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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

De 3 a 9 de novembro de 2014.


Continuamos sob a influência dos passos incansáveis de Miguel de Unamuno. «Por Terras de Portugal e de Espanha» (1ª ed., V. Prieto, Madrid, Biblioteca Renacimiento, 1911; trad. port., José Bento, Assírio, 1989) é uma obra-prima que permite conhecermos a magnífica interpretação do mestre da cultura peninsular sobre a identidade portuguesa.

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AS ORIGENS DE UMA INICIATIVA
Há um ano, o Mário Quartin Graça, com o entusiasmo que lhe conhecemos, disse-me ser indispensável celebrar condignamente em Portugal os cento e cinquenta anos do nascimento de Miguel de Unamuno (1864-1936). Para tanto, preparou um cuidado programa, que envolveria um circuito pelos lugares portugueses que o Mestre de Salamanca tão bem conheceu e amou, além de uma peregrinação a Salamanca, com visita aos lugares emblemáticos da vida do admirado e multifacetado polígrafo. Quando compreendeu que doença não lhe permitiria concretizar esse seu projeto, enviou-me uma serena e incisiva missiva, dizendo-me que, com muita pena sua, não poderia levar a cabo a ideia que concebera e que se propusera concretizar. Respondi-lhe de imediato, que o Centro Nacional de Cultura continuaria a trabalhar no sentido do que nos propusera, com o sinal claro de que todos o queríamos recuperado. Entretanto, perdemos fisicamente o Mário, mas não as suas boas ideias e o seu sonho, e por isso avançámos, graças à generosidade de Pedro Roseta, para a celebração do aniversário do escritor inolvidável de «Por Terras de Portugal e de Espanha», seguindo o mais fielmente que foi possível o que o nosso querido amigo nos tinha proposto. É evidente, que, como todos sabemos, há realmente pessoas insubstituíveis, mas também conhecemos o que ele pensava sobre a importância da memória, e sobre a necessidade de não deixarmos quebrar o fio que nos une a quem nos antecedeu e para quem temos o dever de preservar o melhor do que nos foi legado.

INTÉRPRETE DA NOSSA CULTURA
Miguel de Unamuno foi um dos mais importantes intérpretes da cultura portuguesa, com a excecional qualidade de nos ver de fora, sem devaneios ou simplificações. Também sem paternalismos nem suspeitas, cedo percebeu as especificidades do ocidente peninsular, sem esquecer a força das nossas fortes complementaridades. Se Ortega amava Portugal, até pela proximidade da sua Espanha materna, o certo é que a distância relativamente ao «sentimento trágico da vida» e o seu pendor «vitalista» levaram-no a não se debruçar especialmente sobre o que distinguia os nossos povos, à parte a oposição entre a continentalidade hispânica, bem simbolizada em Quixote, e a presença heterogénea da grande frente marítima de Portugal. Unamuno foi mais adiante, mesmo que tenha sido imediatamente influenciado pela tragédia do seu amigo Manuel Laranjeira, que generalizou. De qualquer modo, a síntese entre a melancolia lírica e a história trágico-marítima foi para o pensador de Salamanca um terreno propício para o desenvolvimento do seu pensamento centrado na contradição entre os sentimentos de esperança e de desespero, bem patenteados na alegria e na tragédia dos poveiros, bem como na diferença entre as representações de Cristo de um lado e de outro das nossas fronteiras, como Guerra Junqueiro lhe assinalou um dia. Usando a expressão de Maria Zambrano, que procurou em Unamuno e Ortega, apesar das oposições, a força da sua inspiração, há, no fundo, que compreender a metáfora do coração: «que ao oferecer-se não é para sair de si mesmo, mas para fazer adentrar-se nele o que vagueia fora. Interioridade aberta; passividade ativa». Foi, afinal, essa «metáfora do coração», assim mesmo sintetizada, que Unamuno procurou entender em Portugal e nos portugueses…

A RELAÇÃO COM ANTERO
Antero de Quental foi o poeta português de quem, de facto, Unamuno mais esteve próximo, porque foram ambos das almas mais atormentadas pela sede de infinito e pela interrogação da eternidade. Sentimos nos dois o que encontramos na «agonia do cristianismo», que caracterizará a força e a perenidade do pensamento inovador do salmantino. E o poeta espanhol reconhece que há sonetos anterianos que viverão enquanto viver a memória das gentes, «porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas dos homens atormentados pelo olhar da esfinge». Recordamos a fotografia de Miguel de Unamuno no seu gabinete de trabalho, com a inconfundível barba branca, rodeado de livros, publicações e apontamentos. Lá está a fileira de retratos dos seis portugueses que mais admirou, e que considera não só como símbolos da terra e das gentes de Portugal, mas também como referências do seu tempo – Herculano, Oliveira Martins, João de Deus, Antero, Camilo e Soares dos Reis. Herculano (que falou de um plácido sepulcro rodeado de esperança) partiu para Vale de Lobos. Oliveira Martins escreveu com nervo libertador o epitáfio nacional. João de Deus procurou na lírica o sentimento popular. Antero simbolizou a tragédia como emancipação. Camilo descreveu o país contraditório. Soares dos Reis ilustrou no desterrado a incompreensão do desejo. E interrogamo-nos sobre o mistério de Unamuno considerar Portugal como país de suicidas, talvez espelho do drama espanhol dos anos anteriores e seguintes. «Para Portugal, o sol não nasce nunca: morre sempre no mar, que foi teatro das suas façanhas e cunha e sepulcro das suas glórias». Portugal, se é poente, vive num condomínio, que Eduardo Lourenço considera como ponto de encontro entre as notas amorosa e elegíaca – pátria de amores tristes e de grandes naufrágios…

RELER OS NOSSOS MITOS
O ensaísta de «O Labirinto da Saudade», porque pertence à mesma linhagem de Antero e se aproxima da angústia de Unamuno, valoriza a ligação da melancolia e do sentimentalismo, mas não os considera constrangimentos. Antes interroga os mitos como sinais emancipadores, sob o aguilhão da crítica (como Vieira releu Bandarra). Antero, Unamuno e Lourenço interrogam a sede de infinito, e o peso trágico da sua limitação vital. E esse sentimento, que os dois ensaístas encontram na poesia de Antero, torna-se para o Professor de Salamanca sentimento trágico e para o ensaísta português crítica emancipadora. Por isso, Eduardo Lourenço recusa o apodo de suicida, para se dizer europeu desiludido, incapaz de se considerar vencido, porque antes crente na força plural da Europa e na compreensão da razão, como animadora de uma vontade crítica, capaz de compreender os limites nos diversos horizontes. Em razão desse ano trágico de 1908 (o do regicídio), em que escreve, Unamuno impressionou-se com o desalento português: «Este é um povo, não só sentimental, mas apaixonado, ou, melhor dito, mais apaixonado que sentimental. A paixão trá-lo à vida, e a mesma paixão, consumido o impulso, leva-o à morte»… Não podemos, porém, ficar, nesse momento estático. Como disse Vitorino Nemésio ao Mestre (em carta publicada por Ángel Marcos de Dios): «Dos grandes intelectuais espanhóis é Unamuno o único de quem nos podemos acercar sem receio de que nos olhe de lado e por favor. Consigo é possível, sem risco da nossa individualidade de povo, trocar ansiedades sobre o futuro e pactuar uma ação redentora» (14.5.29). E é à crença nessa ação redentora centrada no conhecimento e na confiança que Unamuno apela em nome do melhor da força crítica. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

"OLHAR E VER"

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1. A INSTABILIDADE DO MUNDO

Vamos recebendo - pelo correio electrónico, pela rádio e televisão, por jornais e revistas, ou simplesmente em conversas de café ou de salão - clamores e ecos crescentes de um sentimento a generalizar-se: este mundo em que vivemos, designadamente a civilização ocidental, está sob a ameaça terrorista e potencialmente aniquiladora do Islão... Susto tanto maior quanto os terríveis muçulmanos não vivem apenas na margem sul do Mediterrâneo, mas um pouco por todo esse mundo, e até encontramos inúmeras e grandes comunidades islâmicas insidiosamente instaladas em importantes nações ocidentais e cristãs, como os EUA, o Reino Unido, a Alemanha ou a França. O nosso imaginário, passou do medo e aversão ao império soviético, à islamofobia, insistentemente representada de modo quase tão fantástico como o do antigo perigo amarelo... (Parece-me, aliás, curioso observar que a primeira aventura de Blake e Mortimer, heróis britânicos criados pelo belga Edgar P. Jacobs, publicada em 1946 e intitulada Le Secret de l´Espadon - e que versava, precisamente, esse tema do perigo amarelo, oculto e logo agressor - terá, com assinatura de Sante e Julliard, uma história que irá antecedê-la : Le Bâton de Plutarque, a publicar neste final de 2014, e que começa pela execução de dois alpinistas britânicos no Himalaia, surpreendidos por forças de uma esconsa potência terrorista...) Ora, o medo é mau conselheiro, basta pensar nos animais que se tornam defensivamente mais agressivos quando percebem que os receamos. E, ainda menino e moço, aprendi nas aulas de moral e religião que a prudência e a caridade nos ensinam a não fazer juízos temerários. Estes resultam, em regra, da extensão ou generalização a um grupo mais alargado de pessoas, ou a diversas categorias seja do que for, de apreciações feitas sobre outro, mesmo que eventualmente análogo ou próximo. Ou pode o processo ser dedutivo, isto é, julgarmos alguém só pela sua pertença a uma classe, uma corrente de opinião, uma religião, etc. Quando o papa Francisco - espírito ecuménico e compassivo - alerta para a iminência de uma guerra mundial, não creio que se refira exclusivamente ao autoproclamado Estado Islâmico, nem tão só à ameaça de uma djiad , palavra que  aliás não tem na espiritualidade muçulmana o sentido restrito e bélico de guerra santa, que exaltados extremistas lhe atribuem e nós vamos aceitando. O Papa sabe bem que vivemos presentemente num mundo desorganizado e muito instável, resultante de erros e pecados múltiplos, os quais humani sunt... A história da humanidade não é linear - no sentido de aperfeiçoamento crescente e sem retrocessos - antes sempre tem sido marcada por convulsões, tempestades e bonanças... Diferenças, discórdias, fricções, oposições e conflitos têm-se verificado, por razões sem fim e até por nenhuma, nos vários escalões e modos da grande sociedade humana : famílias, tribos, na ordem nacional e internacional, na esfera religiosa, e, dos grandes impérios antigos à União Europeia, da Pax Romana à Guerra Fria, alternaram períodos de divisão e desordem com tempos  de paz ou de autoritarismo e hegemonia. Nem todas as guerras, civis, internacionais ou religiosas, se pareceram, nem tampouco os variados modelos de organização da ordem interna ou internacional. No tempo hodierno, com o progresso das transmissões a semear ubiquidade, deparamos com um fenómeno a que chamam globalização, para a qual não estamos ainda preparados, e muito menos organizados. Curioso exemplo do que afirmo: creio que faz sentido falar-se em terceira guerra mundial, não porque o mesmo conflito bélico envolva conjuntamente a maioria ou sequer um número elevadíssimo de nações, mas porque, mesmo no refúgio dos descansados, a toda a hora temos notícia dos inúmeros conflitos, actuais e latentes, que hoje vão cobrindo o nosso mundo. Os motivos desses múltiplos afrontamentos bélicos são sempre  - ainda que não só  -  de ordem económica. Esta surge em todos, mesmo nas ainda dormentes disputas sobre ilhas, rochedos e zonas marítimas que, no extremo asiático opõem Rússia, China, Japão, Coreia do Sul, Filipinas e outros países do sudeste, ou nas guerras intestinas da Colômbia, como ainda no médio oriente islâmico (Síria, Iraque, Líbia), no africano Sudão ou na própria Ucrânia. Podem revestir-se de justificações ou exaltações religiosas, como se verifica no norte de África, no médio oriente, em países subsaarianos ou na península hindustânica. Todos têm representações e fundamentações de ordem política, e aqui quero lembrar também o aparecimento mais claro de movimentos separatistas, relativamente pacíficos, como na Escócia, na Catalunha, no País Basco, na Flandres, na Lombardia... Todos estes problemas devem ser equacionados por uma perspectiva política, económica e religiosa, quer na ordem nacional ,como regional e internacional.

Começando, ainda que brevemente, pelas religiões, creio que tem sido - muitas vezes, em Portugal, p. ex., não por culpa só do José Saramago, mas também  de "autoridades" ou cronistas católicos - atribuída às religiões a culpa ou motivação de guerras... Não sei quem terá mais responsabilidade por tal teoria : se, p. ex., o Saramago que, enquanto marxista que era, talvez pudesse perceber consigo até que ponto a religião será mais um epifenómeno do que um motor da história ; ou se os outros, sempre dispostos a apontar o dedo à religião dos "infiéis"... esquecendo-se de que a sua própria foi invocada para pregação de cruzadas contra árabes, em que os tais guerreiros de Cristo dizimaram, afinal, mais irmãos cristãos da Igreja oriental, nos Balcãs e mesmo em Constantinopla. Para não falar do cisma de Avignon, que, na Península Ibérica, em nome de duas cristandades e dois papas, deu cobertura religiosa aos inimigos castelhanos e portugueses, nem na rivalidade de Carlos V e Francisco I e nas guerras de protestantes com católicos que terminaram com o acordo de princípio ejus religio cujus regio. Não penso, não quero pensar  -  como já alhures tenho proclamado  -  que qualquer religião possa, de por si, ser causa de luta contra outros homens, pois que a jihad do judeu ou do cristão, submissos à vontade de Deus, como o muçulmano, é o combate pela misericórdia. O problema reside no aproveitamento que os poderes temporais, inclusive aqueles em que tantas instituições "religiosas" se confundem, vão buscar o deus que julgam pertencer-lhes, para o atirar contra os outros, seja a título de agressão ou de vitimização. Compreendo bem o desgosto de milhões de muçulmanos quando se insiste para que, depois de já o terem feito, condenem interminavelmente os actos terroristas que se reclamam do islamismo, como se eles nisso tivessem mais culpa do que nós... Esquecemo-nos, vezes demais, quanto da tolerância cristã actual - de que muitas organizações, até católicas, são adversárias - deve ao Iluminismo, por nos ter feito repensar a nossa fé. O diálogo inter-religioso que os papas com mais experiência pastoral mais motivaram (João Paulo II e Francisco) é um encontro fraterno  que deve ser acarinhado por todos e promovido. As questões económicas são necessariamente sociais e, portanto, políticas. Claro que a economia pode ser entendida apenas ou sobretudo como técnica, isto é, como a procura dos métodos mais eficazes para produção de mais riqueza, e, enquanto tal, existir até numa ilha deserta, como Robinson Crusoë. Mas enquanto teimarmos em reduzir o objectivo do pensamento e da actividade económica à eficácia óptima da criação de riqueza, antepondo-a à justiça da solidariedade social, estaremos a gerar condições para que muitos se sintam afastados da comida que está na mesa devida a todos. Do "taylorismo" e "stakanovismo" a todas as outras teorias e práticas de maior produtividade, fomos fazendo adeptos e desenganados : a acumulação do capital contra a melhoria da remuneração do trabalho, ou da riqueza de poucos sobre a pobreza de muitos, no falhanço da distribuição social dos bens por todos produzidos  -  e por cada um em função dos seus próprios dons e maiores ou menores aptidões  -  têm levado a sentimentos de injustiça sofrida que os teóricos do capitalismo liberal teimam em não perceber. Imaginem um exemplo, como parábola : Bubacar é muçulmano da etnia fula, natural da Guiné, seu pai serviu lealmente a causa portuguesa ;  vive em Bafatá, no seio de uma comunidade solidária e amiga, respeita os ensinamentos de Maomé e as práticas religiosas do islão; é letrado, capaz, a situação do seu país  - que os portugueses cegamente abandonaram - empurra-o a buscar melhor destino na Europa. Corre os riscos da migração, enfrenta a incerteza, não arranja trabalho adequado em Portugal, parte para França, tem o azar de se sentir ostracizado por ser africano e muçulmano, o emprego que lhe dão é penoso e mal pago. Se desesperar, será presa fácil das promessas de vindicta de qualquer bando terrorista... Mas para que tal se verifique, ele nem tem de ser africano, nem muçulmano: investigações conduzidas por forças de segurança especializadas já descobriram que numerosos "jidaístas" são jovens que não provêm do mundo islâmico, mas são de origem étnica, cultural e religiosa geralmente identificável com a Europa. Com cursos superiores, são simplesmente misfits, desadaptados que se perdem no desespero. Como aquele jovem norueguês, dito de extrema direita, que foi bombista e a tiro matou dezenas de rapazes e raparigas num campo de férias da juventude socialista ; ou, ainda, além dos loucos, como aqueles que, de vez em quando metralham escolas e supermercados, nos EUA e não só... Ou o facto estatístico de 46% dos estudantes universitários portugueses já pensarem que terão de ir trabalhar e viver lá para fora... Ou ainda, as massas brasileiras que contestaram a realização, no seu país, da "copa do mundo"... para não esquecermos os milhões de muçulmanos de várias etnias e nacionalidades, mas maioritariamente jovens, que alimentaram esse fenómeno  -  que só os telemóveis e as redes de comunicação electrónica tornaram possível  --  a que se chamou, abusivamente, "primavera árabe"...  O dinheiro tornado princípio e fim de tudo, o materialismo consumista, o progressivo esquecimento de uma cultura humanista, a indiferença oposta à pobreza são hoje pilares de um sistema sócio-económico gerador de injustiça e exclusão social. O imediatismo com que a aflitiva falta de conhecimento dos homens e da história - e suas culturas - mais a ausência de virtudes morais dos "nossos" políticos (?) trata de tudo, porque só aprendeu a olhar para o lucro do crescimento económico a curto prazo (que, aliás, nem sempre correctamente entende), é simplesmente o marketing irresponsável (até no sentido jurídico-político) de uma feira de votos... Na hora em que escrevo estas linhas, já se desencadeou o ataque da "coligação" contra o "Estado Islâmico": a meu ver, chegados ao ponto em que ele surgiu e violentou, violou e matou populações inteiras (cristãs e outras, mas talvez maioritariamente muçulmanas) não haveria agora alternativa de solução possível (também sabemos quanto deixámos chegar o Adolfo Hitler ao que chegou...). Mas porque se invadiu o Iraque? e depois nos retirámos? porque consentimos e fomentámos independências, regimes e ditaduras que, mais tarde, abandonámos ou procurámos abater? E que terão a ver com tudo isso obscuras potências financeiras (algumas, como Janus, surgem-nos com uma face limpa) e bandos muitos, de mafiosos vários, que contrabandeiam petróleo, dinheiro, armas, pelas fronteiras sinuosas dos conflitos? 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Nikias Skapinakis e Os Quatro Críticos (José-Augusto França, Fernando Pernes, Francisco Bronze, Rui Mário Gonçalves)

Nikias Skapinakis e Os Quatro Críticos
(José-Augusto França, Fernando Pernes, Francisco Bronze, Rui Mário Gonçalves)

 

Nikias Skapinakis (1931) começou por estudar Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Insatisfeito acabou por desistir. Começou então a pintar a partir de final dos anos quarenta. Durante o período que foi desde de 1948 até 1955, marca presença nas Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAP), que eram importantes para si porque representavam a oposição à política do Estado Novo e determinavam o neo-realismo como tendência a seguir. Por estes anos, Nikias associou às preocupações realistas um tratamento expressionista melancólico – a sua percepção do mundo cruzava as paisagens que pintava. Para Nikias não bastavam as preocupações de índole social. Por isso colocou-se um pouco à margem, durante o período em que a arte portuguesa se dividiu entre abstractos e figurativos. O imaginário tinha de cruzar o real e por isso buscava interesse nas ruas desertas, introduzindo figuras, ainda que raras, destorcidas, solitárias e imóveis. Nikias parecia estranhar o mundo pelo desolamento, pelo fechamento, pelas ausências. Estes trabalhos fazem lembrar as cidades de Dominguez Alvarez (1906-1942), também desoladas descritas com geometrias elementares e sintetismos de cor, de tonalidades cinza e térrea.

A necessidade de apreensão do real levou Nikias também a trabalhar o retrato, cuja modernidade mais ortodoxa tinha posto de lado (em oposição a esta ortodoxia Nikias chega mesmo a fazer a apologia do artista tradicional). Nikias acredita na ideia de que a pintura não depende exclusivamente dos esforços individuais dos artistas. Para Nikias a pintura começa assim que existem condições de unidade entre o público e povo e os artistas e só fazendo sentido se for feita por todos. (Rodrigues, 2006)

‘Os Quatro Críticos’ fazem parte da série Para o Estudo da Melancolia em Portugal e pela primeira vez Nikias Skapinakis utilizou uma linguagem que faz lembrar os cartazes de publicidade, numa tentativa de se aproximar do universo pop e de uma determinada eficácia imagética. Usa diversas camadas de tinta para obter a superfície polida simulando o resultado de um cartaz impresso. A pintura é assim entendida como um plano bidimensional. As cores são lisas, o fundo é de uma só cor, os corpos deixam de estar modelados por sombras ou variações tonais, a linha é resumida, limita e recorta as formas para as distinguir do fundo. As figuras/ silhuetas são planas e sem profundidade, reprimidas – lembram as ausências/presenças das silhuetas de Lourdes de Castro. São figuras quase sem vida, distantes numa imobilidade gelada.

A obra ‘Os Quatro Críticos’ faz parte de um ciclo sociológico. Ele retrata quatro importantes figuras masculinas, no panorama da historiografia e da crítica da arte portuguesa. Nikias atribuiu-lhes um valor icónico. Os corpos são pretos, espalmados, as folhas estão vazias, os olhares desatentos, o tédio descreve este desencontro que faz parte da exposição permanente do café A Brasileira.

O conjunto de obras de arte deste café foi actualizado em 1971 com onze novos quadros de artistas: António Palolo, Carlos Calvet, Eduardo Nery, Fernando Azevedo, Hogan, João Vieira, Joaquim Rodrigo, Manuel Baptista, Nikias Skapinakis, Noronha da Costa, e Vespeira.

Os onze novos quadros são escolhidos, a partir de uma selecção inicial de quinze artistas, por um júri formado por quatro membros da secção portuguesa da AICA (Association Internationale des Critiques d'Art): o próprio Rui Mário Gonçalves, Francisco Bronze, Fernando Pernes e José-Augusto França. Estão todos reunidos à mesa d' A Brasileira, na obra que Nikias compõe para o café, numa cena cuja composição evoca a que Almada pinta nos anos 20 para o mesmo espaço.

O quadro de Almada era Auto-retrato num grupo à mesa do café.

Ao representar a figura do crítico, Nikias acentua a importância do seu papel no final dos anos sessenta. O crítico passa a ser muito importante para que os objectos autenticados pelos artistas possam ter valor – porque o artista já não é detentor de uma técnica e de um talento únicos, trabalha a partir do vulgar, do banal. A crítica já não faz sentido a posteriori – o crítico é um fruidor primeiro e privilegiado que oferece ao público o modelo de uma fruição eficaz, mas também é redactor de um discurso que faz parte integrante da operação estética (Argan, 1992). Nikias despersonaliza os quatro críticos ao integrá-los na sua obra, porque o crítico já não julga como sendo uma autoridade superior mas julga a partir de dentro do processo da arte, a partir do mesmo plano do artista e do homem comum.

 

Ana Ruepp 

 

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