CARTAS, BRAÇOS VIVOS DA NOSSA AMIZADE
Singular amiga Dulce:
Recordo que um dia, pelos nossos catorze anos, me perguntaste se existiriam cidades cor-de-rosa, tua preferida cor. Fiquei silenciosa, mas achei provável. Aliás, bem sei, hoje, o quanto achaste que eu as imaginaria prováveis, a elas, às realidades ditas inverosímeis. E aqui a tens nesta foto que te envio, uma parte de uma cidade cor-de-rosa, numa claridade acesa de um mundo em reflexos de esposo amante. E é da Índia que te escrevo.
Dulce, minha doce amiga Dulce que estes mundos andam fechados ou expostos a cadeados protegendo-se de quem os não sente como são.
Jurei tirar a limpo o impacto que senti ao chegar à Índia, àquela que se não explica e nos deixa lá o coração. E aqui me tens muito pouco soberana do que entendi.
Sei que chorei numa estranha ingenuidade de muita força, como se afinal conservasse a pureza original de tudo, como se afinal o reconhecimento de uma verdade estivesse ali. E estava. A verdade do que via era minha superior rival face ao meu compreender que as mãos erguem-se por muitas razões, até por aquelas que apenas esvoaçam nos ares ou caem na terra por chuva em mil contas de um cair cujo feitiço é.
E é amor solto, surpresa desarmada, enrolado numa solidariedade estranha à volta do pescoço. Dulce!, amiga Dulce, que aqui se amam muitos deuses, muitas confirmações da sua presença, ainda que só surjam com nitidez às crianças.
Os inúmeros ruídos desta cidade rosa, desta cidade onde a pobreza não é libertina, sucedem-se em manifestações de alegria, e alegria apenas por se estar vivo, e é tanto, que o deus mais bondoso do mundo, instalou mães e filhos e pais e idosos e animais e plantas num lindo pavilhão contíguo ao céu.
Depois, diz-se, depois de ultrapassado o cândido encontro com tudo, este mesmo deus instalou-se num palácio rendilhado, assente em tão fortes colunas e no meio de tão grande lago, que deixou de escutar o sofrer que, infelizmente a ele, a esse sofrer extremo, lhe faltará sempre acima dele qualquer coisa que o explique por assim se instalar em corpos e almas.
Querida Dulce, amiga de sempre, deixa que te diga que na Índia o resto de nós tem um lugar especial. Um lugar cujo sentido não é usado nos dicionários, um lugar de possibilidades e de condenações perscrutadoras de filosofias para lá das palavras. E há em cada olhar um tocador paciente que muito pesa no resultado final de cada dia.
Caminha-se para a noite num despojamento ressequido de alguma imaginação transfigurante. Talvez seja chegada a hora de permitir que passe o elefante que enfeitiçou as gentes que o acreditam ainda assim imprevisível.
Foi quando vi através da janela do carro onde eu seguia que, enquanto o jovem bebia, a piedosa mulher observava-o atentamente, de corpo esgotado pelo cansaço, mas pronta a renascer mal o jovem se recuperasse.
A empoeirada cidade rosa acende-se então em mil velas num até de manhã.
Hoje, querida Dulce, nada mais te digo desta Índia. Conforme prometido, escrever-te-ei sempre e responderei a tempo às tuas cartas, mas agora preciso de dormir, e por que não possuo eu um trono para te oferecer e que de muito poder te retirasse a doença que te mina tão jovem, tão viva.
Beijo, abraço
Teresa, a tua amiga Teresa Bracinha Vieira, como muito dizes.
28 de Setembro 2014