"CREDO"
2.FIDES EST SUBSTANTIA SPERANDARUM RERUM
Esta citação de S. Paulo (Hebreus, XI,1) serve, a S. Tomás de Aquino, no Prooemium da sua Expositio in Symbolum Apostolorum, para com força resumir o que é isso a que chamamos Credo: a fé é a substância das coisas que esperamos. A meio da sua sétima década de vida, que coisas poderá esperar um homem tão banal como eu? Há quem creia que revive invocando saudades e cenas do seu passado mais gostoso ou prazenteiro, ou tentando irremediavelmente reconstituí-las na decadência de si, como o velho tonto do Foten Roji Nikki do Tanizaki, diário de um ancião que teima em agarrar-se a médicos e delícias... Outros há que procuram esquecer e deslizar mansamente para o sono... Outros ainda se sentirão invadidos pelo terror de recordações, arrependimentos tardios e temores do inferno... Alguns pedirão a algum deus esquecido uma oportunidade de reparação, uma qualquer indulgência, mesmo dessas que antigamente se vendiam por preços estabelecidos em espécies que variavam da moeda sonante à repetição apressada e longa de locuções precatórias... Quantos se lembrarão simplesmente da fé? Como diz frei Tomás de Aquino, nesse texto que referimos, per fidem inchoatur in nobis vita aeterna: nam vita aeterna nihil aliud est quam cognoscere Deum. Isto é: pela fé começa em nós a vida eterna: nem a vida eterna está alhures, senão no conhecimento de Deus. Mas esse não o temos já aqui, apenas nos é dado acreditar que veremos a Deus, que essa esperança será cumprida. Ou, quiçá, a visão de Deus seja já antecipada por sinais... Não me refiro a visões, aparições ou quaisquer ilusões. Penso simplesmente no ensinamento de Jesus: amai-vos uns aos outros, por esse sinal vos reconhecerão. Ou ainda no que S. Paulo diz do amor, quando refere que é ele a maior das virtudes : a fé e a esperança morrerão connosco, o amor durará eternamente. Assim sendo, se a fé é a substância das coisas que esperamos, a substância da fé é o amor. Volto a Feuerbach, tantas vezes apontado como um dos filósofos da morte de Deus... Eu mesmo assim o entendi, até ter percebido que é, muitas vezes, um certo pretenso rigor "fundamentalista" cristão que, afinal, esconde o sol da fé, que é o amor de Deus. Passou-se de um credo apostólico, dessa simples confissão das testemunhas da vida, paixão, morte e ressurreição do Verbo incarnado, para uma "fé" cada vez mais codificada, enchendo-se de dogmas adventícios, conformes aos receios, combates e devoções dos tempos que iam passando... Deu-se à Igreja, una, santa, católica e apostólica, uma aparência de seita, sujeita a uma hierarquia clerical legiferante e ciosa de saberes e poderes que não são legitimamente seus sem o consenso das assembleias dos fiéis em comunhão. Quiseram fechar o Corpo Místico de Cristo num palácio monárquico, surdo às vozes do Povo Sacerdotal. Na sua Expositio in Symbolum Apostolorum, o Doutor Angélico diz claramente: Sicut videmus quod in uno homine est una anima et unum corpus e, todavia, tem vários membros, assim também a Igreja é um corpo com diferentes membros, sendo o Espírito Santo a alma que lhe dá vida. E adiante enumera as qualidades da Igreja: una, santa, católica (i. e. universal), forte e firme. Sempre me detive nos fundamentos que S. Tomás aponta para a unidade da Igreja: a unidade na fé, a unidade na esperança da vida eterna, a unidade na caridade, ou seja, a união no amor de Deus e no amor mútuo. E insiste nesse amor que reúne pela compaixão e cuidados recíprocos, concluindo: cada um deve servir o próximo com a graça que lhe tiver sido dada por Deus. Portanto ninguém despreze nem permita ser afastado ou excluído dessa Igreja... A Igreja é a comunhão dos crentes no amor de Cristo, Deus incarnado, e por isso mesmo é sinal da fé, cuja substância é a esperança das coisas que esperamos. E o que todos esperamos é a plenitude do amor, a eternidade da paz, em graça e em verdade. Assim deverá a caridade ser o cimento da comunidade eclesial, e esta o sinal, o anúncio a todos, de que é universal, no tempo e no espaço, a vocação do amor de Deus. Tal anúncio da boa nova, não é para ser imposto coercivamente, nem deverá ser pretexto de afastamento ou repúdio de outros e suas crenças, mas é, em virtude da sua própria razão essencial, testemunho de que a verdade de Deus é o amor. S. Bernardo, monge reformador da Ordem de S. Bento, fundador dos cistercienses, grande amigo e protector da mística abadessa Stª. Hildegarda von Bingen, autora literária e musical, defensora da dignidade das funções eclesiais das mulheres, também pregou uma cruzada... No seu sermão 66 (cf. Super Cantica) diz: Fides suadenda est, non imponenda, a fé deve ser persuadida, não imposta. Mas era homem do seu tempo, numa cristandade europeia, rodeada por mouros, a sul, alguns ocupando mesmo largo território da Península Ibérica, enquanto a sudeste o Islão também já ameaçava o Império Romano do Oriente... Contra infiéis e hereges, diria pois: quamquam melius procul dubio gladio coercerentur... mas talvez seja melhor coagir pela espada do que facultar a alguns a propagação dos seus erros! Todos nós, de quando em vez, sofremos a tentação de instintivamente confundirmos a prudência com o medo. Para S. Tomás, a prudência é serva da sabedoria (sendo esta um esboço ou prévia participação na felicidade por vir), leva-nos a ela, preparando-lhe o caminho. Na Summa (2ª parte, II, quaestio 47, art. 1º) retoma, citando-a, a definição de Stº. Agostinho: A prudência é o amor que escolhe com sagacidade. E creio que a escolha do amor é a alegria do testemunho da fé, antes e acima de qualquer agressiva afirmação sectária ( i.e., que divide, separa) daquilo que pensamos ser verdade nossa. Termino esta página, com referência a Ludwig Feuerbach. Sobre ele já falei e escrevi noutra ocasiões, a sua Das Wesen des Christentums certamente me ajudou - tal como a consideração de outras religiões e filosofias, incluindo reflexões pertinentes ao pensamento católico - a interpelar-me acerca da minha fé, cuja substância são as coisas que esperamos, quiçá esse Deus que todos chama e a quem cada um vai respondendo consoante a graça que lhe for dada: não fostes vós que me escolhestes, mas Eu que vos escolhi. O amor sendo a própria substância da minha fé, não acredito que Deus deixe alguém de fora... No prefácio à sua bela tradução de A Essência do Cristianismo (2ª edição, Lisboa, Gulbenkian, Outubro de 2001), a Profª. Doutora Adriana Veríssimo Serrão diz muito bem aquilo que também penso: E se a meditação de Feuerbach exalta a religiosidade genuína e sincera da fé viva, ao contrário das doutrinas em que Deus é metafisicamente concebido como primeiro princípio do mundo ou como abstracta ordem moral, o mesmo não sucede quando a fé se cristaliza numa visão do mundo que ultrapassa o indivíduo para se tornar um corpo institucional rígido e um instrumento de dominação. A severa crítica da teologia é simultaneamente uma advertência ao caminho que conduz da crença inofensiva intimamente praticada à separação violenta dos homens em sectores inimigos, e que acontece sempre que a fé se converte em dogmática, e esta na intolerância e no fanatismo que transformam o bom princípio da união no mau princípio da divisão e da exclusão... Comentando The Heart of the Matter , de Graham Greene, a escritora britânica Lesley Hazleton diz que a dúvida é essencial à fé: aboli as dúvidas, e ficareis apenas com convicção pura, fonte da arrogância e de todos os fundamentalismos... Relendo o enunciado, ocorre-me que qualquer palavra é sempre ela e a sua circunstância... (E aqui lamento não ter ganho mais tempo a estudar caracteres chineses, esses que os japoneses chamam kanji, para perceber melhor como a localização de um ideograma lhe pode mudar o significado...). Isto é: há dúvidas e dúvidas, há, por exemplo, interrogações e desconfianças, e, entre umas e outras, quase sempre, só o amor que temos ao sujeito ou objecto da nossa interpelação definirá a diferença. E é neste ponto preciso do que agora digo que me encontro com a análise crítica desse passo de Feuerbach: A essência secreta da religião é a identidade da essência divina e da essência humana - mas a forma da religião, ou a sua essência manifesta e consciente é a diferença. Deus é a essência humana, mas é percebido como uma essência diferente. O amor é o que revela o fundamento, a essência oculta da religião, mas a fé o que constitui a sua forma consciente. O amor identifica o homem com Deus, Deus com o homem e, por isso, o homem com o homem; a fé separa Deus do homem e, por isso, o homem do homem, e então Deus mais não é do que um místico conceito genérico de humanidade, por isso a separação de Deus e do homem é separação entre o homem e o homem, a dissolução do vínculo comunitário. Pela fé, a religião entra em contradição com o sentido ético, com a racionalidade, com o sentido simples e humano da verdade... Mas, pelo amor, ela volta a opor-se a esta contradição. A fé isola Deus, faz dele um ser particular diferente, mas o mor universaliza, faz de Deus um ser comum, cujo amor coincide com o amor humano... O amor tem Deus em si, a fé tem-no fora de si. O que eu quero dizer, falando da minha fé, é que, apesar da análise de muitos tratados e doutrinas, afirmações erga omnes de diversas instituições religiosas, incluindo discursos oficiais da Igreja Católica, nos levarem muitas vezes a concluir que faz todo o sentido essa afirmação de que a fé tem o amor fora de si, por não reconhecerem que tantos daqueles ateus, agnósticos, hereges ou infiéis - que tanto bem querem e fazem aos outros - são membros do Corpo Místico de Cristo, eu acredito que o amor é o modo permanente da fé. E assim os sinto comigo, a esses estrangeiros, na presença de Deus. Todas as vocações totalitárias - católicas, islâmicas ou marxistas, "fundamentalismos" nascidos da carne e do sangue, da vontade dos homens - caem na armadilha da religião como forma, na definição necessária de uma "fé" militante e exclusiva. Que divide e antagoniza os homens e os afasta da Fé, dessa cuja substância é o amor de Deus, a speranda res, aquilo que devemos esperar.
Camilo Martins de Oliveira