Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Morreu o primo de Maria Teresa Horta, Fernando de Mascarenhas. Marquês de Fronteira e conde da Torre, entre outros títulos de que dispunha, foi sempre um democrata e um homem da cultura. Abriu as portas do Palácio de Fronteira a reuniões da oposição à ditadura. Criou a Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, um importante instrumento de divulgação cultural. Foi no palácio que Maria Teresa, ainda criança, o conheceu, bebé recém-nascido. E como ela incomparavelmente escreve...
INFÂNCIA
Éramos crianças
e corríamos com os inusitados animais que imaginávamos tirar da lisura dos azulejos equívocos
que nos rodeavam
A evitarmos a crueldade de cada cisne branco nadando no lago ao fundo
Éramos crianças
e brincávamos com o vento entre as estátuas dos jardins por onde voávamos
Maravilhados diante da estranheza
Lá atrás ficava o palácio onde as nossas mães desatentas fingiam vigiar-nos
Lavrando a beleza
Maria Teresa Horta Lisboa, 12 de novembro de 2014
Foto - Em junho de 2011, Fernando de Mascarenhas fez questão de ser o anfitrião do lançamento do romance «As Luzes de Leonor», em que Maria Teresa Horta revive a figura da marquesa de Alorna, pentavó dos dois primos.
Um dos maiores pensadores sobre a história e as civilizações - recentemente redescoberto e mais estudado - é Ibn-Khaldun (1332-1406), mouro de linhagem andaluza, natural de Túnis. O seu mais fiel tradutor e divulgador, nos dias de hoje, é o historiador marroquino e francófono Abdesselam Cheddadi que, entre muitos outros trabalhos publicou, em 2012, na Pléiade, uma versão francesa da Autobiografia e da Muqadima, primeira parte do monumental Livro dos Exemplos, uma teoria das civilizações, designadamente da civilização islâmica, de raro rigor científico e metodológico, escrita por Ibn-Khaldun no século XIV! Encontrei, noutra obra de Cheddadi, também dedicada ao grande pensador andaluz, um texto que organiza ideias e noções sobre o homem e a sociedade no contexto do Islão, que seguidamente transcrevo por me parecer de alguma utilidade para o que vamos procurando entender: Aquilo a que se pode chamar "sistema do islão" na era clássica até ao tempo de Ibn-Khaldun designava-se enquanto entidade particular por três termos - islão, milla, umma - que se inscreviam implicitamente num mundo plural feito de fés, de comunidades religiosas e de nações diversas, e que tinham como pano de fundo a ideia de que os homens, como todas as coisas, são criaturas de Deus.O termo islão permitia evidenciar, dos pontos de vista teológico, jurídico e político, a oposição entre o sistema do islão e tudo o que não era ele: de um lado o dar al-islam (a morada do islão), do outro o dar al-kufr ( a morada da infidelidade), e o dar al-harb (a morada da guerra).O termo milla designava o islão enquanto religião, face a todas as outras crenças. Quando se queria falar do islão dizia-se al-milla, a religião simplesmente, empregando o termo de modo absoluto, para assim significar que o islão era a religião por excelência, a religião verdadeira.O termo umma, quanto a ele, caracterizava positivamente a comunidade muçulmana como tal. Há traços característicos da umma que a configuram com semelhanças à Igreja universal: comunhão de crentes de todas as raças e nações, antepassados, presentes e vindouros, povo que Deus acompanha até ao fim dos tempos. Também se lhe conhecem divisões, divergências religiosas, males necessários, e a correspondente tentação de as perseguir e castigar, para defesa e protecção da verdade e da união dos eleitos, já que a comunidade universal dos crentes tem também uma dimensão temporal... É ainda interessante comparar o que Ibn-Khaldun diz sobre o califado com o que diz do papado. Essas considerações surgem na terceira parte do Muqadima,que trata dos estados universais, poder, califato, funções governamentais. O autor fundamenta a instituição do poder na verificação da natureza necessariamente social do ser humano, que requer domínio e coacção, que são efeitos da irascibilidade e da animalidade, e por isso podem conduzir a abusos que tornem a obediência difícil e assim levem às desordens e ao homicídio. É portanto necessário referirmo-nos a regras políticas estabelecidas, reconhecidas por todos e cujas cláusulas todos respeitem... ...Quando essas regras são estabelecidas pelos sábios, grandes personagens e mais iluminados espíritos do Estado, temos uma política racional. Quando são estabelecidas por Deus, por intermédio de um legislador que as proclama e delas faz uma lei religiosa, temos uma política religiosa, que é útil neste mundo e no outro. Aqui, Ibn-Khaldun discorre sobre a lei humana e a lei divina, de um modo que não estranhamos, posto que o mesmo poderia ter sido escrito por vários tratadistas cristãos: Com efeito, os homens não foram criados somente com vista a este mundo cá de baixo, que apenas é jogo e vaidade, porque destinado à morte e ao aniquilamento. Deus disse : "Credes que Nós vos criámos sem um fim?" (Corão,XXIII, 115). O fim para o qual eles foram criados é a religião deles, que deverá conduzi-los à felicidade no outro mundo. É "a via de Deus, a quem pertence o que se encontra nos céus e na terra" (Corão,XLII, 53). Assim, as leis religiosas vieram para exortar os homens a seguir esse caminho em tudo o que fazem, quer em matéria de culto, quer nas relações com os seus semelhantes. Mesmo o poder, que é natural à sociedade humana, fazem-no depender da via da religião, a fim de que todas as coisas sejam regidas pelo Legislador. Todo o poder fundado sobre a coacção e o domínio, e que deixa livre curso à irascibilidade, é injustiça e opressão. É censurado pelo Legislador, tal como pelas exigências da sageza política. Do mesmo modo, qualquer poder fundado sobre a política e as suas regras que não for regido pelo Legislador, é igualmente censurável, porque privado da luz divina... E é no desempenho dessa função de política religiosa que situa o estatuto de califa : O califa é o substituto do Legislador para a guarda da religião e o governo das coisas cá de baixo com fundamento religioso. Por isso se chama a essa função califado ou imamado e, a quem a exerce, califa ou imã. Os modernos também lhe chamam sultão desde que houve vários califas ao mesmo tempo, e em razão das distâncias, e na ausência das condições requeridas, surgiu a obrigação de prestar juramento a quem impusesse o seu domínio. A apelação imã vem da analogia com o imã que dirige a oração, que devemos seguir e tomar por modelo... ...Quanto à apelação califa, ela explica-se pelo facto de que o califa substitui (yakhelufu) o Profeta junto da sua comunidade. E acrescenta que o califa é o vigário do Mensageiro de Deus, não do próprio Deus, justificando: Substitui-se um ausente e não Alguém que está presente. Não nos demoramos a acompanhá-lo nas muitas considerações, concordâncias e refutações que vai fazendo sobre as várias teses que dividem as escolas e seitas do islamismo quanto à natureza dos poderes dos califas, e quanto à nomeação, eleição ou sucessão destes. Ibn-Khaldun é sunita, a escolha do califa e do imã deve ser feita por consenso da comunidade, respeitando critérios de sageza, prudência, sabedoria e santidade, e o poder do califa não deve ser confundido com o poder real. E caberá observar aqui que, hoje ainda, na esmagadora maioria das comunidades muçulmanas, os imãs não desempenham funções políticas, ainda que, pelas prédicas, possam influenciar a cultura em que uma comunidade se move. Isso também os cristãos sabem o que é... No capítulo XXXI dessa III Parte do Muqaddima, fala-se dos títulos de papa e de patriarca entre os cristãos e de kohen entre os judeus. Lá voltaremos em crónica próxima, mas transcrevemos aqui os dois primeiros parágrafos, pois nos ajudam a perceber a teoria do poder e o seu cariz religioso, subjacente à história política dos califados e do império otomano. Na ausência de um profeta, qualquer comunidade religiosa deve ter alguém que a dirija e vigie a aplicação das leis religiosas. Essa pessoa age como representante do Profeta, e encarrega-se de fazer respeitar as obrigações que aquele trouxe. Por outro lado, para a vida em sociedade, a espécie humana precisa necessariamente de um governo, como já afirmei. Precisam, portanto, os homens de uma pessoa que os leve a agir no sentido do interesse deles, e que os desvie, pela coacção, daquilo que os prejudica. É o soberano... E temos de compreender o seguinte à luz da condição de um muçulmano ibérico que já vê aproximar-se a vitória final da reconquista cristã da Península: ...Na comunidade muçulmana, a guerra santa é um dever religioso, porque o islão tem uma missão universal, e todos os homens se lhe devem converter, de bom grado ou pela força. Assim o califado e o poder temporal ali se unem, de modo a que o poder do soberano a ambos possa servir simultaneamente. Já referi - lembrando, aliás, afrontamentos entre o papado e o império, a excomunhão de monarcas, guerras religiosas, o Estado pontifício - que a tentação constantiniana, isto é, o modelo imperial da Roma antiga, andou vagueando pela história da cristandade, sobretudo ocidental. Mas no caso do cristianismo, a queda do império romano não trouxe a imposição das religiões dos bárbaros conquistadores, antes paulatinamente foi arrastando para a fé de Jesus os povos vários que as hordas iam instalando em terras do velho império. Assim, a Igreja cristã foi evoluindo sob a tensão entre a propensão para a conquista (além dos afrontamentos acima mencionados, recordem-se as cruzadas, os ultimatos à conversão de judeus e mouros, a Inquisição, certos modelos de zelo missionário), e a persuasão pelo testemunho da fé, pelo exemplo das obras, pela pregação da palavra que um labor teológico permanente levava a dialogar com o mundo. Por esse esforço de estudo e interrogação da revelação e da contemporaneidade, a Igreja cristã foi-se mantendo atual - apesar de tantos caprichos e atrasos de sectores mais "conservadores" - ao ponto de se poder afirmar que são cristãos valores da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade), tal como preocupações, movimentos e políticas de justiça económica e social, ou da paridade de estatuto das mulheres. A Umma islâmica estendeu-se, a partir da Arábia, quer para ocidente (pelo Egipto e toda a África mediterrânica e, do Magrebe, até à Península Ibérica) , quer para oriente ( pelo sudoeste asiático até à China e, no sul, pela Índia, até à Malásia e Indonésia), quer ainda para norte e noroeste (Síria, Iraque, Pérsia, Império Bizantino, até aos Balcãs), sem esquecer os caminhos do sul (seja pela costa oriental de África ou, ainda, pela expansão subsaariana, até à Guiné, e, abaixo do Egipto, ao Sudão). Depois da expansão islamo-árabe inicial -- que reduziu à condição de servos todos os povos conquistados, do Egipto à Pérsia, incluindo os convertidos -- o islão mediterrânico conheceu dois califados : o omíada (Damasco), que, de 661 a 750 se impôs ao mundo muçulmano e o expandiu, só caindo pela sublevação dos povos não árabes dominados ; e o abássida (Bagdad) que reconheceu a igualdade de todos os crentes, árabes ou não, e confinou os omíadas à Espanha (de 756 a 1031). Com a quebra do poder dos abássidas, entre 905 e 1050, esse islão dividiu-se por três impérios, representando diferentes entidades étnico-políticas, conheceu os reinos almóadas e almorávidas e, finalmente, o império otomano (1326-1923). Alhures, ainda se afirmou na Índia o império mogol e, pelo oriente e África, diversos reinos e sultanatos. Conjugadas com várias tradições teológicas e diversas influências e circunstâncias culturais, essas comunidades foram evoluindo com características próprias, num islão mais plural do que uniforme. Atualmente, a diáspora islâmica em nações ocidentais reflecte essa pluralidade, e traduz atitudes diferentes, quer quanto ao relacionamento do islão com culturas que, muito embora lhe sejam originariamente estranhas, constituem hoje, nos países em que os muçulmanos são minoritários imigrantes, a sua circunstância. Aí se têm desenvolvido encontros interculturais, diálogos inter-religiosos e, consequentemente, teologias islâmicas com um conceito mais místico da Umma, que, sem deixar de ser a dar al-islam, a morada da religião verdadeira (al-milla), vive entre outras comunidades de fé... Por outro lado, em territórios maioritariamente ocupados por populações muçulmanas, vão surgindo, crescentemente, exemplos de inovação, correcção, rebelião e, até, de apostasia. Num país de eleição para a Al-Qaeda, o Paquistão, uma jovem adolescente muçulmana enfrenta os temíveis talibã para reclamar e praticar o direito à instrução e à igualdade das mulheres. Em Teerão, a burguesia desafia alegremente, todas as noites, os códigos de comportamento corânico impostos pelos aiatolas. Na própria Arábia Saudita, as redes de comunicação electrónica transmitem e trocam mensagens de discordância e contestação, não só da teocracia wahabita, mas da própria fé islâmica: Será Alá mau, ou não se interessa por nós?... Haverá, no Paraíso, para as mulheres, a mesma recompensa de setenta e duas virgens, prometida aos homens?... Se a religião é verdade, porquê defendê-la pela violência?... Ateísmo porquê? Será por pensarmos que a religião é contrária ao humanismo? E outras divisões e conflitos fracturam o islão, levando muitos muçulmanos, homens de fé e boa vontade, a insistirem no espírito de comunhão da Umma sobre as distinções entre moradas de fiéis e infiéis, que sempre conduzem à guerra: o reino saudita já se sente cercado pelo Irão chita e os zaidistas (seita chita) do Yémen; na Líbia, na Síria, no Iraque, etc., a confusão e a luta entre várias tradições, seitas e nações muçulmanas ganha proporções assustadoras, e não podem ser exclusivamente atribuídas à queda da hegemonia otomana, aos ocupantes europeus e às desastradas interferências americanas... Mas mais preocupante ainda é o facto da aproximação recente de militantes da Al-Qaeda ao Daech ou Estado Islâmico, designadamente no Paquistão, onde a influência talibã e as desavenças com a Índia concentram pretextos explosivos de uma guerra que até pode ser nuclear... Não esqueçamos que, enquanto o movimento de Bin-Laden é uma organização terrorista internacional e ubíqua, o Daech se apresenta como um califado confinado a um território. Assim, uma aliança de ambos poderá engendrar mais um flagelo expansionista totalitário... Sobretudo num mundo que continua a gerar desadaptados, jovens excluídos das sociedades e da esperança. Pensa-se que 60% dos jiadistas hoje recrutados, nem crentes são. Proximamente veremos como o "ocidente cristão" tem muito para rever.