"CREDO"
«Ecce Homo» Nuno Gonçalves
4. MAGNIFICAT ANIMA MEA DOMINUM
No 1º Livro de Samuel, conta-se como a mãe deste assim o chamara porque, sendo ela estéril, Yahvé todavia lho dera. E quando, com seu marido Elqana, ela, Ana de seu nome, consagra a Deus o filho do casal, recita uma oração de acção de graças que começa assim: O meu coração exulta em Yahvé! E a razão dessa alegria é o poder de Deus que inverte a ordem mundana das coisas, tira os fracos do pó, e do fumeiro levanta os pobres, e lhes dá um lugar de honra... Semelhante será o tema do hino de Maria, Mãe de Jesus, que S. Lucas inclui no seu relato da visitação a Sta. Isabel, e cujo primeiro verso serve de título a esta minha confissão: A minha alma exalta o Senhor e o meu espírito estremece de alegria em Deus meu salvador, porque se dignou olhar para a sua humilde serva... Santo é o seu nome, e a sua misericórdia estende-se de idade em idade sobre aqueles que o temem. Exerceu a força do seu braço e dispersou os homens de coração soberbo. Derrubou os potentados dos seus tronos e levantou os humildes. Saciou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias... Tal como Samuel, Isaac, filho que Abraão tem de Sara, e João Baptista, o menino que exulta no ventre de Isabel, quando esta percebe que sua prima Maria, que a visita, espera Jesus, o Salvador, são também filhos de mães estéreis. E o próprio Cristo nasce de uma virgem. E a vontade poderosa de Deus - que assim contraria a ordem conhecida - anuncia por tais sinais uma ordem nova, em que tudo o que consideramos valoroso e superior - o dinheiro, o poder, a glória deste mundo - será substituído pelas coisas humildes que menosprezamos. No evangelho dos sinais messiânicos, o de S. João, a narrativa da paixão de Cristo - conducente à sua morte e ressurreição, que dão todo o sentido ao Credo cristão - começa por nos contar a lavagem dos pés que Jesus faz aos seus discípulos, sinal dessa subversão dos valores do mundo. Sinal bem forte: o próprio Deus se humilha perante os homens, e por aí lhes diz que assim também eles deverão proceder uns para com os outros. Nos evangelhos de Mateus e Lucas, quando as multidões vão crescendo a seguir Jesus, para assistirem e, quiçá, beneficiarem dos seus milagres, Ele ensina-lhes as bem-aventuranças: Felizes os pobres, porque deles é o reino dos céus! Felizes os mansos, porque possuirão a terra, os aflitos, porque serão consolados, os famintos e sedentos de justiça, porque serão saciados, os misericordiosos, porque obterão misericórdia, os corações puros porque verão a Deus, os artesãos da paz porque serão chamados filhos de Deus, os perseguidos por amor da justiça porque deles é o reino dos céus... E se S. Lucas regista, a seguir, a maldição dos que são ricos e poderosos pela ordem deste mundo, logo insiste no apelo ao amor, até dos próprios inimigos... E S. Mateus mostra como os chamados à bem-aventurança devem ser, desde já, o sal da terra, a luz do mundo. Estes textos - o Magnificat e os outros que acima refiro - são outros tantos textos fundadores de uma reflexão mais profunda sobre a minha fé. Já antes disse que quando, perante a existência do mal, sinto angústia e revolta, recuso pensar o absurdo como logos, pois a explicação ou o entendimento não pode esgotar-se na perplexidade; perante o absurdo e a minha incapacidade de o entender, recorro ao Logos, Verbo de Deus, para iniciar um caminho de contemplação do mistério de tudo. Que logo me leva a entender, com S. Tomás de Aquino, que a vida contemplativa consiste numa certa liberdade da alma : "A vida contemplativa, diz S. Gregório, porque não se aplica às coisas temporais, mas às eternas, faz-nos entrar na liberdade do espírito." E também Boécio: "As almas humanas tornam-se necessariamente mais livres quando se põem na contemplação da inteligência divina, do que quando se dispersam pelo mundo corporal"... Assim entrego ao pensamento de Deus aquilo que não entendo ainda, mas sobre isto e a revelação divina, não posso nem devo deixar de me interrogar. Também o Ser Amor - como Deus se revela - me deverá conduzir desde já às tarefas de justiça, bem-querer e paz com que se construirá na terra, nem que apenas ainda como sinal, a substância das coisas que esperamos. E ocorre-me citar Santo Agostinho nas Enarrationes in Psalmos : Dois amores fizeram duas cidades: o amor de Deus cria Jerusalém; o amor do século cria Babilónia. No livro XIV, 28, de A Cidade de Deus, escreve: Dois amores construíram, pois, duas cidades: a da terra, pelo amor de si até ao desprezo de Deus; a do céu, pelo amor de Deus até ao desprezo de si... E dirá mais tarde, quase na hora da morte: Assim, estes vinte e dois livros têm todos por assunto ambas as cidades, mas o título de todos eles vem da melhor delas : por isso lhes chamei A Cidade de Deus... Pessoalmente, sintopenso esta cidade de deus fora do contexto maniqueu, donde muitas vezes parte o Bispo de Hipona. Antes a situo na perspectiva da vocação cristã à procura do Reino de Deus, que pressupõe o entendimento de que a ordem terrena da grandeza, poder e riqueza, tudo aquilo de que nos queremos apropriar - pelo amor de nós até ao desprezo de Deus - deverá ser subvertida pelo amor de Deus que é, necessariamente, amor dos outros, justiça e paz: a fé é a substância das coisas que esperamos. Esta nossa conversão leva-nos à denúncia da injustiça entre os homens, à comunhão no sofrimento dos desvalidos, como a de Cristo na nossa condição. Princípio de vida, que não pode nem deve ser esquecido, muito embora sejam múltiplos os dons e as opções de cada um na busca da caridade, esta sendo , não uma esmola, mas justiça para todos. Assim também, se pensar em revoluções sangrentas ou geradoras de novas injustiças, deverei lembrar-me do que frei Tomás de Aquino escreveu - em texto da Summa que já citei e aqui acrescento: ... a prudência, ou virtude política, é serva da sabedoria, porque lhe prepara o caminho, como um servo ao seu rei... a prudência considera os meios de chegar à felicidade, enquanto que a sabedoria considera o próprio objecto da felicidade, que é o supremo inteligível . Assim, se o conhecimento que a sabedoria dirige para o seu objecto fosse perfeito, a felicidade perfeita consistiria no exercício da sabedoria; mas como o exercício da sabedoria nesta vida é sempre imperfeito relativamente ao seu principal objecto, que é Deus, o acto da sabedoria é uma espécie de esboço ou de participação da felicidade por vir, que, enquanto tal, se aproxima mais da felicidade do que a prudência. Quando atrás fiz referência ao maniqueísmo, lembrava-me da ideia de pecado originalque, vezes demais, serviu para que se generalizasse o equívoco de que, para o cristianismo, o ser humano é inerentemente mau e só um qualquer castigo, sobretudo auto infligido, o libertará do maligno. Costumo dizer que, na recitação do Credo, confesso que creio na remissão dos pecados, e não que o pecado seja fé minha... Quero com isto significar que o amor de Deus - que praticamos na caridade entre os homens - não é, nem pode ser, desprezo ou menosprezo da nossa humanidade, antes pelo contrário: esta tem o valor divino que o Verbo incarnado e ressuscitado lhe trouxe. A minha fé está no evangelho (boa nova!) da alegria. Sejam pois sempre interpretadas a esta luz expressões que contrastem o amor de Deus com o amor humano. Até para não cairmos nas tentações de Nietzsche... Retenho apenas alguns dos seus juízos sobre (ou contra) o cristianismo, que me parecem ter mais relação com o que nesta folha trato. Na sua última obra, Ecce Homo, o filósofo da "morte de Deus" explica assim a acusação que, no seu O Anticristo, ao cristianismo faz de arrogância idealista: até onde for a fabricação de um mundo ideal, se vai retirando à realidade o seu significado, valor e verdade... É nessa diatribe anterior que Nietzsche acusa a religião cristã - tal como ela decorre da apresentação feita pelo clero das diversas igrejas - de promover o horror e ódio de si, e à natureza, seus instintos e pulsões (designadamente sexuais), ameaçando de castigos eternos os pecadores que não se queiram redimir através dos padres ou pastores... Tendo morrido, já louco e confinado à Villa Silberblick, em Weimar, em 1900, ele não terá tido vida e reflexão sobre os movimentos sociais cristãos subsequentes à pregação de Lacordaire e à Rerum Novarum de Leão XIII, nem sei se isso serviria outras ideias de um filósofo que também acusava o cristianismo de destruir o espírito aristocrático que diferencia as pessoas, já que o evangelho dos humildes torna as coisas mais baixas. E que lhe apontava a hipocrisia da mensagem fundadora de Jesus, que chamaria amor à ameaça do escravo contra os poderosos que correm o risco de serem condenados ao fogo do inferno... Pessoalmente, sempre me desgostou a obsessiva insistência eclesiástica no chamado pecado da carne (sexo), e sempre me sentipensei com pouco mérito mas grande alegria na comunhão de uma Igreja, em que tantos fiéis, pela sua acção, testemunham a boa nova anunciada aos pobres, cuja substância são as coisas que esperamos.
Camilo Martins de Oliveira