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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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OLHAR E VER

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Estátua de Maiomonides em Córdova.

 

9. O TRIUNFO DE S. TOMÁS DE AQUINO


Foi tema algo popular na pintura cristã ocidental, sobretudo nas igrejas e conventos dominicanos dos séculos XIV e XV. Representava o autor da Summa Theologiae, abençoado e iluminado por Deus, rodeado e festejado por anjos, papas, bispos, muitos santos e doutores e sábios, da Igreja e de fora dela, até da Grécia Antiga e do mundo islâmico. A Suma de frei Tomás não é aí apenas o resumo de todos os saberes, é a cúpula que os coroa. Sempre gostei de ver, nos grandiosos frescos de Andrea Bonaiuti - que desde o sec. XIV (1365) estão em Santa Maria Novella, em Florença  -   acocorado e apoiado a um livro, de turbante e semblante nobre, pousando a mão esquerda num joelho, segurando com a direita o rosto inteligente e atento, Averroes (1126-1198), sábio árabe e muçulmano. Alegra-me a presença dele ali, não por pensar que S. Tomás também dele triunfou, mas antes por vê-lo participante da festa de um triunfo da razão. Significativamente, o filósofo muçulmano que, no sec. XII, foi com o judeu Maimónidas (1135-1204) um dos mais abrangentes sábios do mundo controlado pelo islão, está no centro do fresco da esquerda, logo abaixo do homenageado. Apontam-se muitas vezes tais representações como sinais da esmagadora superioridade do pensamento tomista, intenção compreensível na cristandade europeia desse tempo. Mas faço questão em realçar aqui o reconhecimento de Averroes, tradutor e comentador de Aristóteles, como predecessor do Doutor Angélico. A Europa medieva sabia reconhecer a contribuição da cultura árabe na herança recebida dos gregos. A expansão árabe, isto é, a afirmação religiosa e política do islão, iniciou-se em territórios já bastante povoados por judeus e cristãos, muitos deles, aliás, árabes, entre os quais se encontravam gentes de cultura helenística, inclusive entre as de língua aramaica e sua derivada siríaca... A cidade egípcia de Alexandria, por exemplo, era a capital cultural do império bizantino. E já citei Ibn Khaldun, que afirmava serem as ciências apanágio dos persas e dos rum, estes sendo os bizantinos herdeiros da cultura greco-romana. Na verdade, as ciências mais cultivadas, logo desde os califados omíada (Damasco) e abássida (Bagdad), eram as matemáticas e a geometria, a astronomia e a física, por um lado, e, por outro, a medicina e a metafísica... O contacto mais estreito com a cultura romana latina, faz-se sobretudo no ocidente muçulmano, a partir de finais do sec. VIII, na Península Ibérica. No oriente, o cultivo das ciências, com traduções e comentários de autores gregos, como Platão, Aristóteles, Hipócrates, Galiano, Euclides ou Ptolomeu, é fomentado por califas e outros mecenas, desenvolvendo-se a investigação científica por árabes e gentes de outras etnias e religiões, submetidas ao poder islâmico. E desde muito cedo, esses tesouros de conhecimento acumulado e acrescido se foram distribuindo também pelos restos do império romano do ocidente, provavelmente entrando pelo sul de Itália e beneficiando da curiosidade e apoio do papado romano, dos mosteiros (onde mais se concentravam os copistas, em tempos já de papel mas ainda sem tipografia...), e dos imperadores carolíngios e alemães, logo desde Pepino o Breve, pai de Carlos Magno. Devemos reconhecer que a conservação e transmissão desse acervo, elo tão importante da cultura cristã europeia com a sua antepassada grega ou clássica, se deve em grande parte ao islão e à sua política científica. Variados fatores se poderão considerar para uma nomenclatura das razões do declínio científico e técnico do islão mediterrânico, quando, precisamente na Europa cristã, a Renascença iniciada ainda no sec.IX, empurrada pelo surto dos centros urbanos, universidades e comércios, sobretudo no sec.XIII, desabrochava nos secs.XV e XVI, conduzindo a um longo período de progresso científico e tecnológico que as grandes descobertas ajudaram a abrir. Observe-se que, com excepção da queda dos reinos islâmicos de Espanha, o islão terá provavelmente constituído, até meados do sec.XVII, maior ameaça para a cristandade, do que o inverso. Aliás, uma das motivações apontadas aos descobrimentos tem sido a necessidade de se contornar o cerco islâmico... Mas, para além do conforto relativo do império otomano, não teria havido um cerceamento da actividade científica e liberdade de pensamento pelo poder religioso e político do islão? Claro que tentativas de semelhante hegemonia se manifestaram na Europa cristã (vg. a Inquisição), mas as comunidades locais  --  como aliás seria historicamente demonstrado pelos movimentos de  reforma eclesial  --  pelas complexas relações de inter-independência em que durante séculos foram vivendo, quase impossivelmente teriam aceite um poder central  --  ainda que teocrático - inibidor. O sentimento inato de liberdade e igualdade dos povos europeus marcou-lhes um caminho diferente. Em 1978, um palestiniano professor na Columbia University de Nova Iorque publicava um livro : Orientalism. Em Março deste ano, um filósofo argelino, Mohammed Taleb, envolvido no movimento renascentista islâmico Nahda, escrevia: Aquele intelectual palestiniano, exilado desde 1948, demonstrava que a vontade de poder do Ocidente relativamente às sociedades do Próximo Oriente, do Magrebe, ou mesmo da Índia, não era só político-militar, mas também cultural. E referindo a "ala sábia" do exército napoleónico que, em 1798, desembarcara no Egipto, acrescenta que ela provocara um cataclismo na consciência árabe muçulmana do século XIX. Essa ocupação representou um verdadeiro choque para os intelectuais islâmicos, que tomaram consciência da sua decadência face à civilização ocidental. É impossível compreender a vida religiosa e social do mundo muçulmano nestes dois últimos séculos, se ocultarmos o carácter traumático dessa experiência... E conta que nasce então uma nova consciência e, com ela, um movimento de ideias e renovação do pensamento e da sociedade: a Nadha ou renascença, a seguir a uma missão de estudo a França, em meados dos anos 1800, que ali permanece cinco anos. No fundo, penso eu, a fazer o que, pelo seu lado, fizeram as missões japonesas, sensivelmente na mesma altura... E devo pensar bem, posto que Egipto e Japão chegarão à mesma conclusão quanto às bases de lançamento da sua Renascença  --  que deverá ser a recuperação de uma soberania perdida: Trata-se menos de modernizar o islão propriamente dito, do que fazê-lo voltar à sua forma original, empreender um duplo combate contra a decadência interna e a dominação externa. Recusar o tradicionalismo socio-religioso, fundado no princípio da imitação. A verdadeira fidelidade aos percursores, aos salaf, reside na reforma e na revolução, assim como na libertação dos quadros apertados...  ...Mohammed Abdu sublinha no seu livro "A Mensagem da Unidade Divina: Em caso de conflito entre a razão e a tradição, é à razão que compete decidir...  ... Mas este reformismo muçulmano será consideravelmente modificado, no primeiro terço do sec.XX, por um discípulo de Abdu, o sírio Rachid Rida...  ...que conheceu, na segunda parte da sua vida, uma inflexão rigorista hostil à razão, sob influência do wahabismo. Desse ponto de vista, Rida pode classificar-se entre os percursores do neo-salafismo islâmico contemporâneo, que foi gerado pela corrente dos Irmãos Muçulmanos... Sabemos que o wahabismo é a ideologia do estado saudita, e que do salafismo se reclama o Daech. Os chamados "integrismos" religiosos, sobretudo pelas suas interpretações "canónicas" da religião e da vida são sempre ossos difíceis de roer. Até na Igreja temos disso... Acabo com as sete interrogações de Mohammed Taleb sobre o futuro do islão: Em que medida será possível reabilitar as dimensões temporais, históricas, culturais e civilizacionais da palavra corânica, ou evitar a redução da Mensagem à sua componente estritamente jurídica? Como articular, no terreno do conhecimento do Corão, as ciências tradicionais e as ciências humanas? Como permitir o surto de uma teologia islâmica da libertação, fundada na alquimia entre justiça social, democracia e vida espiritual? Como promover uma gestão não violenta dos conflitos no seio das sociedades muçulmanas, para evitar a sua degenerescência em guerras civis? Como permitir o desenvolvimento de uma teologia feminista muçulmana, de um feminismo pós-colonial e culturalmente contextualizado?  Como dar uma expressão islâmica à ecologia, a fim de contribuir para o movimento planetário de salvaguarda do meio ambiente? Como promover uma filosofia muçulmana da diversidade cultural, do pluralismo das religiões, na óptica de um enriquecimento mútuo, para ultrapassarmos a lógica do "choque de civilizações”? Mutatis mutandis, também outros, ou todos, poderão assim interrogar-se.


Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Acerca da ambiguidade na linguagem 

‘Language is always more or less vague, so that what we assert is never quite precise.’, Bertrand Russell no Prefácio de ‘Tractatus Logico-Philosophicus’ de Ludwig Wittgenstein.
 

Exprimir simplesmente, implica uma idealização e uma abstracção – associam-se formas a significados. A linguagem é composta por uma série de nomes/formas dependentes entre si que aparecem num determinado contexto. De acordo com Wittgenstein, toda a finalidade da linguagem é ter significado – um significado único, determinado, lógico e preciso. A linguagem é, deste modo, construída e mantém uma relação constante entre a estrutura da forma e a estrutura do facto da realidade. Através teoria do simbolismo, Wittgenstein declara que implicitamente o homem constrói imagens dos factos. E uma imagem é um modelo da realidade e também um facto em si. O que a imagem deve ter em comum com a realidade de modo a representá-la – correcta ou falsamente – é a sua forma.

Mas, na verdade, toda a linguagem é ambígua e vaga, porque um nome ou uma forma não reproduzem a realidade tal como ela é, pois se assim o fosse, não seria um nome ou forma mas a própria realidade. Wittgenstein afirma ainda que a expressão linguística apresenta-se como se fosse uma projecção geométrica. Uma figura geométrica pode ter diversas projecções, e cada uma das projecções corresponde a uma diferente linguagem, mas as propriedades projectivas da figura original mantém-se inalteráveis em qualquer das projecções adoptadas. E a ambiguidade em linguagem intensifica-se assim, com a questão da relação entre a expressão linguística, o conceito formal e a realidade. O que representam, então os nomes/formas, uma intenção, um conceito mental? 


O sentido das coisas. Como interpretamos?

Wittgenstein disse: ‘O sentido das palavras provém daquilo que fazemos e daquilo que somos. Ao buscar o sentido duma palavra, não olhem para dentro de vós. Olhem para a utilização dessa palavra no contexto da vossa vida.’

Uma das propriedades da linguagem está em poder associar mais do que um significado a uma única sequência linguística e só mediante determinado contexto se pode tornar claro qual deles é o significado visado. Ambiguidade existe sempre que a uma forma estão associados dois ou mais significados distintos – ´Não há apenas uma imagem do mundo, há muitos jogos de linguagens diferentes. Diferentes formas de vida e formas de fazer as coisas com as palavras.’, L. Wittgenstein. O número de significados associados a uma dada sequência linguística pode ser muito vasto em consequência da multiplicação de ambiguidades inerentes. Ambiguidade é uma propriedade intrínseca e difere de indeterminação (porque cada frase indeterminada tem um só significado, mas o significado deixa por especificar certas propriedades da situação real – as unidades de significação representam apenas alguns aspectos da realidade, deixando vagos todos os outros aspectos.)

A eliminação da ambiguidade inerente é provavelmente possível com o simples contexto pragmático – dada a situação e dado o conhecimento que se presume que o fruidor tenha. Desambiguar os mecanismos interpretativos passa pela exacta, verdadeira, oportuna, breve e ordenada quantidade de informação fornecida.

‘Tudo o que vejo se torna nas minhas formas e na minha condição.’, De Kooning

A linguagem implica discrepância entre o facto físico e o efeito psíquico, e implica o emprego da ambiguidade para se poderem explorar possibilidades formais. Contradição, paradoxo e ambiguidade são qualidades básicas na construção de uma linguagem – só assim se pode permitir espaço para a interpretação plural acerca da intenção.

O significado intencional tem por finalidade dar conta do êxito duma comunicação entre um emissor e um destinatário. Para que um discurso, dirigido por um emissor a um destinatário, possua um significado não só é necessário que a intenção do emissor seja objecto de reconhecimento por parte do destinatário, mas também que esse reconhecimento seja condição necessária à troca de informação a que o discurso dá lugar.

Sendo assim, a linguagem representa uma realidade – realidade essa que tem uma lógica própria. Através de imagens criadas pelo sujeito (que tentam manter intacta a lógica da realidade) forma-se um discurso. E o discurso não é a realidade em si mas uma realidade própria – aquilo que o emissor escolhe como real no seu discurso e aquilo que o destinatário apreende desse discurso. E assim a linguagem pode ser entendida na sua totalidade quanto mais contextualizada for.

 

Ana Ruepp

OLHAR E VER

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8. RESSENTIMENTO

O projecto do Daech ou Estado Islâmico nem na história recente é propriamente uma novidade: para além de vários estados, monarquias ou repúblicas, que se foram intitulando ou pretendendo islâmicos e que, nalguns casos, até aplicam a charia ou lei islâmica, surgiram outros projectos de estados mais vastos e poderosos, como o da República Árabe Unida (Egipto e Síria), logo Estados Árabes Unidos (Egito, Síria e Yémen), de 1958 a 1961. O Islão mediterrânico sofre a nostalgia dos grandes califados antigos e a humilhação do mundo muçulmano sequente à queda do império otomano e à eliminação do seu califado por Ataturk. Grande parte do islão árabe foi dividida em vários países, de modos diversos sujeitos à ocupação ou interferência de potências europeias. E, ainda por cima, já depois da 2ª Grande Guerra, a que se seguiu a descolonização, uma coligação árabe (Egipto, Jordânia, Síria, Iraque e Líbano) foi derrotada, em 1948, pelo pequeno e nascente Israel... Onde antes reinava o islão - incluindo, até ao século XV, parte da Espanha, e até ao primeiro quartel do XIX a Grécia  - com súbditos e escravos judeus e cristãos, o século XX trouxe outros poderes. E, alimentando desejos de desforra e regresso à passada glória, um ressentimento manifesto ou mal disfarçado... Mas o ressentimento, enquanto motivador de sobressaltos históricos, não é apanágio do Islão nem de qualquer espaço-tempo. Marc Ferro, no seu Le Ressentiment dans l´Histoire, aponta cristãos perseguidos e perseguidores, judeus e heréticos, anti-judaísmo e outras inquisições, raivas a reis, ricos e aristocratas, Vichy e Alemanha nazi, descolonizações e Rússia pós-soviética, eu sei lá de quantos mais casos poderíamos falar, dos Balcãs à Polónia e Ucrânia, de Tamil e Talibã, do Sudão e do Rwanda... O ressentimento é subjectivo e, por isso mesmo, difícil de gerir. Não se negoceia, compreende-se com boa vontade. Não deve ser acicatado, deve ser acolhido como razão de outro coração. É difícil, bem sei, até porque, mesmo no que nada tem a ver connosco, naturalmente tomamos um partido qualquer. Por exemplo: dificilmente aceitamos qualquer razão para uma tomada de posição "islamista", nem sequer nela entenderemos a diferença entre radicalismo e moderação; mas já teremos simpatia pelas guerrilheiras curdas... Com franqueza, não posso dizer que as actuais hordas islâmicas se constituam com saudosistas de impérios revolutos ou de históricas epopeias... Antes me parece que certos discursos cheios de tradição e doutrina procuram alimentar frustrações contemporâneas, inclusive de jovens sem religião alguma e simplesmente inadaptados, descabidos (misfits). Nesses discursos há, certamente, a afirmação sectária de uma religião ou ideologia única e verdadeira ( que os "moderados" não conseguem desmentir), tal como a do seu pertinente direito  à reconquista, com a concomitante aplicação da lei "corânica" acima do estado de direito laico. Daí advirão desilusões e deserções. Nós bem sabemos como, apesar do aparente conforto das nossas sociedades de consumo, tantos jovens nossos se desiludem e partem, e talvez regressem. Mas seremos nós capazes, como corpo humano e político, de lhes dar, a eles e tantos outros em nosso seio abandonados, a justiça solidária que  nos devemos? Por ser tão baixo e primitivo em nós, o ódio é fácil. O ressentimento é um ódio retribuído ou, pior ainda, um sentir-se desprezado, ou menosprezado, que se desforra. Os testemunhos de mulheres curdas, sírias guerrilheiras, que a seguir transcrevo, dizem mais do que eu saberia ou poderia dizer. Respiguei-os de um artigo de Taha Khalil, publicado no jornal árabe libanês Al-Mustaqbal, que encontrei na versão francesa do Courrier International:

  1. Antes de poder pensar em libertar seja o que for, preciso de libertar o meu cérebro do estado em que se afundou por força das nossas tradições e do ensino que recebemos. Preciso de compreender os mecanismos da História e a situação da mulher, para saber o que faço aqui. A nossa guerra situa-se, antes de tudo mais, no campo das ideias. Combatemos as ideias obscurantistas e retrógradas dos membros do Daech , de barba espessa e estranho fácies, que cortam cabeças e nos querem levar de volta ao que de pior conhecemos em termos de repressão e dominação sexista, ideológica e humana...
  2. Íamo-nos aproximando deles, estavam a poucos metros de nós. Ouvíamos as suas vozes. Ficaram coléricos quando compreenderam que enfrentavam mulheres. Diziam aos seus camaradas, pelos "walkie-talkies": «Venham, há aqui pegas!» Para eles, somos pegas. Mas démos-lhes uma lição. Por vezes fogem de nós, assustados, esquecendo os mortos e abandonando os feridos. -  É verdade que há uma "fatwa" que diz que quem for morto por uma mulher não entrará no paraíso? - Seja como for, não irão para o paraíso. Despachamo-los para outro lado. Mas é verdade que essa "fatwa" existe. De acordo com o que nos contam os prisioneiros, eles pensam mesmo que aquele que se deixa matar por uma mulher não tem direito, nem ao paraíso nem às virgens corânicas que lá estão...
  3. Capturei várias vezes guerreiros do Daech. Da última vez, quando trouxe um prisioneiro para o nosso acampamento, ele pediu-me um copo de água. Dei-lho e vi que o pôs à sua frente, para nele mergulhar uma  chave que trazia ao pescoço. Uma daquelas chaves grandes, como as das casas no campo. Mergulhou-a três vezes antes de beber. Pensava que, assim, se tornaria invisível. É trágico batermo-nos contra assaltantes tão idiotas. Quando os faço prisioneiros, esses jiadistas, ao longo do caminho para o nosso acampamento, vão olhando para o chão. Não sei se o fazem por se sentirem humilhados pelo facto de terem sido presos por uma mulher, ou se por pudor religioso. Em ambos os casos, é ridículo. São mesmo ridículos esses homens!

Por mim, só penso que, num mundo de ressentidos, não há gente ridícula. Apenas histórias muito tristes. Em cada desgraçado está a humanidade toda sem graça.


Camilo Martins de Oliveira

ALICE GOMES

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Fogueira de lenha verde”
 

O título deste livro é um paradoxo, um absurdo (…)porque já não sou uma estreante, porque já não sou uma rapariga, fogueira que eu ateasse devia ser de lenha seca.

Alice, Alice Gomes, oh!, os prados imensos das idades, que grandes campos pelos quais devagar chegamos aos bosques. Não é um paradoxo o título deste teu livro: pego-lhe na leitura palpitante. Ora!..., tu sabes como é…

Alice Gomes, foi irmã de Soeiro Pereira Gomes e do matemático Alfredo Pereira Gomes. Dedicadíssima professora do Ensino Primário, abriu-se como escritora, cujas obras dedicou às crianças. Casou-se com o escritor Adolfo Casais Monteiro e ficou Alice como um expoente da nossa Literatura Infantil e só?

Do livro “Fogueira de lenha verde”:

- O que é verdade, minha senhora, é que nem todas as cabeças foram feitas para chapéu. (…) Tinha conseguido o que ambicionava: ser independente, mas sentia a possibilidade de ser feliz. Aquela felicidade que Eduardo lhe tinha oferecido na ternura da sua mocidade, como lhe parecia remota! Aquele passado de há seis meses apenas (…)

(…)DIREITO À VIDA é, sobretudo, uma chamada às mulheres para que organizem a sua vida, de forma a poderem assumir as suas responsabilidades.(…) Não quererão os Leitores e as Leitoras aplicar a sua imaginação, a sua criatividade, e concluir a minha história, como bem lhes parecer?

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Professor diz-me porquê?

 

Professor diz-me porquê?

Por que voa o papagaio
que solto no ar
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?

Professor diz-me porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
E roda gira rodopia
e cai morto no chão...

Tenho nove anos professor
e há tanto mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que não me queres responder!

Tu falas falas professor
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
Fazes-me decorar.

É a luta professor
a luta em vez de amor.

Eu sou uma criança.
Tu és mais alto
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha.

Mas
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes professor
eu fecho-me por dentro
faço uma cara resignada
e finjo
finjo que não penso em nada.

Mas penso.
Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar!...

E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tanta mais definições...
o meu coração
o meu coração que não sei como é feito
nem quero saber
cresce
cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora
professor
a ver se tu assim compreenderias
e me farias
mais belos os dias.

Alice Gomes (1946)


Alice, em estilo dialogante, também tem o dom de contar histórias do real pelo maravilhoso ou pelo sonho, e por elas a poesia e o teatro. Contos Risonhos e

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Bichinho Poeta (1970), livro de poemas, a Lenda das  AmendoeirasNau Catrineta peças teatrais de Alice Gomes, ou  as reflexões que deixou expressas em Aprender sorrindoLiteratura para a Infância, 1979, bem demonstram a justiça do prémio que a Câmara Municipal de Tabuaço criou para o atribuir anualmente.

Alice Gomes, quero dizer-te:

Estendi grinaldas da minha janela à tua e assim realizo todas as lembranças da escrita que sabe como se dá o nó.

 

Teresa Bracinha Vieira

Novembro 2014

O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (IX)

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UMA DRAMATIZAÇÃO DA HISTÓRIA DA REVISTA

Temos recorrido com frequência aos estudos de Luiz Francisco Rebello sobre a história do teatro português, e designadamente, da revista. É pois oportuno evocar aqui uma das últimas peças de Rebello, “Portugal, Anos Quarenta” (1982), pois precisamente concilia, com forte expressão dramática, uma abordagem histórico-politica dos anos 40 em Portugal, pontuada pela evocação e transcrição – isto é, encenação - de diversas revistas da época, conciliando assim drama com comédia, e teatro declamado com revista.

Trata-se de uma abordagem política, a partir dos problemas existenciais e sociais da “família Meneses: Meneses, a Mulher, o Filho e a Filha”, ao longo da década de 40, concretamente “da entrada do novo ano de 1940” ao “Ano Novo, que acaba de entrar nos domínios do Tempo para receber das mãos do Velho Ano o comando de 1949”: e essa cena que abre a 10ª Sequencia (1949) da peça, constitui transcrição literal do “Quadro de abertura da revista Ora Agora Viras Tu” de Carlos Lopes, nesse mesmo ano estreada em Lisboa. E a longa transcrição do quadro inicial da revista contrasta com a expressão dramática do texto de Rebello.

Precisamente, esse contraste constitui, a essência da peça, ao longo das 10 “sequências” correspondentes aos 10 anos de evocação histórico-politica: e a alternativa sequencial é marcada pela citação recorrente de sucessivas revistas que mais acentuam o registo dramático, repita-se, eminentemente e essencialmente contrastante.

E esse contraste cénico e dramático, no sentido mais abrangente do termo, marca a problemática pessoal e política da peça, além de enquadrar uma conjunto importante de situações e cenas revisteiras que conferem uma relevância peculiar no historial do teatro português: e recorde-se as referências bibliográficas que temos feito sobre o teatro de revista, acrescentando agora os diversos volumes de “Parque Mayer” da autoria de Jorge Trigo e Luciano Reis, que assinalam a renovação do género ”sobretudo nos anos do pós-guerra” (ed. 2002-2006).

Importa então referir as revistas de que Rebello transcreve e de que integra cenas, numa alternância dramática com o seu próprio texto:

“Manda Ventarolas”; “Zé Povinho”; “De Fora dos Eixos”; “O Bacalhau a Pataco”; “Há Festa no Coliseu”; “Travessa da Espera”; “Sempre em Pé”; “Se Aquilo que a Gente Sente”; “Ora Agora viras Tu”…

E acrescem transcrições de poemas e outros textos dramáticos em prosa e verso, letras de canções e poemas de autores relevantes como designadamente Adolfo Casais Monteiro, José Gomes Ferreira, Lopes Graça, Reinaldo Ferreira, Júlio Dantas e Lorca, além de diálogos de filmes portugueses e das marchas e de canções populares da época.

Nessa linha, que se integra poderosamente na estrutura da peça, citam-se e transcrevem-se cenas e textos extraídos dos filmes “João Ratão”, “O Pátio das Cantigas”, O Costa do Castelo”, “Capas Negras”, além de citações literais ou dramatizadas de textos de imprensa, conciliando por forma teatralmente muito hábil as citações hoje históricas (já lá vão mais de 60 anos) com a temática de conflito histórico- politico que marcava o país: e nesse aspeto, são recorrentes, ainda, transcrições literais de discursos de dirigentes políticos nacionais e estrangeiros e mais textos e referencias a personalidades da época - Carmona, Salazar, Hitler, Afonso Costa, Pétain, o Duque de Windsor, Otto de Habsburgo, Saint-Exupéry, Carmen Miranda, Marica Rokk,  Sarmento Pimentel, José Rodrigues Migueis, Jaime Cortesão, Eva Perón,  Fernando da Fonseca,  Maria Barroso, Norton de Matos e muitos outros. 

 O próprio Rebello explica a estrutura e a metodologia de construção da peça: “Dramaturgicamente, a técnica de colagem pura e simples seria a solução mais fácil; por isso a rejeitei. Entendi que para o espetáculo cumprir a sua função didática (…) era necessário combinar o documento com a ficção, o testemunho com a memória, a linguagem literal e a linguagem audiovisual com a intertextualidade” (in “Todo o Teatro” INCM 1998; cfr. “O Passado À Minha Frente – Memórias” 2004).

E assim é esta interessante peça, que, independentemente dos conteúdos políticos , representa um belo texto dramático, misto de teatro declamado e de revista – e nesse aspeto, a recuperação de textos de revistas, como de poemas e diálogos de filmes, valoriza, no ponto de vista histórico, a peça em si.

O que é coerente com a notável obra de Luiz Francisco Rebello no âmbito da História do Teatro Português.


DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

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Democracy and its critics, 2014-15

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Há algo de Under the vulcano no ar, inclusive com uma sombria pitada do elemento faustiano. O próprio tempo adquire diferenciados ritmos como no romance de Mr Malcolm Lowry (1947). — Chérie, la varieté plait! A by-election em Rochester and Strood dá nova vitória ao UK Independent Party e o segundo purple MP na House of Commons. Os resultados no Kent espelham a very British revolution on the way. Os Tories descem para a segunda posição e os Liberal Democrats caem para o quinto lugar. Sobem os Greens e o Labour, mas este tropeça num episódio menor que acaba na demissão da Shadow Attorney-General RH Emily Thornberry à boca das urnas. Se a campanha de Mr Mark Reckless no Kent baralha as estratégias partidárias, sobretudo condiciona os big parties em hot themes como a emigração e a Europe. — Hmm! All men are enemies. All animals are comrades. Os USA revivem os dias das lutas raciais dos 60’s e retomam idas marchas pelos direitos humanos. Em Strasbourg, 23 anos após a histórica visita de John Paul II ao beacon of civilization, Pope Francis centra as atenções na pessoa e adverte que a democracia requer defesa de “unseen empires.” O criticismo no European Parliament entusiasma os eurocéticos.

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Cold weather with showers around in a very good morning. A metamorfose na paisagem política doméstica avança mais um passo rumo a um sistema multipartidário em Westminster. Com os conservadores em estado de tensão no No. 10 adjustment bureau e muitos MP’s a temer o desemprego vitalício, a vitória dos ukkipers não se fez sem o habitual humor de Mr Nigel Farage e um coro mediático a desqualificar o voto popular na bela Medway. Daí a insurreição eleitoral se reconduzir a funny Python’s script. Algures entre a Brian’s mother (“Now, you listen here! He's not the Messiah. He's a very naughty boy!”) e o mercador em dia de apedrejamento (“Stones, sir?”) face a Angry mob (“Ooooh!”) e a um incontornável Public Official (“Blasphemy! He said it again!”).

Da substância da democracia descontente e seus by-products informa ainda a intervenção papal no European Parliament, a exigir que se re-leia devagar. O discurso escrito confirma a perceção auditiva do novel euroceticismo de Rome. Fixem-se as palavras do Pope Francis: “The true strength of our democracies – understood as expressions of the political will of the people – must not be allowed to collapse under the pressure of multinational interests which are not universal, which weaken them and turn them into uniform systems of economic power at the service of unseen empires.” O apelo romano ao humanistic spirit da escola de Athens é claro e cristalino é o rigoroso diagnóstico: Europe está “somewhat elderly and haggard,” como a “grandmother, no longer fertile and vibrant’ e até “old, aloof and harmful.”

A requerer reflexão cívica, e consequente ação política, está ainda a emigração e as suas dolorosas facetas. A radicalização dos jovens No-No (no school-no work) é matéria prioritária, envolta que anda num digital ring of Gyges. Depois das questões em torno da cidadania fiscal, o inquérito ao atentado contra o soldado Lee Rigby numa rua de London, em plena luz do dia, coloca as Internet companies debaixo de fogo por disponibilizarem santuários a facebooked terrorists. O escrutínio parlamentar do Intelligence and Security Committee (ISC) sobre a atuação dos serviços conduz também ao reforço orçamental na segurança, sem todavia obscurecer que melhor é expetável do MI5, SIS e GCHQ dentro das malhas da lei.
Além Atlantic, com Southern  Ferguson still in flames, o US President Barack Obama galardoa a unique Mrs Meryl Streep. Desconheço se o reconhecimento do talento contém quaisquer mordomias à custa do erário público ou se o merecido prémio suscita desfavores na Fox & co. Já do lado de cá do oceano muitos convergem na oportunidade de legalizar ilegítimas rendas vitalícias, numa daquelas cenas without honour dissecadas na Nicomachean Ethics por Aristotle. — Well, the best is always few and rare.


St James, 26th November

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

De 24 a 30 de novembro de 2014.

 

«Al-Úliá» é a revista do Arquivo Municipal de Loulé, dirigida por Manuel Pedro Serra, que reaparece, depois de quatro anos de interrupção, (nº 14, 2014) representando um bom exemplo de qualidade científica e cultural, bem como de uma assinalável persistência, digna de muito apreço.

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 UM NÚMERO SUCULENTO
O sumário deste número é bastante suculento e atrai não apenas o leitor comum, mas também o especialista, o historiador, o arqueólogo ou o professor. De facto, o que se pretende é levar o Arquivo Municipal até junto dos interessados e cidadãos, permitindo dar a conhecer a documentação existente ou os elementos históricos e arqueológicos disponíveis, mas, mais do que isso, permitir incentivar os investigadores e os estudiosos no sentido de promover nos diferentes campos do saber o aprofundamento e o desenvolvimento de diversas ciências. Por isso, faz sentido a proposta do dr. Manuel Pedro Serra orientada para uma maior exigência na investigação e nos critérios de aferição da qualidade dos textos publicados, de modo a garantir que os mesmos sejam considerados nos currículos científicos dos seus autores, segundo as regras internacionais de avaliação. Antes de mais, o texto relativo ao tema antigo e misterioso das «estelas» com escrita do Sudoeste presentes em monumentos funerários no concelho de Loulé dá-nos um repositório sobre as diversas interpretações relativas à controversa questão. Por um lado, a chamada escrita do Sudoeste (associada a tartéssios e turdetanos) representa uma referência mediterrânica, na qual as civilizações do Levante se projetaram na Península Ibérica. Por outro, e esse é o ponto essencial do texto, verifica-se que a integração das estelas na construção das sepulturas pode eventualmente ser vista como uma intenção de atribuir aos espaços funerários um valor simbólico relacionado ou diferente do que teriam os referidos elementos no seu contexto original e primário. José Leite de Vasconcelos, Estácio da Veiga, Mário Lyster Franco, Abel Viana são referenciados nas suas investigações, completadas pelas mais modernas descobertas sobre a controvérsia antiga. Um segundo texto refere-se aos assentamentos rurais romanos no Barrocal algarvio, com especial ênfase para os primeiros trabalhos no sítio romano do Espargal. Trata-se de um projeto internacional da maior importância, envolvendo a coordenação da Universidade alemã de Jena, com apoio do município de Loulé. É exemplar hoje este tipo de cooperação, já que permite maiores avanços da investigação, mercê da comparação e da circulação de resultados relevantes. Neste caso, só trabalhos futuros permitirão saber quais as especificidades das unidades agrícolas romanas no interior do Algarve por comparação com a colonização do litoral. O terceiro tema tem uma especial atualidade, uma vez que se refere à escavação arqueológica da «casa das bicas» e dos estabelecimentos balneares do período islâmico – o edifício «Hammam» de Loulé. A referida investigação ocorre no centro de Loulé, no coração da cidade, constituindo um fator essencial para o melhor conhecimento do período anterior à reconquista cristã, sabendo-se que para a cultura muçulmana o ritual da limpeza, corporal e espiritual, é determinante. Mesmo depois da reconquista e do foral concedido por D. Afonso III essa função manter-se-á. Atualmente é já visível parte da sala quente, grande parte da sala temperada e uma pequena parte da sala fria, além das chaminés no interior dos muros…

 

O CÉLEBRE REGUENGO DE QUARTEIRA

O artigo sobre o Morgado do Reguengo da Quinta de Quarteira, desde a Idade Média até ao século XIX, constitui um excelente repositório histórico que permite compreender a evolução de um espaço fundamental que hoje é ocupado pelo empreendimento turístico de Vilamoura. Historicamente, o Reguengo de Quarteira liga-se à evolução do Algarve no contexto da história portuguesa. Não podemos deixar de lembrar a importância que essa propriedade teve no período dos Descobrimentos e no povoamento das ilhas do Atlântico. E, se houve controvérsia entre Vitorino Magalhães Godinho e Armando de Castro sobre a cultura da cana-sacarina, a verdade é que o antigo Morgado teve sempre uma importância significativa. Tratou-se de uma propriedade régia reservada para si por D. Afonso III no citado foral de 1266, que foi sendo objeto de aforamentos ao longo do tempo. Gonçalo Nunes Barreto obterá Quarteira por contrato de escambo com o rei D. João I, sucedendo-lhe os seus herdeiros por várias gerações, até que em final de seiscentos o Morgado ficará na linhagem dos condes de Vale de Reis, depois Duques de Loulé. Em meados do século XVIII, Quarteira é referida como um lugar «povoado de cabanas em que vivem os moradores que quase todos são pescadores que, com as suas artes, pescam abundante sardinha…». Joaquim Romero Magalhães fala de «choças de palha e junco», ocupadas no verão, num porto em que só entravam pequenas embarcações e em que grassava muita malária para os seus moradores. Compreende-se, através deste bosquejo, como se desenvolve a economia algarvia, desde o reinado de D. Afonso III até ao período liberal. Outros textos merecem cuidada atenção, como o respeitante a «Maninhos, baldios e bens do concelho no Algarve Medieval» ou o relativo à «Magia e sociedade no Algarve na quarta década do século XVII». Por irónica coincidência, Lídia Jorge situa o seu «Dia dos Prodígios» em Vila Maninhos e faz da magia o motivo do romance. Se maninho significa lugar inculto e baldio propriedade comunitária, a verdade é que o Algarve é um lugar onde a imaginação se desenvolve, em torno de temas mágicos e prodigiosos. Já Frei João de S. José dizia em 1577, haver «neste reino do Algarve muitas cousas notáveis e maravilhosas e tão particulares dele só, que não se acham em outro algum, assi, na própria natureza da terra como também nos costumes de que usam os moradores dela». O texto dá-nos uma ampla panóplia de situações, bem como de dissuasores sociais, que revelam uma evidente especificidade…


PATRIMÓNIO MATERIAL E IMATERIAL
O caso da Ermida de Nossa Senhora da Conceição de Loulé é um caso especial de qualidade artística que é apontado como exemplo da valorização do património na oferta turística algarvia. Poderá, aliás, associar-se a este pequeno exemplo o caráter inovador da Convenção do Conselho da Europa, assinada em Faro em 27 de outubro de 2005, que relaciona património material e imaterial, criação contemporânea e cultura de paz. Num registo diverso o Prof. Luís Reis Torgal apresenta-nos um documento da propaganda do Estado Novo, o filme de António Lopes Ribeiro (que chegou a ir até Eisenstein – de «O Couraçado Pontemkin» - , para colher ensinamentos) sobre «A morte e a vida do Engenheiro Duarte Pacheco». O ilustre louletano e a obra são apresentados como referências modelares do seu tempo… Os elementos biográficos do Professor Joaquim Magalhães («um algarvio natural do Porto ao serviço da cultura e do próximo»), professor, escritor, divulgador do talento de António Aleixo, homem de cultura e diálogo, dão-nos um paradigma do cidadão e do educador, que tão intensamente marcou a sociedade algarvia do seu tempo. Sobre a atividade tipográfica no concelho de Loulé, poderemos recordar o papel fundamental desempenhado pela imprensa local (merecendo referência especial José Maria da Piedade Barros e a «A Voz de Loulé). Por fim, além da invocação pelo Prof. Melo Sampaio sobre o Instituto Superior D. Afonso III, Maria Aliete Galhoz, grande referência da cultura de Loulé (pessoana da primeira hora e estudiosa das tradições culturais) apresenta-nos um romance de Reis na tradição oral do concelho de Azambuja dispondo do mesmo paradigma de um vilancico produzido na Lisboa seiscentista. Os temas são todos apaixonantes… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

OLHAR E VER

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Vitrais de Chartres

 

7. CONHECER É IR CRESCENDO 

 

No endereço aleqt.com mora o jornal em linha na rede electrónica Al-Eqtisdiah, em língua árabe, publicado pela Saudi Research & Publishing Company, de Riad,  Arábia Saudita. Jornal liberal, tem um acordo com o britânico Financial Times, de que publica notícias e artigos. Corresponde à necessidade crescente de um espaço de opinião e  debate de ideias que faixas importantes da sociedade saudita  - que se cosmopolitizam, após contacto com o mundo exterior, pela educação em universidades europeias ou americanas, ou através de negócios e actividades profissionais, ou, mais simples e generalizadamente, pela frequentação das redes de comunicação eletrónicas  -  vão manifestando... Assim, o regime wahabita, apesar do sectarismo, primitivismo e intolerância da sua ideologia, vai consentindo umas válvulas de escape. Um artigo publicado em 19 de agosto p.p. e assinado por Tawfiq Al -Saif, propõe um passo em frente à consciência moral do Islão, na consideração dos atentados e homicídios que vão sendo perpetrados pelos movimentos terroristas que se reclamam do islamismo. Achei curiosa a referência inicial do autor ao "nosso" Ibn-Khaldun (1323-1406), ao qual aliás voltarei adiante : O pai da sociologia, Ibn-Khaldun, destacou, entre outras coisas, a propensão dos povos vencidos a imitarem a cultura do vencedor. Tal ideia influenciou muitos intelectuais árabes, designadamente islamistas. Assim, o falecido teólogo Taher Al-Khaqani teve sempre posições intransigentes sobre o modo como os muçulmanos deviam conceber as suas relações com as outras nações do mundo. Quando o interroguei sobre isso, explicou-me que procurava por aí evitar que o baixo povo se deixasse influenciar pelos modos de vida dos vencedores... A terminar o seu texto, Tawfiq Al-Saif, volta a uma tese de Ibn-Khaldun  - a do passado prestigioso dos quatro primeiros califados do islão  -  sem todavia estabelecer qualquer referência ao grande pensador do sec. XIV: Transmitimos uma visão seletiva da nossa história, que descreve um passado glorioso, sem lhe expor os aspectos negativos, nem os custos humanos, económicos e morais. São assim muitos os que consideram sagrado esse passado e o procuram ressuscitar seja como for. Isso traduz-se até em vestuário e atitudes de membros de grupos como o Daech (EI). Temos de libertar as nossas sociedades da "angústia identitária", isto é, desse profundo sentimento de ser fraco, marginalizado e destituído face ao resto do mundo, que se teria coligado contra nós, muçulmanos, para nos destruir. Essa "angústia identitária" é um dos principais factores que permitem que os grupos violentos recrutem adeptos e beneficiem de apoios financeiros.  Reencontramos aqui esse complexo sentimento de humilhação, desamparo e desadaptação, que antes várias vezes referimos como factor de instabilidade emocional, social e política. Cabe claramente aos muçulmanos de boa vontade continuar a desmistifica-lo e corrigi-lo. Mas compete ao "ocidente"  encarar o islão com a racionalidade necessária à compreensão dos factos, e dos motivos de atitudes e comportamentos, e com a solicitude indispensável à aproximação e ao diálogo, reconhecendo ainda a sua responsabilidade pelos erros cometidos, designadamente nestes últimos cem anos, no tratamento do espaço islâmico mediterrânico, quer quanto às interferências políticas, como às intervenções bélicas e, de modo insidioso, amoral e interesseiro, na área económica. Teremos de perder o nosso complexo sentimento de superioridade, incluindo a mania de que somos detentores de modelos sociais, económicos e políticos de valor e aplicação universal. Quando, ainda por cima, sabemos cada vez melhor como o falhanço do nosso sistema económico - que até se reflecte na crescente ubiquidade de um poder financeiro politicamente incontrolável - é concomitante a uma desadaptação dos nossos regimes sociais e a uma crise perturbante das nossas democracias... Cumpre-nos, portanto, ter igualmente a coragem de enfrentar os nossos erros e carências de juízo e reforma, tal como o jornalista saudita que entretanto também escreveu : Fui interpelado pelas reações dos ulemas às exacções do Daech contra cristãos e yezidis  no norte do Iraque. A maioria deles não condenou essas exacções enquanto tais, mas disseram que elas prejudicavam a imagem do islão no mundo...  E depois de reconhecer que os textos islâmicos reforçam a propensão dos muçulmanos a suspeitarem dos fiéis de outras religiões e que, em tempos críticos, tal propensão pode tornar-se em agressividade, interroga-se sobre se o que esses mesmos textos contêm de benevolência não será frequentemente esquecido por pregadores mais inclinados a corresponderem ao gosto da cultura pública dominante,e afirma: O que se passa no norte do Iraque revela-nos o perigo desse estado de facto. Por isso devem as nossas elites dizer explicitamente que a suspeição e a hostilidade para com não - muçulmanos são condenáveis em si. O problema não está no atentado à imagem do islão. É imperativo condenar esses crimes enquanto tais. A parte VI do livro I do Muqaddima de Ibn-Khaldun trata de As diversas espécies de ciências, métodos de ensino, e estados que os afectam e começa por um preâmbulo, assim : «Sobre o pensamento humano, que distingue o homem dos animais, o guia para a aquisição dos seus meios de subsistência e para a colaboração com os seus semelhantes com vista àquela, assim como para a consideração dAquele que ele adora e das mensagens transmitidas pelos Seus enviados. Deus submeteu ao homem todos os animais e colocou-os sob o seu poder. Deu-lhe, graças ao pensamento, a superioridade sobre muitas das suas criaturas». E escreverá adiante, em título de capítulo, que o mundo das coisas criadas se cumpre a partir da acção, graças ao pensamento. A cosmologia do pensador mouro, tal como o seu antropocentrismo e confiança na racionalidade, não é diferente da dos cristãos do seu tempo, a ponto de, ao ler o capítulo acima titulado, me lembrei do que, em crónicas publicadas no blogue do CNC, pelo Natal de 2012, chamei O Presépio Cósmico de Tiago Voragino. Tratava-se aí da visão do mundo cristocêntrico que o dominicano arcebispo de Génova revela na sua Legenda Aurea, escrita no século XIII. Tampouco será estranha à inteligência cristã do seu tempo, a nomenclatura das ciências racionais apresentada no Muqaddima : aquelas são naturais ao homem enquanto dotado de pensamento. Não são apanágio de uma religião particular. Pelo contrário, são estudadas pelos adeptos de todas as religiões, os quais são igualmente aptos a aprendê-las e a empreender investigações sobre elas. Existem na espécie humana desde que a civilização surgiu no mundo. Chamam-se «ciências da filosofia e da sageza». São quatro. E enumera-as : a lógica, que ensina o método e o rigor do pensamento; a física, que estuda as coisas sensoriais, minerais, vegetais, animais e corpos celestes, os movimentos naturais e o que os anima; a metafísica, que investiga as essências espirituais, o que está para além da natureza apreensível pelos sentidos; as matemáticas, que estudam as grandezas e se dividem em geometria, aritmética, música e astronomia. Se, em vez de contarmos as matemáticas no seu conjunto, enumerarmos apenas estas quatro mais as três anteriores, chegaremos a sete ciências, número perfeito. De todos os povos cuja história conhecemos, os que mais cultivaram estas ciências foram as duas grandes nações pré-islâmicas dos Persas e dos Rum (Rum são os bizantinos, herdeiros da cultura greco-romana). Segundo as informações que nos chegaram, as ciências eram por elas muito honradas, porque eram civilizações florescentes, e eram elas que governavam o mundo dantes e até ao advento do islão... Esta referência ao advento do Islão tem peso maior do que poderíamos julgar : na verdade, o advento do Islão, nesse pensamento, vai dividir a história entre antes e depois, e vai retirar à tradição da civilização e cultura islâmicas qualquer desempenho das funções próprias à natureza racional do ser humano como factor de interpelação do tempo e do modo e, consequentemente, motivador de progresso. À categoria das ciências naturais aos homens enquanto seres racionais, e independentemente das religiões que pratiquem, junta-se a categoria das «ciências tradicionais positivas». Estas apoiam-se todas sobre informação proveniente de uma instituição religiosa (o Corão e a Suna, próprios ao islão, e que o separam das outras religiões e modos de pensamento). A razão, aí, só intervém para religar as questões derivadas aos princípios. Com efeito, as coisas particulares que sucessivamente vão acontecendo não fazem integralmente parte da tradição desde a instituição desta. Devem ser-lhe ligadas por raciocínio analógico. Todavia, esse raciocínio fundamenta-se numa informação segundo a qual o juízo é estabelecido na origem. Isso depende da tradição. O raciocínio analógico pertence pois à tradição, porque deriva dela... Faço observar que esta ideia de tradição também tem sido acolhida por meios mais "conservadores" das igrejas cristãs, incluindo a católica, na qual, todavia, outro conceito de tradição tem facultado a evolução do pensamento teológico e o diálogo com as ciências racionais, ou seja, integrado o progresso. Na verdade, a tradição não é só o que herdámos, nem substancialmente tudo aquilo que se pretenda dar por rigorosa e definitivamente estabelecido, chamando-lhe, por exemplo, "doutrina da Igreja". A tradição é todo o processo de revelação, o crescimento contínuo do conhecimento que se transmite para continuar a busca da perfeição. Será o ancião mais sábio e prudente do que o jovem, mas a velhice de cada um não deve determinar a aceitação passiva do envelhecimento da humanidade. Já Prisciano dizia Quanto sunt juniores tanto sunt perspicaciores! , quanto mais jovens mais perspicazes. E é a confiança na razão humana  -  a que frei Tomás de Aquino não temia entregar a reflexão sobre a fé  -  que tem permitido a contemporaneidade da interpelação da fé cristã. João de Salisbúria (1115-1180) fala, no seu Metalogicon, de um seu contemporâneo: Bernardo de Chartres dizia que somos como anões às cavalitas de gigantes, pois podemos ver mais coisas do que eles e a maior distância, não graças à acuidade do nosso próprio olhar nem à estatura dos nossos corpos, mas porque somos erguidos e mantidos em altitude pela grandeza dos gigantes... A tradição é, assim, uma pirâmide humana, em que o conhecimento cresce em novidade e abrangência.    


Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Raoul De Keyser e a pintura gestual do lugar concreto.

 

‘Monochromes are not really monochromes they always relate to something.’, Raoul De Keyser, 2012

'Pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.', Clarice Lispector In 'A Hora da Estrela' (1977)

Raoul De Keyser (1930-2012) apresenta nas suas pinturas a visão de um mundo concreto. Segundo uma perspectiva muito individual, evidencia no seu trabalho o lugar específico que o homem ocupa, num determinado momento e num determinado local. Estabelece uma ligação ao passado (através de referências directas à história de arte abstracta e através de referências directas a trabalhos já por si feitos), ao futuro (no sentido de fazer evoluir uma linguagem que cria através da sua circunstância específica) e passando pelo presente (determinante para situar as suas pinturas no espaço e no tempo concreto).
O que rodeia De Keyser estende-se para o que pinta, criando assim uma continuidade espacial. Existe também a ideia de uma continuidade histórica, porque algumas das suas pinturas trazem à memória composições da tradição abstracta - através do uso da cor pura e através da linha e do espaço que têm uma ligação emocional. De Keyser anseia por materializar uma interpenetração entre o interior (visão própria e individual) e o exterior (a árvore, o canto da sala, a maçaneta, o campo de futebol da sua rua, o corredor escuro, as portas e as escadas). Permanece sempre a preocupação de enfatizar o lugar que o sujeito ocupa. Localizar o sujeito que concebe é muito importante – situá-lo no presente, integrando o passado e olhando para o futuro. Durante anos, De Keyser pintou exaustivamente as linhas brancas do campo de futebol que via da sua janela – tentando criar um diálogo entre o vizinho que pintava na relva e ele próprio que transportava para a tela o mesmo gesto.

A questão da realidade concreta é uma questão que se põe com grande afinco. Tornar visível o que é invisível a todos de maneira não óbvia, ainda que eternamente circunstancial. A escala das suas pinturas é humana e íntima – os quadros de De Keyser são aproximações (do pintor à sua circunstância, do fruidor ao universo particular do pintor).

‘Quero acrescentar, que vivemos exclusivamente no presente.’, Clarice Lispector (1977)


Para conseguir transgredir os seus próprios limites, De Keyser pinta sobre uma realidade, já que essa o ultrapassa. De modo a tornar nítido o que está quase apagado à vista de todos, só De Keyser é testemunha da sua realidade – só ele vê o que está para dentro e para fora da sua janela. Procura assim por uma verdade – porque a sua pintura é corpórea e revela a verdade do seu tempo. De Keyser desenvolve uma obra autónoma, para a qual não existe um programa prévio. As suas composições evocam a efemeridade impressiva do mundo – do seu mundo, à volta de sua casa. O presente real que o rodeia penetra nos seus quadros.

‘Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.’, Clarice Lispector, 1977

A simplicidade do trabalho de De Keyser adquire-se através de muita experimentação (visível nas telas riscadas e raspadas). A acção que se cristaliza nas suas pinturas talvez resulte de uma materialização do sujeito no seu objecto – tão imensa é a necessidade de possuir a realidade que o rodeia e na qual se integra diariamente. E a tela é o lugar dessa fusão entre si próprio e a realidade concreta que lhe está próxima, todos os dias, ali… A verdade da sua pintura igualmente implica um contacto com o interior e o inexplicável – o gesto, a marca e a intensidade do traço do pincel são muito importantes para a afirmação da sua pintura. E por isso, dá-se uma união entre o indivíduo e o objecto e a sua percepção e a realidade. Pintar para ser mais do que se é, numa tentativa de possuir, fundir, completar e descobrir. Pintar para suportar, possuir e eternizar uma rotina concreta.

'Paintings are not very planed before. I let the circumstances speak.’, Raoul De Keyser, 2012

O carácter aleatório das suas pinturas é muito concreto. No resultado final das suas obras, o que é importante é a impressão do transitório, do provisório, do circunstancial e a impressão de um processo, o processo de pintar. Nas pinturas de De Keyser a correcção e o erro são muitas vezes visíveis como meio para questionar a própria pintura. Deste modo, De Keyser assegura-se do fundamento da sua pintura através do seu suporte físico – visível também por exemplo ao pintar as lombadas dobradas da tela, ao engradar de novo uma tela já pintada numa grade um pouco maior de modo a que a madeira da grade surja ou criando pinturas em fatias tridimensionais.

Sendo assim, a pintura de De Keyser incorpora uma reflexão profunda e o gesto intuitivo. E é um exercício espontâneo de acesso ao espírito do lugar do sujeito. O mundo pintado de De Keyser aparece fluído e evidencia o essencial da condição do sujeito. De Keyser consegue então pertencer ao seu tempo e ao seu lugar e apesar de diverso formalmente, apresenta uma obra de grande estabilidade e que garante uma continuidade entre o passado, o presente e o futuro.

 

Ana Ruepp

OLHAR E VER

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6. O LUGAR DA HISTÓRIA 

 

No seu notável ensaio «Ibn-Khaldun au prisme de l´Occident», o professor Krzysztof Pomian insiste em que, para aquele pensador andaluz, «o mundo não varia. No seu tempo estacionário se desenrola o tempo dos homens. E este é descontínuo. Com efeito, tudo o que os Antigos produziram foi anulado pelo islão, que assim é tido por um começo absoluto, quer da verdadeira fé, quer da organização política, das letras e das artes...  ... Em todos os domínios o islão se basta a si próprio. A atitude de Ibn-Khaldun face ao passado pré-islâmico contrasta com a que os Latinos adoptam face ao passado pré-cristão... ... Mais ainda, o advento do cristianismo não traz o repúdio das obras literárias, históricas ou filosóficas impregnadas de crenças pagãs. Na cultura das elites letradas da cristandade latina, um polo escriturário e patrístico coexiste com um polo antigo, um polo puramente cristão com um polo pagão. Isso provoca tensões e coloca os indivíduos perante opções que, por vezes dolorosamente, vivem. Também provoca conflitos entre os que querem manter essa bipolaridade e os que preconizam o abandono da tradição literária pagã. Mas estes nunca tiveram ganho de causa». O surto renascentista iniciado nos séculos XIII-XIV iria colocar a Europa cristã na senda do uso da razão, que desabrocharia no Iluminismo. Teria sido possível, em país de mouros, o paganismo simbólico que, por exemplo, serve Os  Lusíadas ? Para o cristianismo, a história do mundo gira à volta de Cristo, o alpha e ómega está no centro da história. O Verbo iniciador fez-se carne, entrou na vida terrena e na história dos homens, não já para a iniciar mas para a redimir e levá-la ao seu fim, que é a eternidade com Deus. Ao tempo da permanência da Igreja neste mundo se chamou aevum, a longa duração do que, estando ainda no tempo, afinal é fora dele. Assim, ontologicamente, a Igreja não tem passado, presente e futuro: como Cristo ela abraça o que, na história, antes foi, hoje vemos, e está por vir. Mas na duração do aevum, sua idade temporal, esse abraço chama-se tradição. No seu grandioso estudo «La tradition et les traditions», publicado em 1960, pouco antes do Concílio Vaticano II, o dominicano frei Yves Congar, depois de referir a tradição oral que precedeu o registo escrito da Bíblia hebraica  - é claro que as disposições da lei mosaica regularam a vida de Israel, e os salmos exprimiram a sua oração, muito antes de terem sido transcritos  -  escreve: Nascidos na tradição, ou mesmo da tradição, os escritos bíblicos surgem-nos transportados por uma realidade religiosa viva, que os precedeu, a saber, na sua totalidade, ou nas partes mais puras e representativas dessa totalidade, a comunidade do Povo de Deus. Foi esse também o caso do Novo Testamento. E recorrerá, mais adiante, ao jesuíta Karl Rahner que propôs vermos o facto da inspiração escriturária no quadro da eclesiologia ou, pelo menos, da história da Salvação, isto é, da acção pela qual o Espírito Santo constrói o povo de Deus : a inspiração escriturária corresponde ao momento em que Deus cria a Igreja quanto ao seu elemento constitutivo de conhecimento... E, noutro passo, realçará que S. João Damasceno, ao falar da Igreja no seu A Fonte do Conhecimento, a vincula à tradição : Aquele que não acredita em conformidade com a tradição da Igreja católica não tem fé... ...Não reconheço aos decretos imperiais o direito de regular a Igreja. A Igreja tem a sua lei nas tradições dos Padres, escritas e não escritas... O mesmo S. João de Damasco, em defesa do culto das imagens, e contra os iconoclastas, cita o seguinte texto de S. Basílio: Entre as "doutrinas"  e as "definições"  que a Igreja guarda, temos umas pelo ensinamento escrito, outras foram recolhidas, transmitidas secretamente, da tradição apostólica. Todas têm a mesma força aos olhos da piedade, assim concordará quem tiver, ainda que pouca, experiência das instituições eclesiásticas : pois, se tentássemos afastar os costumes não escritos por não terem grande força, atingiríamos, sem querer, o Evangelho, em pontos essenciais... O damasceno dá, como exemplo de tais tradições, o culto das imagens, a adoração da Santa Cruz, a instituição dos sacramentos, a oração feita em direcção do Oriente... Personagem histórica invulgar, João de Damasco, nessa cidade síria nascido por volta de 650, ainda sob império bizantino, numa família cristã, de apelido Mansur, seria, portanto, um cristão sírio-palestiniano. Seu pai exerceu funções importantes na administração financeira do Estado, primeiro sob o imperador cristão de Constantinopla, mais tarde sob o califa omíada Yazif I que, aliás, fora educado, juntamente com João, por um monge italiano capturado na Sicília. E o nosso damasceno será chefe dos serviços fiscais do califa até ao afastamento dos cristãos de qualquer função administrativa. Retira-se então para um mosteiro em Jerusalém, onde se dedicará à oração e à escrita de uma obra teológica, apologética, litúrgica e musical que, no futuro, não será só considerada na Igreja ortodoxa grega, mas ainda pela Igreja católica romana, até à sua proclamação como Doutor da Igreja pelo papa Leão XIII em 1890. O nome deste cristão árabe foi, durante a sua longa vida (terá morrido em 749, com quase cem anos!) Yuhannâ bin Mansur bin Sarjun, e os seus textos apologéticos (em defesa do cristianismo) e polémicos (contestando o islão, que ele classifica como heresia do cristianismo) não só serviram de conforto à fé cristã das populações que o califado omíada (cuja duração, no oriente, coincide sensivelmente com o tempo de vida do Damasceno) havia submetido após vitória sobre o império bizantino, como também estabeleceram circuitos de discussão e confrontação com religiosos e pensadores muçulmanos, ao ponto de se considerar S. João de Damasco como um dos fundadores da teologia islâmica. Recorde-se ainda que a designação de islão (abandono ou submissão a Deus) se aplicará à religião de Maomé e à comunidade dos seus fiéis precisamente a partir do califado omíada. Mas a obra deste Doutor da Igreja debruçou-se muito mais sobre a iconoclastia vigente por decreto imperial, quer no império omíada (por Yazid II, em 723, proibindo o culto das imagens por qualquer religião), quer no bizantino (pelo imperador Leão III, em 730, interdição que duraria até 11 de Março de 843, quando um sínodo de bispos restaurou esse culto tão popular e importante na tradição cristã oriental). A iconoclastia em Bizâncio ter-se-á afirmado por influências monofisitas e judias, bem como islâmicas : não esqueçamos que o imperador Leão III era natural de Síria ; nem que era muito permeável, à circulação de ideias e transmissão de comportamentos, a fronteira algo vagabunda que separava a Anatólia e a Arménia cristãs da Síria recentemente conquistada pelos omíadas. Em pleno território islâmico, João Damasceno, em nome da tradição, defenderá que a veneração das imagens de Cristo, da Virgem e dos santos não é um acto idolátrico, ou seja, de adoração de uma figura material, mas uma relação com o invisível através de uma imagem visível. Li recentemente na Der Spiegel um artigo de Navid Kermani, escritor alemão de origem iraniana, sobre a iraquiana Nadjaf, cidade santa, que muitos consideram o Vaticano do chiísmo. No centro dela se situa um extensíssimo cemitério, em que milhões de sepulturas se juntaram ao mausoléu do imã  Ali, o quarto califa, primo direito do Profeta e marido de sua filha Fátima,  que foi assassinado ali perto, em Kufa, a capital que precedeu Damasco. Esta impõe-se com a conquista omíada, e a dinastia que acedeu ao poder depois de ter eliminado o califa Hassan, filho de Ali e neto de Maomé. Aí começa, com a derrota do partido legitimista, a tradição chiíta, oposta ao sunismo maioritário. Indo ao texto de Navid Kermani: O "partido" de Ali  -  tradução literal da palavra shi´a  -  é uma religião de lamentação e de penitência; até muito tarde no sec. XX, ela foi uma religião de interioridade e retiro do mundo. Os seus doze imãs, sucessores directos de Maomé, foram todos assassinados de modo cruel, pérfido, ignominioso  --  não por infiéis, mas por muçulmanos. Para os chiítas, esta traição à família e à mensagem do Profeta continua a repetir-se ao longo de mil e quatrocentos anos. O domínio dos sunitas, sob o qual sofreram durante séculos no Iraque, as centenas de milhares de chitas  -  dos quais 9000 religiosos  -  que o ditador Saddam Hussein fez assassinar a partir de 1991, o avanço das ideias wahabitas (ideologia sunita ultraconservadora, predominante na Arábia Saudta) no conjunto do mundo islâmico, e agora as acções do EI: cada nova ameaça se inscreve nesse esquema da traição interna. «Receia pelo mausoléu?», perguntei a um guarda, senhor idoso, de cabeça rapada e fato amarrotado, a seguir à oração de 6ª feira. Respondeu com firmeza: «Não! o EI nunca avançará até tão longe em território chiíta». O artigo de Navid Kemani encerra com o relato da sua entrevista, em Nadjaf, com o grande aiatola Al-Sistani e um dos seus filhos, Mohammed Reza Al-Sistani. Referem-se estes  à Alemanha, perguntam pelo modo como ultrapassou o seu passado e interrogam sobre as relações do Estado com a Igreja. Elogiam a criação de cátedras de estudos islâmicos nas universidades, como modo de evitar surtos de extremismos... E vale a pena encerrar esta crónica com a transcrição de passos dos últimos parágrafos daquele artigo: «Mohammed Reza interroga-me sobre outras entrevistas que fiz anteriormente. Confidencio-lhe que todos procuram atribuir a responsabilidade dos azares aos outros, sobretudo ao ocidente. Ele responde-me que isso não passa de um pretexto, as causas reais sendo a ausência de sentido do interesse geral, a corrupção, a anarquia, a ausência de liberdade e o egoísmo que reinam na maioria dos países islâmicos. Porque é que uma jovem mulher como a matemática Maryam Mirzakhani, que obteve o prémio Fields, não teve no Irão a possibilidade de pôr o seu génio ao serviço da sociedade? «Na verdade, os alicerces da nossa sociedade estão tramados». Mohammed Reza Al-Sistani tece louvores à União Europeia, que transformou povos inimigos em amigos. No mundo islâmico, os pequenos países do Golfo, que partilham a mesma língua, a mesma cultura, a mesma religião, nem sequer conseguem formar um mercado comum. E como se essas divisões não bastassem, ei-los a querer ainda dividir os Estados existentes por etnias e confissões. Interrogo também o grande aiatola sobre a expulsão dos cristãos do Iraque. Trata-se, para ele, de uma catástrofe de alcance histórico. « No plano teológico», acrescenta  --  referindo-se provavelmente às imagens, às procissões, ao culto de Maria, às orações de intercessão e à ideia de redenção da Igreja Católica, que o chiísmo também conhece  --  « o chiísmo está próximo do cristianismo»...». A mim, pessoalmente, foi-me ensinando a vida que dividi pelos continentes da terra que os seres humanos se podem descobrir muito mais próximos do que tantas vezes julgam. Ser humano diz bem o que é a nossa condição, e nada daquilo que é humano pode ou deve ser-nos estranho. A glória de Deus são os homens de boa vontade. 

 

Camilo Martins de Oliveira

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