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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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"OLHAR E VER"

Le Secret de lEspadon.JPG

1. A INSTABILIDADE DO MUNDO

Vamos recebendo - pelo correio electrónico, pela rádio e televisão, por jornais e revistas, ou simplesmente em conversas de café ou de salão - clamores e ecos crescentes de um sentimento a generalizar-se: este mundo em que vivemos, designadamente a civilização ocidental, está sob a ameaça terrorista e potencialmente aniquiladora do Islão... Susto tanto maior quanto os terríveis muçulmanos não vivem apenas na margem sul do Mediterrâneo, mas um pouco por todo esse mundo, e até encontramos inúmeras e grandes comunidades islâmicas insidiosamente instaladas em importantes nações ocidentais e cristãs, como os EUA, o Reino Unido, a Alemanha ou a França. O nosso imaginário, passou do medo e aversão ao império soviético, à islamofobia, insistentemente representada de modo quase tão fantástico como o do antigo perigo amarelo... (Parece-me, aliás, curioso observar que a primeira aventura de Blake e Mortimer, heróis britânicos criados pelo belga Edgar P. Jacobs, publicada em 1946 e intitulada Le Secret de l´Espadon - e que versava, precisamente, esse tema do perigo amarelo, oculto e logo agressor - terá, com assinatura de Sante e Julliard, uma história que irá antecedê-la : Le Bâton de Plutarque, a publicar neste final de 2014, e que começa pela execução de dois alpinistas britânicos no Himalaia, surpreendidos por forças de uma esconsa potência terrorista...) Ora, o medo é mau conselheiro, basta pensar nos animais que se tornam defensivamente mais agressivos quando percebem que os receamos. E, ainda menino e moço, aprendi nas aulas de moral e religião que a prudência e a caridade nos ensinam a não fazer juízos temerários. Estes resultam, em regra, da extensão ou generalização a um grupo mais alargado de pessoas, ou a diversas categorias seja do que for, de apreciações feitas sobre outro, mesmo que eventualmente análogo ou próximo. Ou pode o processo ser dedutivo, isto é, julgarmos alguém só pela sua pertença a uma classe, uma corrente de opinião, uma religião, etc. Quando o papa Francisco - espírito ecuménico e compassivo - alerta para a iminência de uma guerra mundial, não creio que se refira exclusivamente ao autoproclamado Estado Islâmico, nem tão só à ameaça de uma djiad , palavra que  aliás não tem na espiritualidade muçulmana o sentido restrito e bélico de guerra santa, que exaltados extremistas lhe atribuem e nós vamos aceitando. O Papa sabe bem que vivemos presentemente num mundo desorganizado e muito instável, resultante de erros e pecados múltiplos, os quais humani sunt... A história da humanidade não é linear - no sentido de aperfeiçoamento crescente e sem retrocessos - antes sempre tem sido marcada por convulsões, tempestades e bonanças... Diferenças, discórdias, fricções, oposições e conflitos têm-se verificado, por razões sem fim e até por nenhuma, nos vários escalões e modos da grande sociedade humana : famílias, tribos, na ordem nacional e internacional, na esfera religiosa, e, dos grandes impérios antigos à União Europeia, da Pax Romana à Guerra Fria, alternaram períodos de divisão e desordem com tempos  de paz ou de autoritarismo e hegemonia. Nem todas as guerras, civis, internacionais ou religiosas, se pareceram, nem tampouco os variados modelos de organização da ordem interna ou internacional. No tempo hodierno, com o progresso das transmissões a semear ubiquidade, deparamos com um fenómeno a que chamam globalização, para a qual não estamos ainda preparados, e muito menos organizados. Curioso exemplo do que afirmo: creio que faz sentido falar-se em terceira guerra mundial, não porque o mesmo conflito bélico envolva conjuntamente a maioria ou sequer um número elevadíssimo de nações, mas porque, mesmo no refúgio dos descansados, a toda a hora temos notícia dos inúmeros conflitos, actuais e latentes, que hoje vão cobrindo o nosso mundo. Os motivos desses múltiplos afrontamentos bélicos são sempre  - ainda que não só  -  de ordem económica. Esta surge em todos, mesmo nas ainda dormentes disputas sobre ilhas, rochedos e zonas marítimas que, no extremo asiático opõem Rússia, China, Japão, Coreia do Sul, Filipinas e outros países do sudeste, ou nas guerras intestinas da Colômbia, como ainda no médio oriente islâmico (Síria, Iraque, Líbia), no africano Sudão ou na própria Ucrânia. Podem revestir-se de justificações ou exaltações religiosas, como se verifica no norte de África, no médio oriente, em países subsaarianos ou na península hindustânica. Todos têm representações e fundamentações de ordem política, e aqui quero lembrar também o aparecimento mais claro de movimentos separatistas, relativamente pacíficos, como na Escócia, na Catalunha, no País Basco, na Flandres, na Lombardia... Todos estes problemas devem ser equacionados por uma perspectiva política, económica e religiosa, quer na ordem nacional ,como regional e internacional.

Começando, ainda que brevemente, pelas religiões, creio que tem sido - muitas vezes, em Portugal, p. ex., não por culpa só do José Saramago, mas também  de "autoridades" ou cronistas católicos - atribuída às religiões a culpa ou motivação de guerras... Não sei quem terá mais responsabilidade por tal teoria : se, p. ex., o Saramago que, enquanto marxista que era, talvez pudesse perceber consigo até que ponto a religião será mais um epifenómeno do que um motor da história ; ou se os outros, sempre dispostos a apontar o dedo à religião dos "infiéis"... esquecendo-se de que a sua própria foi invocada para pregação de cruzadas contra árabes, em que os tais guerreiros de Cristo dizimaram, afinal, mais irmãos cristãos da Igreja oriental, nos Balcãs e mesmo em Constantinopla. Para não falar do cisma de Avignon, que, na Península Ibérica, em nome de duas cristandades e dois papas, deu cobertura religiosa aos inimigos castelhanos e portugueses, nem na rivalidade de Carlos V e Francisco I e nas guerras de protestantes com católicos que terminaram com o acordo de princípio ejus religio cujus regio. Não penso, não quero pensar  -  como já alhures tenho proclamado  -  que qualquer religião possa, de por si, ser causa de luta contra outros homens, pois que a jihad do judeu ou do cristão, submissos à vontade de Deus, como o muçulmano, é o combate pela misericórdia. O problema reside no aproveitamento que os poderes temporais, inclusive aqueles em que tantas instituições "religiosas" se confundem, vão buscar o deus que julgam pertencer-lhes, para o atirar contra os outros, seja a título de agressão ou de vitimização. Compreendo bem o desgosto de milhões de muçulmanos quando se insiste para que, depois de já o terem feito, condenem interminavelmente os actos terroristas que se reclamam do islamismo, como se eles nisso tivessem mais culpa do que nós... Esquecemo-nos, vezes demais, quanto da tolerância cristã actual - de que muitas organizações, até católicas, são adversárias - deve ao Iluminismo, por nos ter feito repensar a nossa fé. O diálogo inter-religioso que os papas com mais experiência pastoral mais motivaram (João Paulo II e Francisco) é um encontro fraterno  que deve ser acarinhado por todos e promovido. As questões económicas são necessariamente sociais e, portanto, políticas. Claro que a economia pode ser entendida apenas ou sobretudo como técnica, isto é, como a procura dos métodos mais eficazes para produção de mais riqueza, e, enquanto tal, existir até numa ilha deserta, como Robinson Crusoë. Mas enquanto teimarmos em reduzir o objectivo do pensamento e da actividade económica à eficácia óptima da criação de riqueza, antepondo-a à justiça da solidariedade social, estaremos a gerar condições para que muitos se sintam afastados da comida que está na mesa devida a todos. Do "taylorismo" e "stakanovismo" a todas as outras teorias e práticas de maior produtividade, fomos fazendo adeptos e desenganados : a acumulação do capital contra a melhoria da remuneração do trabalho, ou da riqueza de poucos sobre a pobreza de muitos, no falhanço da distribuição social dos bens por todos produzidos  -  e por cada um em função dos seus próprios dons e maiores ou menores aptidões  -  têm levado a sentimentos de injustiça sofrida que os teóricos do capitalismo liberal teimam em não perceber. Imaginem um exemplo, como parábola : Bubacar é muçulmano da etnia fula, natural da Guiné, seu pai serviu lealmente a causa portuguesa ;  vive em Bafatá, no seio de uma comunidade solidária e amiga, respeita os ensinamentos de Maomé e as práticas religiosas do islão; é letrado, capaz, a situação do seu país  - que os portugueses cegamente abandonaram - empurra-o a buscar melhor destino na Europa. Corre os riscos da migração, enfrenta a incerteza, não arranja trabalho adequado em Portugal, parte para França, tem o azar de se sentir ostracizado por ser africano e muçulmano, o emprego que lhe dão é penoso e mal pago. Se desesperar, será presa fácil das promessas de vindicta de qualquer bando terrorista... Mas para que tal se verifique, ele nem tem de ser africano, nem muçulmano: investigações conduzidas por forças de segurança especializadas já descobriram que numerosos "jidaístas" são jovens que não provêm do mundo islâmico, mas são de origem étnica, cultural e religiosa geralmente identificável com a Europa. Com cursos superiores, são simplesmente misfits, desadaptados que se perdem no desespero. Como aquele jovem norueguês, dito de extrema direita, que foi bombista e a tiro matou dezenas de rapazes e raparigas num campo de férias da juventude socialista ; ou, ainda, além dos loucos, como aqueles que, de vez em quando metralham escolas e supermercados, nos EUA e não só... Ou o facto estatístico de 46% dos estudantes universitários portugueses já pensarem que terão de ir trabalhar e viver lá para fora... Ou ainda, as massas brasileiras que contestaram a realização, no seu país, da "copa do mundo"... para não esquecermos os milhões de muçulmanos de várias etnias e nacionalidades, mas maioritariamente jovens, que alimentaram esse fenómeno  -  que só os telemóveis e as redes de comunicação electrónica tornaram possível  --  a que se chamou, abusivamente, "primavera árabe"...  O dinheiro tornado princípio e fim de tudo, o materialismo consumista, o progressivo esquecimento de uma cultura humanista, a indiferença oposta à pobreza são hoje pilares de um sistema sócio-económico gerador de injustiça e exclusão social. O imediatismo com que a aflitiva falta de conhecimento dos homens e da história - e suas culturas - mais a ausência de virtudes morais dos "nossos" políticos (?) trata de tudo, porque só aprendeu a olhar para o lucro do crescimento económico a curto prazo (que, aliás, nem sempre correctamente entende), é simplesmente o marketing irresponsável (até no sentido jurídico-político) de uma feira de votos... Na hora em que escrevo estas linhas, já se desencadeou o ataque da "coligação" contra o "Estado Islâmico": a meu ver, chegados ao ponto em que ele surgiu e violentou, violou e matou populações inteiras (cristãs e outras, mas talvez maioritariamente muçulmanas) não haveria agora alternativa de solução possível (também sabemos quanto deixámos chegar o Adolfo Hitler ao que chegou...). Mas porque se invadiu o Iraque? e depois nos retirámos? porque consentimos e fomentámos independências, regimes e ditaduras que, mais tarde, abandonámos ou procurámos abater? E que terão a ver com tudo isso obscuras potências financeiras (algumas, como Janus, surgem-nos com uma face limpa) e bandos muitos, de mafiosos vários, que contrabandeiam petróleo, dinheiro, armas, pelas fronteiras sinuosas dos conflitos? 

Camilo Martins de Oliveira