FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO
22. SHINTO
Em vários manuais sobre as religiões dos japoneses normalizam-se assim as diferenças principais entre shintoísmo, budismo e cristianismo : as duas primeiras são politeístas (apesar de eu considerar que não são rigorosamente identificáveis, entre eles, kami com bodisatva, nem qualquer destes com deuses, no sentido clássico, ainda que no paganismo greco-romano o Olimpo, Hades e a terra dos homens possam ser intertransitáveis), enquanto que o cristianismo é monoteísta; também contrariamente a este, shintoísmo e budismo aceitam a participação em diferentes tradições ou confissões religiosas (donde o seu sincretismo); no shintoísmo não há salvação transcendente, pois que os homens já vivem no mundo animado pelos kami e a harmonia com estes passa por ritos de purificação; já no budismo, o acesso ao nirvana, estado de paz, consegue-se pela iluminação resultante da meditação; e só o cristianismo fala da salvação pela fé na graça de Deus que redime os pecados dos homens. Mas não foram apenas estas divergências teológicas, acima simplificadas, que dificultaram a missionação cristã, apesar da natural predisposição dos japoneses ao acolhimento de mensagens de outras partes, sobretudo em períodos de instabilidade política e transformação e agitação social, como foram as últimas décadas do shogunato Ashikaga, ao tempo da chegada dos primeiros portugueses e jesuítas. Noutro plano de análise, podemos observar que o cristianismo se inicia no Japão, com a conversão de gente do povo humilde do Kyushu, provavelmente mais próxima do shintoísmo do que do budismo praticado por gente letrada e pela aristocracia. Essas classes mais elevadas só mais tarde se aproximarão dos missionários cristãos, muito em virtude do interesse dos daimyo locais pelo comércio aberto pelos portugueses. Entrámos assim em considerações várias acerca das relações entre as religiões e a sociedade nipónica, suas classes e poder político. Procurámos que tal se tornasse num exercício interessante, que nos ajude a entender melhor, não só o Japão em mudança, que os jesuítas e portugueses do sec.XVI vieram encontrar, como o Japão de sempre, na sua evolução e sobressaltos até aos dias de hoje. O nosso percurso vai do shintoísmo primitivo, onde surge o mito fundador da linhagem imperial e identidade nacional, até à Constituição promulgada em 3 de Novembro de 1946 - que determina, no artº,20: " nenhuma organização religiosa poderá receber quaisquer privilégios do Estado nem exercer qualquer autoridade política" - passando pela introdução do budismo e as várias fases da sua relação ao Estado, pela visão oficial nipónica do cristianismo como factor político e estratégico, e pela restauração Meiji do Estado shinto. O shintoísmo antigo não era uma religião organizada ou institucionalizada, antes seria uma forma de animismo, cujo culto era o convívio espiritual com a natureza e suas forças, espíritos ou kami, entre os quais se incluíam os mortos ou antepassados. Cada pessoa individual necessariamente se sentia parte integrante de uma unidade social, grupo ou clã a que se chamava uji e descendia da mesma divindade. O chefe do uji era também o seu sumo sacerdote, e a palavra matsurigoto significava simultaneamente governo e rito religioso ou mágico. A nação japonesa, como já vimos, nasce desse mesmo conceito, quando o reino de Yamato, no sec.V antes de Cristo, reúne todos os uji sob a autoridade política e religiosa da linhagem descendente da deusa solar Amaterasu. Todavia, a designação institucional de imperador - tal como a própria designação shinto (ou caminho dos espíritos) - só se imporão, já no sec.VI da nossa era, por influência chinesa. Seja como for, têm raízes muito primitivas na cultura identitária japonesa esses conceitos, tal como o de ie (casa, no sentido de família patrimonial, unidade social não necessariamente confinada à consanguinidade) que se desenvolveria já durante o shogunato Tokugawa... Numa das suas cartas, o padre Gaspar Vilela - que, como vimos, viveu no seio de uma comunidade de pescadores, habitantes da aldeia donde nasceria Nagasaki, e que teriam formado um dos primeiros núcleos cristãos do Japão, depois de se converterem das suas crenças shintoístas - refere os mitos antigos da origem do cosmos e do Japão, entre os quais a descendência de Izanagi e Izanami (a que chama, respectivamente, Yanamin e Yanagui), revelando por aí como as crónicas antigas, Kojiki e Nihonshoki, eram conhecidas dos jesuítas quinhentistas. Escreve, mais ou menos, o seguinte: No seu princípio, o mundo era um lago de água, e não havia nem terra nem gente, Um homem chamado Yanamin lançou do céu um tridente em forma de anzol dizendo "Talvez haja um rio debaixo dos céus". E agitando a água, apanhou uma gota de lama que estava debaixo da água. Este pedaço de lama colou-se ao tridente e quando chegou à tona da água tornou-se numa ilha, e o reino do Japão foi-se a pouco e pouco formando a partir daqui. Por essa razão vêem nesse homem Yanamin e nessa mulher Yanagui os primeiros fundadores do Japão e os progenitores da raça japonesa. Na mitologia shintoísta, Izanagi e Izanami são os pais de Amaterasu. E o padre João Rodrigues fala- nos, na sua História, da Tensho-Daijin (outro nome de Amaterasu): No reino de Ise há um templo dedicado ao principal kami do Japão, Tensho-daijin. Esta mulher era filha do primeiro homem e da primeira mulher, que, dizem eles, povoaram o Japão. E dizem que ela foi a primeira a reinar sobre o país, e que todos os reis do Japão descendem dela. Peregrinos vêm de todo o Japão a este templo e dão ricas esmolas... O santuário de Ise - que ainda hoje activamente existe no mesmo local - consta de duas cercas distintas, sendo que, em cada uma delas, alternadamente, é um templo destruído e reconstruído, na mesma planta, de vinte em vinte anos. Os materiais de construção utilizados, bem como as ferramentas, são sempre novos, mas a respectiva natureza e desenho, e o modus faciendi são idênticos aos que ergueram os primeiros templos, há mais de mil e duzentos anos... Aqueles missionários que seguiram - no Padroado Português do Oriente, feitos portugueses ao serviço do Senhor Dom João III - São Francisco de Xavier, encontraram um povo animista, com um coração aberto a novos kami que participassem na comunhão universal em que se sentiam convivas. Por isso lhes pareceu haver ali vasta e amorosa seara para o Senhor Jesus. Era também gente a quem a promiscuidade das seitas budistas com a aristocracia e o poder político, aliás não isenta de conflitos - foram frequentes os gosos, ou manifestações de monges budistas na capital, durante a idade média japonesa, o que levou Oda Nobunaga, iniciador da idade moderna, a dizimar os monges do Monte Hiei, cerca de Kyoto - afastava do budismo oficial e predispunha à fidelidade a um poder superior. Talvez também esse sentimento de lealdade a um poder e dever, com despojamento de si, tivesse levado muitos samurai - que já no budismo se aproximavam da ascética zen - a converterem-se ao cristianismo. Vemos alguns representados, em práticas religiosas, nos biombos namban. A história "teológica" das relações do cristianismo do sec.XVI-XVII com as religiões nipónicas está por fazer. Mas sabemos que os grandes debates apologéticos se fizeram sobretudo com o budismo zen. A perseguição e expulsão do cristianismo teve, como já dissemos, motivos predominantemente políticos. Com eles se confundiram também as forças budistas, não tanto por razões de ordem religiosa, mas pelo receio de outra possível religião de estado. Pessoalmente, creio que Nobunaga - o primeiro comandante da reunificação do Japão - terá considerado a hipótese de ir substituindo o budismo pelo cristianismo como religião do estado. Aliás, o seu filho, convertido ao cristianismo, só não lhe sucedeu, depois do assassinato do pai, por ter sido afastado por Hideyoshi. A história do Japão poderia ter sido outra. Assim, por todo o shogunato Tokugawa, de 1603 até 1867, o shintoísmo, que, desde o sec.VI, abrira o recinto dos seus santuários à instalação de templos budistas, e acolhera os budas e bodisatvas entre os seus kami, continuou a viver na sombra do budismo. Este perdera, já no advento do período Azuchi-Momoyama, parte da sua influência política, mas continuaria sendo a religião (se isso lhe podemos chamar) eleita e protegida pelo poder shogunal. Por isso mesmo, a restauração do poder e funções políticas imperiais, imposta pelo imperador Meiji, que terminou o shogunato Tokugawa em 1867, irá fazer do shintoísmo a religião oficial do Estado japonês e venerar, na mesma pessoa (o Tenno, descendente da deusa solar Amaterasu), simultaneamente o divino pontífice e o supremo chefe político e militar. Este Shintoísmo de Estado exercita-se então através do Shintoísmo da Casa Imperial, com regras e ritos próprios à liturgia do Imperador, e do Shintoísmo dos Santuários, que reúne e governa as funções dos santuários shinto mais importantes (incluindo os mais antigos), livres de interferências budistas, locais de assembleia, culto e peregrinações. A par desta religião organizada, o Estado Meiji criou uma instituição para supervisionar e controlar as muitas seitas de culto shintoísta que o povo e a história tinham produzido. Tal como instituiu um serviço de supervisão das outras religiões (que, creio, foi posteriormente integrado no ministério da educação), designadamente o budismo e o cristianismo, entretanto readmitido no Japão. Como se disse acima, todo este sistema foi abolido, tal como a afirmação constitucional da natureza divina do Imperador, pela legislação subsequente à derrota de 1945, tendo a Constituição de 1946 consagrado o princípio da separação e da liberdade religiosa. Finalmente, parece-me importante lembrar que o shintoísmo não tem fundador (no sentido de um Moisés, Jesus Cristo, Maomé ou Gautama) nem escrituras sagradas. Os seus textos de referência, os Kojiki e Nihon Shoki, são compilações ou registos de tradições orais muito mais antigas, redigidas já na nossa era cristã, depois da introdução da escrita e da cultura chinesa no Japão. A própria palavra Shinto, escrita com dois caracteres, é a chinesa Shentao, que significa via da mente ou do espírito. Os mesmos caracteres, na sua pronúncia japonesa não chinesa, podem ler-se kami michi, o caminho dos kami ou espíritos (quiçá possamos dizer almas, sendo alma o que está em cada acontecimento telúrico, nas rochas, nos mares, nos seres vivos ou já passados...). No budismo chinês há textos em que shentao refere os ensinamentos de Gautama e outros em que parece designar a alma mística; no confucionismo, tanto refere as forças misteriosas da natureza, como a senda que conduz a um túmulo; no taoísmo, aponta para os exercícios, atitudes ou, ainda, práticas mágicas que levam ao destino.
Camilo Martins de Oliveira