FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO
Figura na entrada do Templo de Nikko
23. SHINTO e SÍMBOLOS
O shintoísmo não tem ídolos, como os têm os pagãos por esse mundo e essa história fora, desde a Polinésia a Grécia e Roma, da África à Fenícia, e em muitas outras e variadas partes... Os missionários cristãos, como já lemos, referiam-se com frequência aos guardiões e budas dos templos budistas japoneses como se fossem ídolos, talvez por não lhes ocorrer que antes seriam simples ícones ou representações, imagens de lembrança e alerta como as que - apesar de históricas crises de iconoclastia, ainda hoje com sequelas nas confissões protestantes - foram povoando as igrejas cristãs... (Pensemos, a talho de fouce, se, por exemplo, umas estátuas católicas peregrinas não estarão mais próximas de um ídolo do que de um ícone cristão...). Os santuários shinto são simplesmente albergues ou abrigos dos kami, estes não se limitando às personagens míticas antigas, pois que são todas essas forças que habitam os corações das pedras, das águas, das árvores, dos animais, e dos homens que somos e dos que já morreram... Até ícones budistas, como kannon e muitos bodisatva entraram no panteão dos kami... . Mas, com excepção de algum leão ou outro bicho posto à entrada de um santuário, como guarda qua assusta os maus espíritos - e nem uns nem outros se veneram - nenhum ídolo se encontra num santuário shinto. Mesmo nos lares, os altares domésticos são miniaturas de santuários, como habitações dos espíritos dos antepassados ou protectores da família. A religiosidade shintoísta é uma comunhão com a natureza e a história, e a comunidade dos homens. Penso que se entenderá melhor o que aqui procuro dizer se reflectirmos no conceito de unmei ... Mas, todavia, que cada um de nós pense, antes de pretender perceber os outros: "também eu sou ocidental e cristão, nado e criado na cultura do destino e responsabilidade individual, da história da humanidade num tempo escatológico, e no culto de um Deus único e transcendente que - assim o professa a minha religião - incarnou, nascendo de mulher, para tomar a nossa condição e redimir os nossos pecados, pela sua morte e ressurreição..." Ora, para o shintoísta, não há pecado original, a natureza e o homem são inatamente bons, pesem embora as catástrofes naturais frequentes: terramotos e maremotos, furacões e vulcões... ou, ainda, as faltas e má conduta dos homens. Mas não sabemos porque se zangam os espíritos, sejam os da natureza ou os dos homens que a ela pertencem. Temos apenas de os serenar, com as nossas ofertas (que, primitivamente eram produtos da terra e do trabalho dos homens) e orações. Ou pelo cuidado da purificação, ainda que esta seja só o rito matinal da lavagem da boca e dos dedos com água clara. Podemos mesmo distraí-los, diverti-los: as festas dos santuários shinto apresentam danças rituais e coloridas (kagura), em que as dançarinas (que mexem mais os braços e inclinam o corpo, do que movimentam os pés) estão viradas para a entrada do templo - para que as veja o espírito que ali mora - e não para o público ou assembleia dos fiéis. (Lembremos que semelhante posicionamento ou atitude litúrgica também se discutiu quanto à missa católica, designadamente quando o concílio Vaticano II determinou que o celebrante estivesse voltado de frente para a assembleia, e não de costas...e também se decidiu então pelas línguas vernáculas, em vez do latim ; nos ritos shinto, continua a usar-se um japonês arcaico, só acessível a quem o estude). Mas também se apresentam outras danças clássicas (bugaku) e concursos de tiro ao arco (a pé e a cavalo), para distrair o público, e até combates de sumo, cuja arena é sagrada, purificada por sal que os lutadores lançam para afastar os maus espíritos.
Voltemos ao unmei: literalmente, traduz-se por movimento do mundo. Significa destino. É o movimento de tudo aquilo que, natural e invisivelmente, traça a nossa presença no mundo. É inimputável, e tampouco pode ser contrariado: contra ele nada podemos fazer. Por isso, o destino de cada um de nós é, simultaneamente, o pessoal e o de todos e tudo. A felicidade é a simples memória de pertencermos ao cosmos... A relação original do shintoísmo com o envolvimento da natureza, que se manteve mesmo durante séculos de economia predominantemente agrícola, explica também que ele tivesse primeiramente sacerdotisas, antes de se imporem as classes sacerdotais masculinas, aliás vinculadas a funções e famílias determinadas: os Nakatomi celebravam os ritos e preces; os Imbe eram abstinentes e asseguravam as purificações e o contacto com os kami; os Urabe eram adivinhos; os Shirakawa foram, do sec.XI ao XIX, porque família de cepa imperial, os supervisores de todos os outros. O Imperador, detentor dos três símbolos (o espelho, a espada e a joia), era o sumo pontífice. Curiosamente, até à restauração Meiji, quem celebrava no santuário imperial de Ise era uma sacerdotisa, princesa de sangue imperial. Tal função foi terminada em 1868, pelo governo Meiji que, além de ter separado o budismo do shintoísmo, e feito deste a religião nacional, quis reunir efectivamente as sumas funções religiosas e políticas na pessoa divina do imperador. Depois da 2ª Grande Guerra, com a abolição deste regime, a sacerdotisa regressou, em 1946. Em Tokyo, no santuário Meiji, onde se guardam os espíritos do imperador desse nome e sua mulher, a avenida conducente ao torii que marca a entrada do templo, chama-se Omote-sando, ou principal acesso. Os sando surgem em todos os santuários, caminhos assinalados pelos torii (de tori=pássaro e i =estar, dois caracteres que, assim juntos, significam poleiro). São portanto um símbolo de uma habitação para a qual os espíritos voam... No interior, quase sempre invisível no santo-dos-santos, guarda-se um espelho de metal, símbolo de Amaterasu, como do Imperador. No Jinno Shotoku (1339), Chikafusa Kitabatake escreveu: O espelho nada esconde. Brilha sem egocentrismo. Todas as coisas, boas e más, certas ou erradas, nele se reflectem sem falha. O espelho é fonte de honestidade porque responde de acordo com a forma dos objectos. Aponta-nos a equidade e imparcialidade da vontade divina.
Camilo Martins de Oliveira