"CREDO"
1. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM
Assim começa, na Vulgata ou versão latina de S. Jerónimo, o Evangelho segundo S. João. Nos meus tempos de rapaz, antes das reformas litúrgicas do Concílio Vaticano II, nessa língua se lia, a encerrar todas as missas, o prólogo desse Evangelho. Talvez por isso me tivesse familiarizado tanto com ele, ao ponto de o ter decorado no texto grego original... E ainda hoje o considero um dos mais importantes de toda a literatura mundial, e indubitavelmente fundador, não só da formulação da fé cristã, como do seu pensamento teológico. Na verdade, ali se afirma que no princípio era o Verbo - como, em título, escrevemos em latim - en arcsi in ó Logos - em grego assim transcrito em caracteres latinos ... Ambos os termos - Verbum e Logos - são traduzidos em português por Verbo ou Palavra, o que talvez nos reduza a compreensão do que o texto original quer dizer : pois Logos não diz só palavra, mas também causa, motivo, razão, e até promessa; e Verbum estende a palavra a dizer expressão, discurso que explica. Hoje, quem não se entendeu um pouco com as línguas clássicas, perceberá melhor o que se quer dizer, pensando em expressões como "tem lógica" (percebe-se, faz sentido) ou farmacologia ( a logia sendo aí a explicação ou o entendimento dos fármacos). No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Estava Ele no princípio com Deus. Tudo por Ele foi feito, e nada de quanto se fez foi feito sem Ele. N´Ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, e as trevas não a receberam. Houve um homem enviado por Deus, chamado João, o qual veio como testemunho, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por via dele. Não era ele a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Era a luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não O reconheceu. Veio para o que era seu e os seus não O receberam. A todos, porém, quantos o receberam, deu Ele o poder de se tornarem filhos de Deus, quer dizer, àqueles que crêem no seu nome, que nem do sangue, nem do desejo da carne, nem da vontade do homem, mas só de Deus nasceram. E o Verbo se fez carne e veio habitar entre nós; e nós vimos a sua glória, glória do Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e verdade... Assim, do século XVI (Concílio de Trento) à segunda metade do século XX (Vaticano II), ouviam os fiéis o relato joanino, evangélico, histórico e teológico, do mistério da Incarnação de Deus, início da história e economia da Redenção que terminará no apocalipse final da glória cheia de graça e verdade. Cabe aqui notar que o nome de missa - que se popularizou na Igreja Latina como designação do que a Igreja Oriental, de língua grega, sempre designou por Santo e Divino Sacrifício - vem da locução Ite, missa est! (Ide, sois enviados!) com que, até ao sec.IV, se despediam, depois das leituras bíblicas, homilia e recitação do Credo, os catecúmenos, reservando-se para os já batizados a liturgia da consagração e comunhão. A expressão acabou por generalizar-se, e talvez isso explique a introdução mais tardia da profissão joanina: a confirmação da fé antecedia o envio para a missão. Não sendo eu historiador, nem hermeneuta, nem exegeta, nem sábio seja em que ciência for, não me compete analisar nem debater hipóteses sobre a identidade de João Evangelista: seria ele filho de Zebedeu e, com seu irmão Tiago, pescador e discípulo da primeira hora...ou antes seria membro da alta aristocracia de Jerusalém, da família de sumos sacerdotes judaicos, homem culto e rico, em cuja casa terá tido lugar a Ceia do Senhor? Muitos peritos em escrituras , história e sociedade daquele tempo, inclinam-se hoje para esta probabilidade. De si mesmo, o evangelista diz que era "o discípulo que Jesus amava", aquele que, sobre o ombro do Mestre reclinou a cabeça. e a quem Ele, do alto da cruz, confiou a Senhora sua mãe. Os sábios nossos contemporâneos que, na esteira de Jean Colson (L´Énigme du Disciple que Jesus aimait, Paris,1969) seguem a tese de que era um patrício de Jerusalém, identificam-no também por um testemunho do século II, assim referido pelo historiador Jean-Christian Petitfils no seu magnífico Jesus (Paris, Arthème Fayard, 2011): Mas o testemunho essencial sobre a identidade do autor do quarto evangelho é o de Polícrato, bom conhecedor das tradições de Éfeso, de que foi bispo, como foram cinco membros da sua família antes dele. O testemunho é de peso. Invocando, em carta ao papa Víctor, de 190 a 198, "as grandes luzes" que se tinham extinto na Ásia, cita Filipe, « um dos Doze, que falecera em Hierápolis» e «João, que repousara a cabeça sobre o peito do Senhor, que foi hiéreus (sacerdote) e, a esse título usara o pétalon ( pétala de ouro), testemunha e didaskale (docente). Faleceu em Éfeso ». Muitos autores contemporâneos, católicos, protestantes e não só, reconhecem, para além da sua evidente singularidade, ao Evangelho de S. João, frente aos outros três (os sinópticos), características que, resumindo a descrição delas por Petitfils, podemos enumerar assim: "unidade literária, homogeneidade de estilo, de pensamento e de visão teológica... uma arquitectura narrativa extremamente complexa, revelando notáveis conhecimentos, não só da Bíblia hebraica, mas da organização do Templo, das festas e da vida em Jerusalém... um pensamento típico do judaísmo do primeiro século da nossa era... a oposição entre o bem e o mal, a luz e as trevas, como a que encontramos em Qumrân... João insiste na Incarnação e na carnalidade da Ressurreição (S. Tomé é convidado a pôr o dedo nas chagas de Jesus)... " Por mim, que apenas escrevo para dar testemunho da minha fé, direi que, apesar de ler os sábios, e de com eles me interrogar sobre o maior ou menor rigor da fixação ou interpretação de um texto, sou sempre intimamente surpreso e preso pela força da sinceridade de João Evangelista, e acredito no que ele nos diz na sua primeira epístola (1, 1-3): O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da Vida - porque a Vida manifestou-se, e nós vimos e atestamos, e vos anunciamos a Vida eterna, que estava junto do Pai e nos foi manifestada - o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos igualmente a vós, para estardes, vós também, em comunhão connosco; e a comunhão que temos é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. E escrevemos isto para a nossa alegria ser completa. A minha fé cristã é a fé da alegria. Foi-nos dada uma boa nova, que brilha no coração das nossas trevas: tomando, pelo seu Verbo - que está com Ele e é Ele, centro criador do mundo e seu motor - a nossa condição, Deus faz-se carne , sofre, morre e ressuscita. Para que assim nos aconteça também, no termo desta cosmogénese de que somos parte. A presença ubíqua do mal, que a nossa consciência humana angustiadamente sente como existência absurda, encontra novo sentido, ao descobrirmos o sofrimento pela perspectiva do amor misericordioso de Deus. Madre Teresa de Calcutá - que, tal como as suas irmãs e seguidoras, as Missionárias da Caridade, dedicou a sua vida ao acompanhamento da morte dos mais pobres - escreveu : God is everywhere and in everything and without Him we cannot exist, A fé cristã é a fé da alegria no sofrimento, no nosso sofrimento identificado com o sacrifício de Cristo, até à morte e à ressurreição. Deus está em toda a parte e em todas as coisas, não podemos existir sem Ele, até no nosso sofrimento está presente. Infelizmente, a meu ver, este sinal redentor do sofrimento como promessa de ressurreição e vida também deu azo a correntes de tendência masoquista no cristianismo, aliás conducentes à prática de sacrifícios ou renúncias muitas vezes entendida como preço a pagar pela obtenção de especiais favores divinos, ou ainda à auto inflicção de castigos corporais pesados. Todavia, nem sempre aos crentes ocorria reflectir no sofrimento imposto a multidões humanas, quer por calamidades naturais, quer - e bem pior ainda - por descuido, desleixo, aborrecimento ou crueldade de outros homens. E bem podia ser que, pensando na obrigação de levar a terceiros o alívio ou a consolação possíveis, melhor entendessem o que o Senhor Deus significa quando diz que não quer o sacrifício mas a misericórdia. Sintopenso muito que a Igreja - de que Cristo é a cabeça, e os fiéis a presença visível do Verbo neste mundo - nem sempre cumpre como devia - e contra mim falo também - a sua missão de anunciar a boa nova aos pobres, estando mais com eles, e contra o poder maligno que gera ódio e guerra, injustiça e desespero. Porque, na verdade, nem eu, nem fiel algum, nem tampouco milagre há capaz de mudar, da noite para este dia nosso, o mal em bem, o sofrimento de miríades de seres humanos em súbito bem-estar. As obras de misericórdia e caridade, esses pequenos gestos que fazemos com boas intenções, servirão muitas vezes - para os que menos razão de queixa tenham da vida, da vida tal como neste mundo se publicita a felicidade - servirão, digo, ou talvez sirvam, para consolar as nossas próprias almas aflitas... Quando, à noite, finalmente o silêncio nos envolve a escuridão e lhe dá luz, pensossinto que a minha circunstância não é só essa que, no dia a dia, faz parte de mim, mas outra, maior, muito maior ainda, comunhão universal, em todos os tempos e modos, da alegria que é dor, onde tudo é graça, desse Deus incarnado no sofrimento da nossa condição. Para o cristão, o mal não é desejável, nem sequer aceitável, combate-se. E combatê-lo é opor-lhe o bem, o bem que, pela graça de Deus, cada um de nós fizer, conforme os seus dons, talentos e possibilidades. O sofrimento que o mal nos causa, esse é redentor sempre que transformamos a negação de um bem, que ele traduz, em força positiva, em esperança. Todos conhecemos a história de Job, narrada no livro com esse nome, no Antigo Testamento: num ápice, perdera tudo, bens e família, ao ponto de poder dizer Saí nu do ventre de minha mãe e nu para ele voltarei... Mas profetiza assim: Eu sei que o meu Redentor está vivo e no último dia se levantará sobre a terra. Revestido da minha pele, estarei de pé; na minha carne verei a Deus. Eu mesmo O verei, meus olhos O hão-de contemplar. Dentro de mim suspira o meu coração.
Camilo Martins de Oliveira