FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO
Biwa (imagem wikicommons)
24. OUTRAS MEMÓRIAS E ASSOCIAÇÕES...
Pareceu-me interessante recolher também - neste volume de memórias da viagem que, como guia, fiz ao Japão, com o Centro Nacional de Cultura - outras que guardei de diferentes idas e estadias, todas elas, aliás, publicadas no blogue do CNC, quer por referirem aspectos omissos nestas que se publicaram sob o título de FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO, quer porque, mesmo quando novamente os apresentem ou evoquem, estabelecem pontes com diversos temas de outras culturas. Na verdade, a permanência mais prolongada - ou o contacto mais assíduo -- em qualquer cultura que não seja a que, de um ou outro modo, nos formou, leva-nos, muitas vezes, a comparar referências, mais em busca da proximidade ou familiaridade, do diálogo, do que da precisão das diferenças, ainda que estas, naturalmente, não desapareçam. Com essa intenção, irei transcrevendo trechos de crónicas passadas, embora introduzindo pequenas adaptações e alterações, ou acrescentando-lhes uma ou outra reflexão posterior. E, por me parecer um bom prefácio a esta segunda parte do nosso memorando, reproduzirei hoje partes de uma das primeiras crónicas que escrevi para o CNC, em 10 de Agosto de 2012, intitulada
A MÚSICA ENTRE MUITAS ROTAS.
Num texto introdutório a S. Francisco Xavier - A Rota do Oriente, produzido por Jordi Savall, escreveu Rui Vieira Nery: Como reagiram todas essas culturas ao impacto da música ocidental, e como reagiram os músicos peninsulares aos sons desconhecidos das tradições locais? As vilhuelas e as guitarras que iam a bordo estabeleceram contacto com outros instrumentos de corda dedilhada como o sarod indiano ou a biwa japonesa. Os tambores europeus encontraram-se com a ampla gama de virtuosísticas percussões africanas e a sosisticada tradição da tabla indiana. A flauta e a flauta doce, que podem ter acompanhado facilmente os marinheiros peninsulares, descobriram a atmosfera poética do shakuhachi japonês... Que resultou daqui? No seu Tratado em que contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre gente da Europa e esta província do Japão, o jesuíta Padre Luís Froes (sec.XVI) considera que a música japonesa é a mais horrenda que se pode dar, mas também reconhece que todos os nossos instrumentos lhes são insuaves e desgostosos... Já o dominicano Frei Gaspar da Cruz, no seu Tratado das cousas da China que, publicada em Évora em 1570, é a primeira monografia sobre a China a ser impressa na Europa, escreve: Os instrumentos que usam para tanger são umas violas como as nossas, ainda que não tão bem feitas, com as suas caravelhas para as temperarem, e há umas de feição de guitarras que são mais pequenas, e outras à feição de viola de arco que são menores. Usam também de doçairias e de rabecas, e de uma maneira de charamelas que quase arremedam as de nosso uso. Usam de uma maneira de cravos que têm muitas cordas de fios de latão; tangem-nos com as unhas que para issso criam; soam muito e fazem mui boa harmonia. Tangem muitas vezes muitos instrumentos juntos concertados em quatro vozes que fazem muito boa consonância... Um século depois do Tratado de Frei Gaspar, um jesuíta português, o Padre Tomás Pereira, era pessoa notável em Pequim, e muito estimado pelo imperador Kangxi. Um jesuíta belga, o Padre Verbiest, escrevia em 1680: Construímos um carrilhão numa torre da igreja e noutra colocámos um órgão fabricado com tubos de estanho conforme as regras da música. Todos querem visitá-lo e creio que, no Oriente inteiro, não há um de tamanha grandeza. Estas duas obras de arte, devidas à habilidade e engenho do Padre Pereira, músico muito habilidoso, são de uma perfeição acabada... E, em 1735, o Pe.Du Halde anotava: A facilidade com que, por meio de notas, retemos uma ária logo à primeira audição, surpreendeu o falecido imperador Kangxi. No ano de 1679, mandou que viessem ao seu palácio os Padres Grimaldi e Pereira, para tocarem um órgão e um cravo que outrora lhe tinham oferecido. Saboreou as nossas árias da Europa e pareceu ter gosto nisso. Em seguida mandou que os seus músicos tocassem uma ária da China num dos seus instrumentos, e ele mesmo o tocou com muita graça. O Padre Pereira tomou nota da ária inteira enquanto os músicos a cantavam. Quando terminaram, o Padre repetiu-a sem falhar um tom, e como se há muito já a conhecesse. O Imperador ficou muito surpreendido, custou-lhe a crer. Teceu grandes louvores à precisão, à beleza e à facilidade da música da Europa. Admirou sobretudo como o Padre em tão pouco tempo aprendera uma ária que tanto lhe havia custado a ele e aos seus músicos... Imaginemos nós também que as multidões nipónicas que, no sec.XVI, acorriam a ver os cortejos e procissões dos portugueses - e tanto nos imitavam no traje e outras modas - talvez não desgostassem assim muito das nossas músicas e animações...
Camilo Martins de Oliveira