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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ARTUR CASTRO NEVES (1944-2014)

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Era um prazer passear com o "Kiko" (Artur Castro Neves) pelas ruas de Paris. Tinha delas uma leitura muito diferente do "turista diplomático" que eu nunca deixei de ser, olhava-as com a mirada de "vieux routier", contava a história da loja de esquina que já fora outra coisa, do andar onde vivera fulano, do bistrot onde se comia, bom e barato, algo que era sempre bem diferente dos locais que eu conhecia. Era viciado na "La Une", eu na "L'Écume des Pages". Depois das livrarias de cada um, encontrávamo-nos no Lipp. Para a semana, vou beber por lá, por ele, um Chablis que sei que apreciava.
 
Paris era a cidade para onde ele saíra em 1962, onde se licenciou em Sociologia, onde lecionou na universidade, antes de o fazer por cá. Em Paris, escreveu na "L'Esprit", por cá editaria vários livros sobre o audiovisual, o tema que o fascinava. Por lá, viveu a sua mãe, que visitava regularmente, tendo eu, por quatro anos, sido beneficiário, pelo convívio, desse seu percurso cíclico. Surgia-nos lá em casa, com o inconfundível "papillon", sempre com uma oferta, umas flores, um livro, um chocolate ou uma compota. Trazia-nos a sua visão do país em crise, sempre original, fruto de um pensamento livre, feito de mundos que decantara. Refletia o mundo a partir dele, não de uma perspetiva paroquial. Tinha amigos de excecional qualidade, que gostava de partilhar, enriquecendo-nos. Através dele conheci gente muito interessante, em Paris ou em Brasília, onde nos visitou e nos iluminou os dias.
 
Conhecemo-nos nos anos 80, em Lisboa, no Procópio, onde ele parava a espaços. Ficámos amigos num segundo. A capital, contudo, parecia-me que não era a sua "praia". Era o Porto, a sua terra, que lhe dava a identidade, aquela maneira única de estar na vida e na relação franca com os outros. O Kiko era uma espécie rara de intelectual urbano, porque não se enfronhava nas folhas, antes sorvia  o quotidiano. Tinha uma graça natural, uma agitação quase adolescente. Era adepto de uma ironia culta, frequentemente feroz. Às vezes, divergíamos, politicamente e não só. No fundo, era um jogo: "picávamo-nos" um ao outro, divertidos. 
 
O Kiko deixou-nos, na madrugada de ontem. Quis o acaso que hoje eu estivesse de passagem no Porto. Pude, desta forma, despedir-me de um amigo com quem partilhava muitas inquietações, algumas certezas e, sempre, um olhar de esperança sobre Portugal. Deixamos aqui um abraço sentido à sua Família e um beijo muito amigo à Isabel. 
 
Francisco Seixas da Costa
http://duas-ou-tres.blogspot.pt/

"OLHAR E VER"

Mustafa Kemal Ataturk.JPG

Mustafa Kemal Ataturk

 

2. ISLÃO, LÍNGUA E MODERNIDADE

As facilidades de comunicação e encontro de que hoje dispomos, tal como as possibilidades de mais rigorosa e objectivamente nos debruçarmos sobre a história, nossa e dos outros - talvez melhor dissesse "sobre uma percepção comum da história comum a todos" - são factores de promoção do diálogo intercultural e inter-religioso. Neste tempo, seria erro radical e terrível insistirmos nas ideias feitas, teimarmos em olharmo-nos uns aos outros por enquadramentos que escondem a circunstância em que todos vamos evoluindo, e assim fecham as portas a oportunidades novas de diálogo, construção e paz. A nossa ciência do mundo, tal como a organização das nossas economias e sociedades, estão em constante mutação, e assim também as nossas culturas de valores e padrões, incluindo as de ritos, liturgias e comportamentos religiosos. Se, por força do progresso técnico, chegámos a uma circunstância de vida que já não hesitamos em chamar GLOBAL, temos certamente o dever ético e civilizacional de em conjunto repensarmos o convívio humano. Creio que o cotejo das nossas convicções e visões do mundo -  que cada uma das nossas tradições apresenta  -  com as necessidades desta nova circunstância global, nos ajudará a ser mais misericordiosos. A 1 de Novembro (Dia de Todos os Santos) de 1937, estreava-se em Lisboa o filme La Grande Illusion, de Jean Renoir, naquele mesmo ano apresentado em França e outros países europeus. Conta-nos a odisseia de tentativas de fuga de três militares franceses, feitos prisioneiros pelos alemães na guerra de 1914-18: o aristocrata capitão de Boieldieu (Pierre Fresnay), o plebeu Marechal (Jean Gabin), e o banqueiro judeu Rosenthal. Para encobrir e facilitar a evasão dos dois últimos, de Boieldieu toca flauta pelas muralhas do castelo em que estão presos, distraindo e irritando a guarnição, cujo comandante, o fidalgo alemão von Rauffenstein (Eric von  Stroheim) terá de o abater com um tiro, apesar de ser seu amigo e conviva durante o cativeiro... Ao moribundo francês pedirá desculpa do seu acto: visara apenas feri-lo, lamentava tê-lo morto. Sobre o cadáver colocará uma flor de gerânio, última homenagem a uma nobreza europeia que aquela guerra irá para sempre enterrar. Von Rauffenstein pensará então na nobreza de sangue, mas afinal significa que se vai finando também um sentimento mais largo e profundo de dignidade e reconhecimento na fraternidade humana. Os dois plebeus, com o auxílio de uma camponesa alemã, conseguem refugiar-se na Suíça. Jean Renoir dizia que todas as personagens do filme eram pessoas boas: bons franceses e bons alemães. Em 1937, por todo o lado o filme teve estrondoso êxito. Não foi então exibido na Alemanha nem na Itália, por expressa proibição de Hitler e Mussolini. O Império Otomano foi um dos vencidos naquela guerra, e dessa derrota sairá, pela liderança de Mustafa Kemal, heroico oficial do exército do Sultão otomano, a nova Turquia, republicana e leiga, a partir de Outubro de 1923, exatamente um ano depois de o Sultão ter sido destituído de funções políticas e reconhecido só como Califa, com funções apenas espirituais. Aqui termina o Império Otomano, e o próprio Califa tomará o caminho do exílio em San Remo, a bordo de navio britânico. Será substituído pelo sobrinho que ,por sua vez, com a extinção final do califado e a expulsão da família imperial, se exilará em Paris. Entretanto, a sudeste da Turquia, e por mandato da Sociedade das Nações, a Síria e o Iraque estão, respectivamente, sob intervenção francesa e britânica. E o tratado de Lausanne, em contrapartida do reconhecimento turco do seu dever de protecção das minorias grega, arménia e curda, e de nenhuma discriminação com fundamentos linguísticos, religiosos ou étnicos, concederá à  nova república a retirada das tropas inglesas de ocupação de Istambul, a soberania sobre os estreitos marítimos circundantes, e a recusa de independência aos estados arménio e curdo. Quanto às populações gregas (900 mil almas) - que, com arménios, há milénios habitavam a Anatólia - serão transferidas para a Grécia, trocadas pelos 400 mil turcos que lá tinham ficado desde os tempos da ocupação otomana e da independência da Grécia (1821). Apesar de nem todas as consequências destas políticas e acordos terem tido resultados desejáveis (lembremos os dramas e genocídios que atingiram arménios e curdos, p. ex.) fica a lição de que - numa circunstância étnica, cultural e religiosa não europeia, contrariamente à alemã - o tratado de Lausanne, contrariamente ao de Versailles, que abriu caminho a Hitler e ao nacional-socialismo e ao holocausto, permitiu a edificação de um estado moderno, com vocação democrática e laica, apesar de reconhecer ainda o Islão como sua religião . E de continuar a ter problemas de identidade e aculturação por resolver... "Missionários" religiosos e políticos, venham donde vierem, muitas vezes convencidos da superioridade inigualável das suas crenças e práticas, podem esquecer-se de que as fés e as liturgias, tal como os regimes e sistemas políticos, não se impõem facilmente, não são bens exportáveis e importáveis, porque exigem inculturação... E esta pode levar muito tempo! O kemalismo, a ideologia do estado moderno, "europeu" e laico que Ataturk (o Pai dos turcos), nome histórico de Mustafa Kemal, conseguiu impor, teve de passar por um período de ditadura, aliás à moda do que se ia desenhando pela Europa do tempo... Mas tomou algumas decisões reveladoras de uma visão arguta do mundo islâmico e de uma alternativa consciente de conversão à modernidade. Dois anos antes da sua morte, proferia um discurso no Parlamento turco (a 1 de Novembro de 1936) : O nosso probema essencial é alçar o nosso país entre os mais civilizados e mais ricos. Este é o ideal dinâmico da grande nação turca, que fez uma revolução fundamental, não só nas instituições, mas também nas mentalidades... O esforço foi feito sobretudo no sentido da laicização do Estado, em paralelo com o alargamento da participação popular, designadamente pela atribuição do direito de voto às mulheres. Também o matrimónio, antes celebrado pelos representantes das famílias perante o imã, passou a ser contratado civilmente pelos noivos. Ocidentalizou-se o calendário, o registo onomástico, os pesos e medidas, a escrita, esta pela adopção obrigatória de caracteres latinos, aliás ajudada pela imposição do turco como língua litúrgica, em substituição do árabe. Esta última reforma teve um alcance bem maior do que nós imaginamos. Na verdade, a mensagem transmitida pelo profeta Maomé foi ditada em árabe, mais precisamente no árabe utilizado pelos poetas de Hedjaz, língua que, por assim ter sido falada por Alá - e ser a língua do Corão - ficou a ser a língua sacra, a língua que Deus fala. Corão quer dizer recitação, e essa recitação da mensagem divina que é repetida nas escolas islâmicas, ensina-se com a língua árabe que a sustenta, donde o risco constante de a expansão do islamismo ser um modo de panarabismo. Só com a instauração do califado abássida, sediado em Bagdad , em meados do sec. VIII, os muçulmanos neófitos - isto é, aqueles que , pertencendo a povos vencidos pela guerra de expansão árabe, tinham sido reduzidos à servidão - foram considerados muçulmanos livres e iguais aos outros. A expansão do Islão para além da bacia do Mediterrâneo foi-o afastando do seu centro arábico, e embora a língua da revelação e da liturgia se mantivesse o árabe, este já não é necessariamente pátria do muçulmano, nem sequer no sentido pessoano de "a minha pátria é a língua portuguesa". Mas se permite autonomia política aos povos dessa religião, não deixa de ser um factor de panislamismo. O que Ataturk fez, ao impor a escrita latina à língua turca e a substituição do árabe por esta como língua litúrgica, não é bem o mesmo que fez o Vaticano II, ao substituir o latim pelas línguas vernáculas. Aquela não foi, como esta, uma medida de pastoral litúrgica, antes, eminentemente, foi uma medida política visando a consolidação de um Estado emancipado do poder teocrático e, por isso, mais progressista, aberto à modernidade. Yassine Al-Haj Saleh é um dissidente sírio, escritor e jornalista, colaborador do diário libanês An-Nahar e do jornal arábico Al-Hayat. Publicou, na revista libanesa (em língua e caracteres árabes)  de artes e letras Kalamon, um artigo  -  que fui ler na tradução francesa do Courrier International de 25 de Setembro - sobre o tema do árabe literal como língua de dominação. Alguns passos me chamaram uma atenção especial e, por me parecerem vir a calhar para este texto que estava a terminar, traduzo-os aqui. Sobre o exemplo turco que acima apresento : Toda uma geração de turcos teve assim de voltar à escola primária, por força da "revolução linguística". Operou-se uma ruptura com o passado, enquanto também se reprimia a prática de outras línguas faladas no país, como o árabe popular, o curdo e o arménio, e se "turquizava" o vocabulário. Apesar desta iniciativa ter encontrado vivas resistências, certo é que, ao fim e ao cabo, a língua turca moderna, que tem menos de um século, se revelou menos permeável do que o árabe a uma visão fundamentalista do mundo. Al-Haj Saleh sublinha com veemência a diferença entre o árabe dialectal e corrente da linguagem popular e o árabe literal, clássico e erudito, ao ponto de que pude concluir que eles são politicamente opostos. O poder político assenta a sua legitimidade na estabilidade da língua e da religião. Não tem outros alicerces. Quem ousaria reformar as regras do árabe, língua do Corão? Por outras palavras, não é apenas por razões linguísticas que as rígidas regras da língua são conservadas, mas também por razões políticas, a fim de garantir a legitimidade do poder. Porque quanto mais complexas forem as regras da expressão correcta, menos numerosos serão os que as dominam e por isso merecem os privilégios de que gozam. Dito de outro modo, os gramáticos e doutores da lei, detentores do poder, estabelecem regras que os mantenham na posição de garantes das práticas linguísticas, religiosas, familiares, e mesmo sexuais. Desaconselhando que os outros países sigam o exemplo de corte radical dado pela Turquia, acredita em que a evolução presente dos dialectos árabes, da língua popular, em permanente contacto multipolar através das redes de comunicação (televisão, telemóveis, computadores) conduzirá à descentralização da expressão e suas formas, ou seja, a uma maior liberdade. Mas essa liberdade exprime-se à margem de quaisquer regras, enquanto que certas regras poderiam facilitar a compreensão e encorajar a criatividade. No plano religioso deviam-se proteger as práticas populares e dar-lhes oportunidades de expressão, garantir a independência das instituições religiosas relativamente ao poder político, e defender a liberdade de crença para todos, inclusive a possibilidade de introduzir novas religiões. Assim se refundaria o Islão. E conclui o artigo com o parágrafo seguinte, que aqui deixo a encerrar esta crónica, com o pedido de que pensemos em como substituir reacções menos reflectidas ao fenómeno islâmico dos nossos dias  - que é muito mais multifacetado e complexo do que tantas vezes apressadamente julgamos - pela atitude, que reputo de muito mais realista, da caridade que escuta e dialoga. O niilismo  islâmico contemporâneo nasceu de uma humilhação global, religiosa e não religiosa, imposta por forças locais e internacionais. A humilhação que representa actualmente o Estado Islâmico (E I ou Daech) para os muçulmanos provocará infalivelmente um niilismo hostil ao próprio Islão. O dia em que as gentes abandonarão em massa a "religião de Deus" está menos longe do que imaginamos...

 

Camilo Martins de Oliveira