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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


Imagem do Prof. Takashi Nagai no Museu da Paz, em Nagasaki


26. KONO KO O NOKOSHITE


Um dos primeiros livros sobre os bombardeamentos atómicos cuja publicação, no Japão, foi autorizada pelo ocupante americano intitula-se Kono Ko o Nokoshite (Ao Deixar Estas Crianças). Estas eram os filhos, uma e um, do Prof.Doutor Takashi Nagai, filhos que lhe dera a mulher que a terrível bomba matara. A morte e despedida anunciada, agora já só ele a podia dizer, e sabendo bem que as radiações, que também a ele tinham atingido, o matariam. E assim morreu, ao fim de seis anos de sofrimento, em 1951. Entretanto, recebera a bênção papal, a visita de Helen Keller e, em Maio de 1949, a do Imperador Hirohito, que o ocupante americano e a Constituição de 1947 já haviam utilmente transformado apenas num pacífico e inimputável símbolo da nova nação nipónica... O Prof.Nagai, médico radiologista, cientista e investigador , sabia bem o que lhe acontecia, pois já antes da guerra e da bomba ele tivera de se expor a experiências com raios X... e acautelar-se! Mas morria então, por nada poder fazer ou ter feito, aos 43 anos, vítima da força destruidora do átomo. Era um dos muitos cristãos católicos que ainda hoje vivem em Nagasaki. No conjunto da população japonesa actual, 1% serão cristãos, 0,6% católicos? Mas este homem, sobretudo com a publicação do seu segundo livro, Nagasaki no Kane (Os Sinos de Nagasaki), que foi adaptado ao cinema, virá a tornar-se num dos mais profundos inspiradores do sentimento pacifista que, vencendo qualquer ressentimento, crescentemente se apoderará da alma japonesa. Um cristão introduzirá assim o ninjo como valor constitutivo do giri. Quando o nosso grupo do CNC visitou, em Nagasaki, a catedral de Urakami - cuja construção se iniciou em 1895, na era Meiji, e concluiu em 1925, já no princípio da era Showa ( do imperador Hirohito, condutor da guerra), para ser destruída em 1945, pela bomba atómica, e reconstruída, pelos cristãos japoneses em 1959 - recordei aquela Sexta-Feira Santa, anos antes, em que ali recolhido meditei nessa reflexão mística de Takashi Nagai, médico, cientista, vítima de um acto de guerra atroz, cristão sempre: Não terá sido Nagasaki a vítima escolhida, o cordeiro sem mancha, sacrificado numa fogueira total, num altar de sacrifício, respondendo pelos pecados de todas as nações durante a 2ªGuerra Mundial?" E pensei senti que a interrogação do Prof.Nagai era profundamente japonesa e simultaneamente shintoísta e cristã. Contra o shintoísmo de Estado, que fizera do imperador a incarnação do divino e a vontade única de todas as consciências, no caminho do altar sacrílego da guerra, renascia o shinto como caminho dos espíritos para a harmonia, porque, naquela alma de cristão, o sacrifício imposto igualava todas as vítimas e reclamava ,sim, perdão e paz, ressentimento e vingança não. E ocorreu-me aquele passo do Apocalipse de S.João: Digno é o Cordeiro sacrificado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a honra, a glória e o louvor! E vem-me, a esta cabeça que também se chama coração, uma lembrança de Roma, que um dia tive em Kyoto. Dessa Roma que no mesmo Apocalipse de S.João, será essa mulher blasfema, com sete cabeças e dez cornos... Tinha na fronte inscrito um enigma: Babilónia magna, mãe das prostitutas da terra, que se embebedava do sangue dos santos e dos mártires de Jesus. Um deles teria sido Pedro, nos anos 60 da nossa era, talvez uns dos muitos crucificados e queimados, tochas ardentes iluminando os jardins de Nero, como conta Tácito, que acrescenta: Mesmo que essa gente fosse culpada e merecesse o maior rigor, tínhamos pena deles e perguntávamo-nos se eram executados em virtude do bem público, ou apenas para satisfação da crueldade de uma só pessoa... Até que ponto a crueldade de certas execuções não terá, apenas, a dimensão mesquinha do nosso demónio? Pela tradição imperial japonesa, que se pretende descender da deusa solar Amaterasu, a maioria dos imperadores nipónicos pouco ou nenhum poder político exerceu, mas foi milenarmente incarnando o mito fundador da ascendência divina do povo japonês. Mas a sua afirmação como poder temporal universal surge com a "restauração" Meiji e, mais tarde, baldados os esforços de liberalização e democratização, que se prolongaram pela era Taisho, levou, com o imperador Showa (Hirohito) ao exaspero de uma pretensão de domínio destruidora de dezenas de milhões de vidas humanas. No plano externo, retomava-se assim a política expansionista de Meiji, que levara à declaração de guerra à China (em 1894) - com vista à ocupação da Coreia (colonizada em 1904) - que teve de ceder ao Japão a Formosa e as Pescadores (nomes ainda portugueses), além da península de Liaotung no sul da Manchúria. As ofensivas bélicas sucessivamente lançadas, sob o imperador Hirohito, a partir de 1931 (em Le Lotus Bleu, aventura de Tintin na China, surge precisamente a explosão, provocada pelo exército japonês num troço da ferrovia da Manchúria do Sul, que serviu de pretexto para os primeiros ataques japoneses) conduziriam a loucura até à guerra que eles chamaram Pan-Asiática e que, depois do ataque a Pearl Harbour, provocou a intervenção dos EUA, em 1941, na que passou a ser conhecida por Guerra do Pacífico (ironias da toponímia geográfica) até à derrota final do Império do Sol Nascente, após os bombardeamentos atómicos de 1945 em Nagasaki e Hiroshima. Até esse desastre final acontecer, já em território japonês, e antes dos outros raids aéreos americanos sobre o arquipélago nipónico, as notícias da guerra chegavam aos cidadãos por via da propaganda oficial. Afinal, tudo se desenrolava lá longe, e o japonês comum e não mobilizado pouco ou nada sabia das barbaridades que os exércitos imperiais iam cometendo pela Ásia fora... Tocava-lhes a guerra, sim, pela mobilização crescente de jovens, pelo racionamento, pelo sacrifício de bens próprios, e do próprio trabalho, em prol do esforço bélico nacional. Essa progressiva pauperização dos cabedais e das almas e, finalmente, a destruição e a miséria impostas pela derrota final, explicam o desalento, a resignação, e até a relativa simpatia com que os vencedores ocupantes foram recebidos. Estes traziam - a um povo que ouvira, pela primeira vez na vida, a voz do seu Celeste Soberano, apenas em 1945, quando, pela rádio, lhe anunciou a rendição do Divino Império do Sol Nascente - donativos de bens essenciais, dinheiro para comprar serviços, garantias de ordem pública, e algumas esperanças e ideias novas, como a de democracia, etc. Nas grandes cidades, como Osaka ou Tokyo, tocadas por bombardeamentos não atómicos, multiplicaram-se bairros de lata, como se propagou o abastecimento das famílias em lixeiras, o mercado negro, a prostituição, esta sobretudo a soldados americanos. Mas também vieram casamentos de japonesas com ocupantes, e começou a desenhar-se um novo estatuto social da mulher, incluindo a extensão do sufrágio. Entre os intelectuais, os literatos e políticos - e não só - foi reaparecendo o rasgão da alma japonesa, essa luta interior entre tradição e modernidade, nacionalismo e internacionalização, inspiração radicalmente nipónica ou maior aceitação de conceitos exógenos na reconstrução de um país e de um povo. Um debate chegou mesmo a qualificar-se como sendo entre a autenticidade e a decadência... Venceu finalmente a esperança e a realização dela por virtude da solidariedade e do trabalho. Sem esquecer a fórmula dos votos de Ano Bom, que tantas vezes cito: Sê flexível como o bambu e persistente como o pinheiro. Lembro ainda estes versos do poeta Horiguchi Daigaku, escritos em 1946:


Encolheu-se o país,
está impotente,
escasso de alimento,
transbordante de vergonha,
com frágil vida.
Parem as lamentações!
Ergam-se os olhos
às copas das árvores,
até ao céu!

Camilo Martins de Oliveira