimento. Tampouco garanto que muitos japoneses a tivessem entendido, posto que muita guerra e perseguição houve entre seitas budistas, e entre elas e o poder político...
A arte cristã coeva também era canonicamente executada, basta recordarmos as imagens bizantinas, que apresentavam aos homens a sereníssima ordem de Deus, em sua Trindade, e dos seus exércitos. Como se a paz fosse só possível noutro mundo que desde já devêssemos contemplar. O nosso Cristo crucificado não aparenta sofrimento, é sempre vencedor magnânimo. Os anjos e arcanjos podem esmagar os demónios, castigá-los, mas Deus e o seu Cristo estão acima desse combate. O sofrimento humano, essa condição que Jesus Cristo assumiu, só mais tarde será assunto de representação, como as dores e lágrimas de Maria. Na arte cristã, o Deus incarnado levou séculos a humanizar-se.
No pagode de Horyuji, podemos ver a morte de Buda e o seu acesso ao Nirvana. O Gautama, de bronze dourado, está reclinado num divã, uma velhota se ajoelha diante dele... À sua volta, dez discípulos, alguns quase esqueléticos, se arranham e contorcem de dor, ou simplesmente se interrogam e choram. Em Horyuji também vimos Kannon, bobisatva ou "filhos" ou acólitos de Buda, já no séc. VI com aspecto feminino. Essa figura de acolhimento, vai-se tornando maternal, será progressivamente representada com uma criança ao colo...
Ainda hoje guardo, em minha casa, um baixo relevo gravado em pedaço de madeira com forma de flor de lótus, uma Kannon aureolada e de menino ao colo... No reverso, senpuku desenharam uma cruz cristã...
Camilo Martins de Oliveira