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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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"CREDO"

Osamu Nishitani


3. PATER NOSTER

A fé que procuro viver no dia a dia busca essa comunhão com Deus que é, necessariamente, comunhão com os homens. Enquanto acto de inteligência e vontade, exprime-se, não pela afirmação de dogmas nem pela repetição insistente de pedidos pessoais, mas, de modo mais procurado no Evangelho, pela oração que o Senhor nos ensinou: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus... O Verbo, o Filho consubstancial ao Deus incarnado, o mesmo que nos ensinou a não rezar como os pagãos - que esperam recompensa de sacrifícios e dádivas - também exclamou, na véspera do seu sacrifício na cruz: Pai, se for possível, afasta de mim este cálice! Mas seja feita a tua vontade! Jesus conhecia a vontade de Deus, e o homem que era assim teve de a aceitar. Nós não sabemos - nem para nós nem para os outros - qual é a vontade de Deus. Ao rezarmos, apenas sabemos que damos graças, porque tudo é graça, porque o nosso sofrimento subiu já ao céu, no sofrimento voluntário de Cristo! Como é possível, então, que em proclamados "santuários", se motivem as pessoas a repetirem infindáveis rosários de jaculatórias, e não a entenderem a gratuidade fundamental da sua relação mística com Deus? A verdade da oração de graças é só uma: seja feita a Tua vontade... Ocorre-me um paralelo ao que disse Osamu Nishitani, um pensador japonês nosso contemporâneo, sobre a filosofia, de que é professor: Digo que o pensamento não salva, porque o pensamento, como a sabedoria, não é remédio para qualquer doença, não é um medicamento... Podemos pensar por motivos pessoais, em busca de uma solução para uma doença, um problema nosso... Mas devo pensar para organizar a relação entre mim e os outros... E pretenderá  -  quiçá porque é essa a ideia que se transmite da nossa religião  -  que a salvação é assunto para a religião.. e a religião não é pensamento... A salvação espiritual, a salvação religiosa, é uma satisfação num meio fechado, num mundo separado, comunitariamente agrupado, mas essa comunidade é restrita. Facultará um certo conforto com a existência, mas, no fundo, funciona como rejeição. Pensar é mais aberto e arriscado. Não é safar as pessoas de sofrimentos ou becos. Antes será levá-las a caminhar de modo diferente, ajudá-las a encontrar um caminho, por vezes perigoso... Atrevo-me, neste exercício tão íntimo de me interpelar sobre a minha fé - e que partilho com quem me lê, porque amigos me incentivaram a fazê-lo - a substituir pensamento por oração, pensar por rezar, e direi então: a oração, como insistência precatória de benesses neste mundo, não salva, porque a oração não é remédio para doenças, não é medicamento. Rezo para encontrar a minha relação com Deus e os outros, porque a salvação não é contentamento pessoal, nem sintonia de grupo restrito e fechado a outras vozes. Em tal não encontro conforto, percebo rejeição. Rezar é uma abertura ao mistério de Deus, para ir buscar o caminho da fé. Por isso pedimos que venha a nós o teu Reino, o amor que esperamos encontrar, e em cujo sinal nos devemos, desde já, reconhecer. Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia, a nós todos, não só a mim... Pois se olhamos para os lírios dos campos, e não há maior nem mais rica beleza do que a que Deus lhes providencia, porque haveremos de procurar tantas razões políticas, sociais, económico-financeiras, para justificar a nossa injustiça, quando nos povos do mundo, em todos eles, incluindo os nossos próximos pobres, não recebem o pão que, dia a dia, o Pai que está nos céus a todos dá? Será de Deus a culpa, a má gestão e distribuição dos bens, ou será nossa? No evangelho, o pão que Jesus manda dar às multidões famintas que O escutam, multiplica-se sempre. Quanto mais se partilha mais rende, quanto mais se deu mais se recebe e há para dar. Será essa a nossa lógica? A chamada Última Ceia, essa que foi a primeira de muitas missas, em que a acção de graças - que é o louvor absolutamente verdadeiro da união de todos com Deus e os outros - acontece nesse sinal sacramental do pão partilhado como comunhão no Corpo de Cristo, factor e função de reconciliação. Por isso mesmo rezamos ainda: perdoa-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E já nos fora feito o desafio de atirar, à mulher adúltera, a primeira pedra se nunca tivéssemos pecado, como nos fora prescrita a obrigação de nos reconciliarmos com irmãos desavindos, antes de levarmos ao altar a nossa oferta. Não quero o sacrifício, quero a misericórdia... E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal. O Mal, essa ânsia obscura de destruição, ou mesmo só de diminuição, que nos habita, é um mistério inicial (e iniciático, infelizmente, em tantas seitas de que ouvimos falar), mas que, nas suas variadas designações de diabo, demónio ,satanás, etc., nos conduz sempre à ideia de divisão, separação, inimizade. Estão as mitologias cheias de deuses ferozes, sedentos de sacrifícios humanos, e até o Antigo Testamento nos fala de um Deus totalitário, ciumento e vingativo. O Mal tem tanta força, que até chegámos - nós, homens de diferentes religiões e culturas - a identificá-lo só com os outros, os diferentes de nós, talvez mesmo nossos inimigos, esquecendo-nos de que, quando assim nos persuadimos de razão, quiçá estejamos a ser, nós também, forças do mal...

    
Camilo Martins de Oliveira