"OLHAR E VER"
3. ENTENDER ALÉM DE NÓS
A notícia de mais uma degolação ou de qualquer outro acto bárbaro, que nos fere na própria essência do ser humano, provoca um violento impulso de vindicta, um desejo obscuro de destruição, em que a morte se confunde com a repugnância dela. Nem precisamos de pensar que o ritual da degolação retoma o gesto antigo da matança dos animais oferecidos em sacrifícios "religiosos". Em pleno absurdo, tive a graça de escutar S. Paulo: A paz de Deus, que está acima de toda a inteligência, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos... Há momentos assim, em que só entendemos a paz para além da nossa inteligência. Apenas acreditamos que, se Deus a tem e no-la quer dar, ela será possível. Dado este passo, iniciamos uma caminhada no sentido de nos lermos por dentro - a nós, aos outros, e à circunstância de todos nós - e procurar construir a paz no seu sentido. Ocorre-me - sei lá porquê - a razão dada por frei Edward Schillebeeckx, dominicano flamengo, que foi um dos maiores teólogos do Vaticano II e do século XX, para ter escrito o seu Jesus, het verhaal van een levende, que comprei e li, na sua versão inglesa, há mais de trinta anos... Sintopenso, repentinamente, que vou a esse texto para ler paz onde ele tem escrito paralítico: Todos o vimos, não vimos? Dia após dia, sempre no mesmo canto, mais ou menos notado por gente com pressa que, mesmo assim, de vez em quando, com ares de aborrecimento ou surpresa, ou com sinal amigo, seguindo o seu caminho, lhe atirarão talvez uma moeda. Ali está ele, agachado no seu cantinho, sozinho, um caco de gente. E assim sempre esteve. E Schillebeeckx cita um passo dos Actos dos Apóstolos: Vendo Pedro e João a entrar no Templo, pediu-lhes esmola. Então, Pedro pôs os olhos nele, tal como João, e disse-lhe: "Olha para nós". Ele fixou neles o seu olhar, esperando que lhe dessem qualquer coisa. Mas Pedro disse. "Não tenho prata nem ouro, mas dou-te o que tenho : em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, anda!" E agarrando-lhe a mão direita, levantou-o. E logo se firmaram os seus pés e tornozelos, se levantou num pulo e começou a andar... Assim também devemos dar a mão à paz. Será, infelizmente, necessário exercer o legítimo direito à autodefesa, bem como o dever de protecção e resguardo de populações inocentes (muçulmanas, cristãs e outras) que o salafismo fanático do intitulado Estado Islâmico violentamente desrespeita e agride. Mas a mão que se levanta para travar o mal que tem sido feito e o aniquilar, move-se pelo mesmo coração que estende à paz a outra mão. E ambas devem obedecer à cabeça que, perante o horror do que não entende logo, procura a calma e a inteligência necessárias a chamar todos os homens de boa vontade ao amor que caminha. O texto a que acima me refiro procura surpreender a figura e a mensagem de Jesus Cristo no seio da primeira comunidade cristã, onde ela já surge como vocação à conversão do mal em bem, da morte em vida, à submissão a Deus entendida como metanoia profética, isto é, não como obediência militar, mas como arrependimento que nos transforma em fautores do bem. Ora já a jihad islâmica - que é corolário do islão, ou seja, da submissão a Alá, como diligência no sentido de vencer as paixões terrenas - tem um cariz mais voluntarista, é mais uma obediência a uma vontade expressa no ensinamento do Corão, do que abandono a uma resposta ao apelo da graça universal de Deus. Assim, o islamismo tendo nascido na circunstância histórica da península arábica, das caravanas que deslocavam produtos e gentes de várias etnias e crenças religiosas - desde os árabes idólatras a monoteístas judeus e cristãos de diversas confissões - vai filiar-se nas duas tradições monoteístas, para as aperfeiçoar e superar. Começará por impor essa suma maometana, aos pagãos que povoam o seu território, tolerando apenas a liberdade religiosa dos "fiéis do Livro" (judeus e cristãos), sob condição de pagamento do pertinente tributo. Todos os outros foram submetidos (convertidos) pela espada, que ainda hoje aparece em estandartes muçulmanos. Quiçá por esta diferença fundamental entre as circunstâncias sociopolíticas e ideológicas em que nasceram, cristianismo e islamismo tiveram percursos diferentes, ainda que nem sempre totalmente antagónicos: o primeiro foi preservando, apesar das muitas tentações e desvios imperialistas, intolerantes e inquisitoriais que foi sofrendo, essa alegria inicial do Evangelho que, no fundo é a confiança simples na misteriosa graça de Deus ; o segundo foi produzindo, apesar do cariz bélico da sua expansão inicial, tradições de tolerância e escolas de misticismo puro. Há, aliás, exemplos de conversões nos dois sentidos, algumas por motivações de ordem eminentemente religiosa, outras - sobretudo na bacia do Mediterrâneo, durante séculos - em consequência de cativeiros, por ocasião de guerras ou pirataria, ou de decretos de assimilação sob ameaça de expulsão ou morte. A premiada realizadora francesa Cheyenne-Marie Carron dizia recentemente ao diário Le Figaro, em entrevista acerca do seu último filme L´Apôtre, que se debruça sobre o tema difícil da conversão de um muçulmano, que um hadith (tradição de dito, gesto ou comentário do Profeta) considera apostasia merecedora de morte: "Matai aquele que abandona a sua religião!" A personagem do convertido, Akim, foi construída por numerosos testemunhos, orais e escritos, por vezes sob pseudónimos. Fiz este filme para todos os que escolhem seguir os passos de Cristo e sofrem perseguições por todo o lado, no mundo. Em todos os países de maioria muçulmana, no Oriente, em África, são condenados, por vezes conduzidos à morte. Devemos dizê-lo, porque é verdade. E dirá ainda, falando dos actores do filme, maioritariamente muçulmanos: Sentia-se algum mal estar sobre questões como a lapidação das mulheres adúlteras ou a amputação dos ladrões. Os actores que aceitaram fazer o filme representam um novo islão, muito aberto. Empenharam-se numa equipa eclética, com parceiros e técnicos judeus e ateus, uma realizadora católica. E eram muito respeitadores. Têm um certo sentido da virilidade, da honra, do brio, é cultural, respeitam as pessoas convictas, mesmo as de outras religiões. Enquanto que o catolicismo morno, relativista, um pouco envergonhado, não é bem visto. É por isso que acredito no diálogo. Devemos ousar falar das coisas que zangam, sem nos zangarmos. Muitos muçulmanos estão dispostos a isso. Creio que, no futuro, haverá um novo islão, mais tolerante, frente a novos cristãos, mais convictos. E haverá muita beleza nisso. E acerca do slogan "Not in my name" , com que muçulmanos britânicos (e também, no mesmo sentido, se manifestaram franceses) mostraram publicamente a sua solidariedade com as populações vitimadas : É o princípio de um diálogo. Para o continuar e aprofundar, será necessário que grandes pensadores árabes e muçulmanos se debrucem sobre os textos, para chegarem a um "Islão das luzes", renovado.
Deparamos assim com outro confronto que nos interroga, sobretudo ao pensarmos que, apesar do muito que a cristandade e a Igreja Católica devem ao labor inovador e confortador de grandes teólogos, estes muitas vezes foram oficialmente perseguidos e calados (ou quase...), de S. Tomás de Aquino a Schillebeeckx e tantos outros, até aos nossos dias. Como também nos sentimos interrogados pelo que, em 1884 (!), no seu La Civilisation des Arabes, Gustave Le Bon escrevia: As crenças que já não temos, a civilização árabe ainda as conserva: religião, família, instituições, autoridade da tradição e do costume, essas bases fundamentais das sociedades antigas, tão profundamente minadas no Ocidente, conservaram todo o seu prestígio no Oriente... Bruno Guiderdoni é cientista, especialista na formação das galáxias, director do Observatório de Lyon. Tornou-se muçulmano, feito sufista numa ordem contemplativa e mística fundada em Marrocos no sec. XVIII: Na minha infância e adolescência, fiquei maravilhado perante a beleza da natureza, e perplexo pelo mistério da sua origem... ...O islão é a religião do conhecimento por excelência. E, para um homem de fé, o panorama extraordinário que a ciência nos oferece, o de um imenso cosmos, rico de formas e de fenómenos de incrível diversidade, remete-nos para o enigma do Real, que é um dos nomes de Deus no islão... ...A minha adesão ao islão não se fez pela rejeição de outras religiões, mas antes pela consciência da sua unidade. Detentores da mesma dignidade humana, todos nós caminhamos para a essência da Verdade.
Camilo Martins de Oliveira