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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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8. RESSENTIMENTO

O projecto do Daech ou Estado Islâmico nem na história recente é propriamente uma novidade: para além de vários estados, monarquias ou repúblicas, que se foram intitulando ou pretendendo islâmicos e que, nalguns casos, até aplicam a charia ou lei islâmica, surgiram outros projectos de estados mais vastos e poderosos, como o da República Árabe Unida (Egipto e Síria), logo Estados Árabes Unidos (Egito, Síria e Yémen), de 1958 a 1961. O Islão mediterrânico sofre a nostalgia dos grandes califados antigos e a humilhação do mundo muçulmano sequente à queda do império otomano e à eliminação do seu califado por Ataturk. Grande parte do islão árabe foi dividida em vários países, de modos diversos sujeitos à ocupação ou interferência de potências europeias. E, ainda por cima, já depois da 2ª Grande Guerra, a que se seguiu a descolonização, uma coligação árabe (Egipto, Jordânia, Síria, Iraque e Líbano) foi derrotada, em 1948, pelo pequeno e nascente Israel... Onde antes reinava o islão - incluindo, até ao século XV, parte da Espanha, e até ao primeiro quartel do XIX a Grécia  - com súbditos e escravos judeus e cristãos, o século XX trouxe outros poderes. E, alimentando desejos de desforra e regresso à passada glória, um ressentimento manifesto ou mal disfarçado... Mas o ressentimento, enquanto motivador de sobressaltos históricos, não é apanágio do Islão nem de qualquer espaço-tempo. Marc Ferro, no seu Le Ressentiment dans l´Histoire, aponta cristãos perseguidos e perseguidores, judeus e heréticos, anti-judaísmo e outras inquisições, raivas a reis, ricos e aristocratas, Vichy e Alemanha nazi, descolonizações e Rússia pós-soviética, eu sei lá de quantos mais casos poderíamos falar, dos Balcãs à Polónia e Ucrânia, de Tamil e Talibã, do Sudão e do Rwanda... O ressentimento é subjectivo e, por isso mesmo, difícil de gerir. Não se negoceia, compreende-se com boa vontade. Não deve ser acicatado, deve ser acolhido como razão de outro coração. É difícil, bem sei, até porque, mesmo no que nada tem a ver connosco, naturalmente tomamos um partido qualquer. Por exemplo: dificilmente aceitamos qualquer razão para uma tomada de posição "islamista", nem sequer nela entenderemos a diferença entre radicalismo e moderação; mas já teremos simpatia pelas guerrilheiras curdas... Com franqueza, não posso dizer que as actuais hordas islâmicas se constituam com saudosistas de impérios revolutos ou de históricas epopeias... Antes me parece que certos discursos cheios de tradição e doutrina procuram alimentar frustrações contemporâneas, inclusive de jovens sem religião alguma e simplesmente inadaptados, descabidos (misfits). Nesses discursos há, certamente, a afirmação sectária de uma religião ou ideologia única e verdadeira ( que os "moderados" não conseguem desmentir), tal como a do seu pertinente direito  à reconquista, com a concomitante aplicação da lei "corânica" acima do estado de direito laico. Daí advirão desilusões e deserções. Nós bem sabemos como, apesar do aparente conforto das nossas sociedades de consumo, tantos jovens nossos se desiludem e partem, e talvez regressem. Mas seremos nós capazes, como corpo humano e político, de lhes dar, a eles e tantos outros em nosso seio abandonados, a justiça solidária que  nos devemos? Por ser tão baixo e primitivo em nós, o ódio é fácil. O ressentimento é um ódio retribuído ou, pior ainda, um sentir-se desprezado, ou menosprezado, que se desforra. Os testemunhos de mulheres curdas, sírias guerrilheiras, que a seguir transcrevo, dizem mais do que eu saberia ou poderia dizer. Respiguei-os de um artigo de Taha Khalil, publicado no jornal árabe libanês Al-Mustaqbal, que encontrei na versão francesa do Courrier International:

  1. Antes de poder pensar em libertar seja o que for, preciso de libertar o meu cérebro do estado em que se afundou por força das nossas tradições e do ensino que recebemos. Preciso de compreender os mecanismos da História e a situação da mulher, para saber o que faço aqui. A nossa guerra situa-se, antes de tudo mais, no campo das ideias. Combatemos as ideias obscurantistas e retrógradas dos membros do Daech , de barba espessa e estranho fácies, que cortam cabeças e nos querem levar de volta ao que de pior conhecemos em termos de repressão e dominação sexista, ideológica e humana...
  2. Íamo-nos aproximando deles, estavam a poucos metros de nós. Ouvíamos as suas vozes. Ficaram coléricos quando compreenderam que enfrentavam mulheres. Diziam aos seus camaradas, pelos "walkie-talkies": «Venham, há aqui pegas!» Para eles, somos pegas. Mas démos-lhes uma lição. Por vezes fogem de nós, assustados, esquecendo os mortos e abandonando os feridos. -  É verdade que há uma "fatwa" que diz que quem for morto por uma mulher não entrará no paraíso? - Seja como for, não irão para o paraíso. Despachamo-los para outro lado. Mas é verdade que essa "fatwa" existe. De acordo com o que nos contam os prisioneiros, eles pensam mesmo que aquele que se deixa matar por uma mulher não tem direito, nem ao paraíso nem às virgens corânicas que lá estão...
  3. Capturei várias vezes guerreiros do Daech. Da última vez, quando trouxe um prisioneiro para o nosso acampamento, ele pediu-me um copo de água. Dei-lho e vi que o pôs à sua frente, para nele mergulhar uma  chave que trazia ao pescoço. Uma daquelas chaves grandes, como as das casas no campo. Mergulhou-a três vezes antes de beber. Pensava que, assim, se tornaria invisível. É trágico batermo-nos contra assaltantes tão idiotas. Quando os faço prisioneiros, esses jiadistas, ao longo do caminho para o nosso acampamento, vão olhando para o chão. Não sei se o fazem por se sentirem humilhados pelo facto de terem sido presos por uma mulher, ou se por pudor religioso. Em ambos os casos, é ridículo. São mesmo ridículos esses homens!

Por mim, só penso que, num mundo de ressentidos, não há gente ridícula. Apenas histórias muito tristes. Em cada desgraçado está a humanidade toda sem graça.


Camilo Martins de Oliveira