Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Podemos dizer que o teatro português inicia a sua modernização com Garrett? De certo modo, sim: porque o romantismo nasce com ele, prolonga-se por um excesso ultrarromântico ao longo do seculo XIX e só atinge as portas do realismo duro e puro com “Os Velhos” de D. João da Câmara, em 1893… muito embora: a genialidade de Garrett faz adivinhar, em certas peças e em certas cenas e ainda na copiosa análise e teorização estético-dramática que produziu, os novos caminhos do teatro português.
E mais ainda: Garrett assume uma posição transversal na arte global do teatro. Foi o grande dramaturgo que se conhece, e foi-o desde a juventude. Mas foi também, na solicitação que lhe é feita, em 1836, por Passos Manoel, o verdadeiro inovador (modernizador?) da estrutura teatral portuguesa, através da reforma que elaborou e que abrange com um extraordinário sentido de modernidade, a estrutura compósita e complexa da arte do teatro, nas suas componentes: o ensino, o espetáculo, a formação de atores, o estímulo à produção dramatúrgica, a criação de espaços/edifícios e até a intervenção do Estado – e tudo isto, repita-se, em 1836, e numa globalidade que em rigor dura até hoje.
E senão, vejamos rapidamente o que integra a reforma estrutural de Garrett consubstanciada em três diplomas legais:
Portaria de 28 de Setembro de 1836 – encarrega Garrett de apresentar “um plano para a fundação e organização de um teatro nacional”;
Relatório datado de 12 de Novembro de 1836, assinado por Garrett;
E finalmente, Portaria de 15 de Novembro de 1836, assinada por D. Maria II e referendada por Passos Manoel, criando as bases da reforma do teatro português na sua globalidade: Inspeção Geral de Teatros e Espetáculos Teatrais, Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional, Criação do Conservatório Geral de Arte Dramática, Criação de uma Companhia Nacional Concursos do Conservatório, Proteção dos Direitos Autorais, Politica de Subsídios.
Tudo isto foi concebido e redigido por Garrett, que aliás não se poupa a autoelogios. E realmente, todas estas instituições com as óbvias modernizações e alterações duram até hoje!
E mais: ao rever a dramaturgia de Garrett, e não necessitamos de nos concentrar apenas no 2º ato de Frei Luís de Sousa, encontra-se uma modernidade que a faz antecipar décadas e estéticas e até pragmáticas teatrais.
Ora bem: será interessante lembrar que Garrett foi ator e encenador, passe a carga modernista deste último termo. E desde muito cedo. Assim em 1819, vemo-lo em Coimbra, escolar de Leis como então se dizia, a dirigir ensaios da sua primeira peça completa, “ Mérope”, ainda marcada por um estilo clássico anterior à renovação romântica. Não foi representada na altura, mas Garrett por essa época já se lançava numa primeira versão de “Amor e Pátria”, que viria a dar a “D. Filipa de Vilhena”.
Em 1821 intervém como ator no ”Catão”, levado à cena no Teatro do Bairro Alto. E surge também no elenco do “Imprompeto de Sintra”, peça representada em 8 de Abril de 1822 “na Quinta do Cabeço em Sintra”. E entretanto, em Coimbra, são referenciadas intervenções suas, declamando versos ou interpretando pequenos papéis em récitas.
E refere-se agora o garrettiano “ Auto de Gil Vicente”: Teófilo Braga escreveu que “o próprio autor teve de ensaiar no Teatro do Salitre, vencendo a rudez dos atores, foi apresentado em 15 de Agosto de 1838, quando estava mais acesa a luta da reação de carlistas contra setembristas; a impressão do público foi de deslumbramento”.
E mais acrescenta Teófilo: “No Teatro da Quinta do Pinheiro, junto a Sete Rios, pertencente a Duarte de Sá, fez-se em 4 de Julho de 1843 a memorável primeira representação de ”Frei Luís de Sousa”; aí brilhou com o seu extraordinário talento D. Emília Krus, desempenhando o papel de D. Madalena de Vilhena; o próprio Garrett sujeitou-se a representar o personagem do escudeiro velho Telmo Pais. A esta representação assistiu Alexandre Herculano e chorou”. (cfr. Teófilo Braga e também Gomes de Amorim “Garrett- Memórias Biográficas” 1881-1884)
Mas é Teófilo quem o diz! E mais acrescenta que o “Frei Luís de Sousa” só em 1850 seria representado no Teatro D. Maria II. (cfr. Teófilo Braga “Dois Monumentos”).
Hernâni Cidade analisa detalhadamente o teatro de Garrett. E sobre o ”Frei Luís de Sousa” considera que o mais relevante “é a introdução, entre os elementos constitutivos da peça, daquela figura de Telmo, com a sua fé sebastianista, que é a do povo contemporâneo” fazendo um paralelismo entre “ a crença no regresso de D. Sebastião (e) a crença no regresso de D. João de Portugal” (in ”Seculo XIX – A Revolução Cultural em Portugal e Alguns dos seus Mestres” 1985 págs. 27). De notar que a peça foi escrita por Garrett retido em casa devido a uma “forte canelada”, tal como refere o amigo Gomes de Amorim, que gaba o acidente!... (in “Garrett- Memórias Biográficas – vol III pág. 67).
Vasco Graça Moura relaciona a modernidade do “Frei Luis de Sousa” com a “interrogação do próprio destino nacional” que surgirá designadamente em Oliveira Martins, em Pessoa e em Eduardo Lourenço, expressamente citados (in “Colóquios tão simples, desfigurações ”na revista Camões - Janeiro/Março 1999 pág. 62).
E finalmente: Annabela Rita, num estudo muito recente, estabelece uma correlação entre obras e figuras referenciais na história e na literatura: “D. Madalena e Maria, cada uma debruçada sobre a sua dupla, em que parecem literalmente geradas: a Inês de Castro camoniana e a Menina e Moça (1554) de Bernardim Ribeiro, respetivamente”… (cfr. “Luz e Sombras do Cânone Literário” 2014 pág. 188).
Veremos a partir daqui, os atores e encenadores que surgem na transição dos séculos XIX/XX.
Publicou-se no ano que finda novo volume da Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós - «A Correspondência de Fradique Mendes (Memórias e Notas)» (INCM, 2014), com edição de Carlos Reis (coordenador), Irene Fialho e Maria João Simões. É um dos documentos mais interessantes do naturalismo português…
Bernardo Marques
DESCOBRIR A INTIMIDADE DE FRADIQUE
«A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa, - justamente na semana em que ele regressara da sua viagem à África Austral…». Todos conhecemos, quase de cor, este início da mais célebre correspondência literária da nossa cultura. Lembramo-nos ainda que «Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rica família dos Açores; e descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes, filho segundo da casa de Troba e donatário duma das primeiras capitanias criadas nas Ilhas por começos do século XVI. Seu pai, um homem magnificamente belo, mas de gostos rudes, morrera (quando Carlos gatinhava), dum desastre, na caça. Seis anos depois sua mãe, senhora tão airosa, pensativa e loura, que merecia dum poeta da Terceira o nome de Virgem de Ossian, morria também duma febre trazida dos campos, onde andara bucolicamente, num dia de sol forte, cantando e ceifando feno. Carlos ficou em companhia e sob tutela de sua avó materna, D. Angelina Fradique, velha estouvada, erudita e exótica, que colecionava aves empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente sofria dos “dardos de Amor”»… Eis as origens do homem de que falamos… Como sabemos, a Correspondência de Fradique Mendes não foi publicada em vida por Eça, tendo saído poucos meses depois da sua morte. Trata-se, porém, como «A Ilustre Casa de Ramires» e «A Cidade e as Serras», de uma obra semipóstuma, uma vez que a edição foi preparada e acompanhada substancialmente pelo seu autor. Como lembra a «nota prefacial», persiste uma sombra de dúvida sobre a eventual autoria plural da correspondência. Se é certo que a personagem de Carlos Fradique Mendes teve origem num pseudónimo geracional do grupo formado em torno de Antero, a verdade é que há as provas tipográficas emendadas por Eça de Queirós, no chamado «manuscrito Salema Garção», que liga, com grande verosimilhança as Cartas ao autor de «Os Maias». Fradique nasceu, de facto, por iniciativa coletiva no final de sessenta e ganhou amadurecimento graças a Eça. Foram, contudo, deixadas algumas epístolas inéditas por ocasião da publicação de 1900 – e (como diz Carlos Reis) «entre elas estão seguramente algumas das mais ilustrativas do pensamento de quem foi poeta e viajante, suposto autor de obra desconhecida e observador arguto dos homens e das coisas do seu tempo». Pode, aliás, dizer-se que, na linha de um notável trabalho nos outros volumes da edição crítica de Eça de Queirós, este é porventura dos mais interessantes, até porque obriga a uma criteriosa articulação com o contributo fundamental da geração de setenta na cultura portuguesa. Como se sabe, tudo começou com as publicações de 1888 em «O Repórter» e na «Gazeta de Notícias», do Rio de Janeiro, da apresentação e do epistolário em folhetins, continuando na «Revista de Portugal» (em 1889), com uma reapresentação da personagem e da obra que se destinaria ao grande público. Os autores da edição crítica enunciam os problemas que essas diversas versões suscitam – precedência de uns textos sobre outros, razão para a sua republicação na «Revista de Portugal» e verificação de que o romancista reescreveu a obra pelo menos quatro vezes… E concluímos encontrarmo-nos perante uma característica bem conhecida e admirada do autor de «Mandarim»: o extremo cuidado posto na escrita e a permanente tendência para o perfeccionismo… Tudo visto e ponderado, estamos perante uma das obras mais fascinantes da autoria de Eça de Queirós, até por conter uma complexa chave do pensamento maduro do autor, em especial na relação com a sua contemporaneidade, num momento extremamente complexo de dúvida e de desalento coletivos…
UMA MISTERIOSA HISTÓRIA
Carlos Fradique Mendes revela-se em primeiro lugar em 1869 como poeta satânico, num gesto de provocação, urdido por Eça, Antero e Batalha Reis. Joel Serrão escreveu sobre o tema o imprescindível «O Primeiro Fradique Mendes» (1985). Depois, Fradique assoma fugazmente em «O Mistério do Estado de Sintra», como bizarra figura («um excêntrico distinto»). No entanto, quem melhor conhecemos (e de quem se fala aqui) é a figura de meados dos anos oitenta, que nos aparece pela mão de Eça, que, no entanto, tem o cuidado de afastar qualquer pendor autobiográfico. O romancista já propusera a seu amigo Oliveira Martins, em 1885, publicar as cartas fradiquianas em «A Província», órgão da «Vida Nova», mas só três anos depois vai concretizar-se o projeto em «O Repórter», agora (1888) também dirigido pelo autor da «História da Civilização Ibérica». «Trata-se, como logo deduzes (E.Q. dirige-se a O.M.), de fazer para Fradique (não sei te lembras deste velho amigo) o que está na moda fazer para os grandes homens que morreram – publicar-lhe as cartas particulares» (23.5.1888). Fradique torna-se, assim, uma ambivalente personagem romanesca, de uma obra epistolar, antecedida de uma biografia explicativa e imaginosa. E Eça esclarece Oliveira Martins sobre essa construção: «A introdução a “Cartas” que “nunca foram escritas, por um homem que nunca existiu” não podia deixar de ser uma composição em que se tentasse dar a esse homem, primeiramente, realidade, corpo, movimento, vida. Não se pode decentemente publicar a Correspondência de uma abstração. De sorte que o tal estudo crítico é de facto uma novela – novela de feitio especial, didática, não dramática, mas enfim novela, com uma narração, episódios, uns curtos bocadinhos de diálogo, e até – paisagens!...» (Carta a Oliveira Martins, 12.6.1888). Mas quem é, afinal, Fradique? É um paradigma, entre o caricatural e o sério, das tendências cultas da época… Conheceu Baudelaire, foi companheiro de Garibaldi, amigo de Vítor Hugo, íntimo de Antero, Oliveira Martins, Junqueiro e de Ramalho… Em suma, Fradique não é um heterónimo, mas também vai além da pura personagem, como Carlos Eduardo, João da Ega ou Gonçalo Mendes Ramires. E é assim que o estudo crítico preliminar «é de facto uma novela – novela de feitio especial, didática, não dramática». Faz-se, no fundo, o retrato de um período de transição, que viria a revelar-se tenso e incerto. Se as cartas nunca foram escritas, por um homem que nunca existiu, o certo é que procuram olhar os sinais de um tempo que exigia o sentido crítico para superar a decadência. Carlos Mayer, lamentando como Oliveira Martins que a Fradique faltasse coordenação e convergência para um fim superior deu dele «um resumo sagaz e profundo»: «O cérebro de Fradique está admiravelmente construído e mobilado. Só lhe falta uma ideia que o alugue, para viver e governar lá dentro. Fradique é um génio com escritos»… Percebe-se que a figura, mesmo especial, seja um motivo crítico, um desafio, patente na carta sobre o Brasil a Eduardo Prado, publicada por Luís de Magalhães…
(Sem a numerar ainda - o que será feito na publicação final das dezenas de cartas do marquês de Sarolea que traduzi, e de que publiquei a maioria no blogue do Centro Nacional de Cultura - junto hoje mais uma ao acervo já conhecido):
Minha Princesa de mim:
Acordei cedíssimo, com essa angústia - a de não me sentir já capaz de acudir ao que devo - a magoar-me o peito. Abri a janela, anunciava-se ontem um dia cinzento e chuvoso para hoje, mas esta manhã vi o sol sorrir - e não é que é mais bonito esse sorriso quando rasga nuvens! - rezei e enchi-me de força. Falta-me humildade, bem sei, mas vou repetindo comigo "Tudo é graça!", até que talvez um dia finalmente entenda bem o que assim vou rezando. Na verdade, nunca fui capaz de rezar para pedir isto ou aquilo, não acredito que Deus seja sensível a "cunhas" e conceda, a uns, privilégios que recusa a multidões de outros, Deus não pode ser injusto. Apenas imploro o favor de entender, sobretudo nos momentos mais fracos da minha alma e vida, a graça silenciosa e invisível, essa que só a fé intui, a fé cuja substância é feita das coisas que devemos esperar... Coisas que não vemos ou não podemos entender. Talvez seja isso, essa força interior de procurar dizer o indizível, ou de continuar sempre em busca de entender o que quiçá não tenha, para já ou para logo, explicação ao alcance, que torna gémeos o artista e o cientista , e faça deles, consciente ou inconscientemente, seres religiosos. Porque a religião é, afinal, esse inquérito de uma vida, ao encontro do que acreditamos estar para além da ignorância, da perplexidade e da angústia. Queremos as coisas que devemos esperar, não por dever moral, muito menos jurídico, mas pela simples obrigação ontológica da nossa condição humana. A quaestio não é um mero exercício escolástico, só uma questão posta pela prática da racionalidade: questionar é procurar, é interrogar a noite e o silêncio, como ser perdido em busca de um caminho. Assim frei Tomás de Aquino é-me mais próximo pela contemplação como espera da visão, do que pelo discurso com vista à conclusão. Neste sentido, entro em comunhão com crentes de muitas religiões, com agnósticos, com ateus quiçá, com todos os que recusam a paixão dos nossos limites e por aí são amigos do mistério. Já te tenho dito que penso que há fé e fé. Tenho fé em Deus, nunca o vi, mas acredito que Ele se manifestou por Jesus Cristo, centro e motor do projecto de amor que deve construir cada um de nós e a história de todos. Não tenho outro modo de afrontar o absurdo. Mas essa fé não é uma evidência sensorial ou racional, antes se vive na prática do amor dos outros - o amor é, nesta vida, o modo permanente da fé - e na conversão contínua da dúvida em procura, e desta em esperança: fides est substantia sperandarum rerum. Talvez por assim pensar, eu me sinta tantas vezes mais solidário com aqueles que interrogam e buscam, do que com os que pretendem conhecer Deus com todas as suas contas, pesos e medidas. A gente abastada, segura da sua estabilidade material - como os que, sejam crentes ou ateus, estão tão só felizes consigo e suas ideias - dificilmente entrará no reino dos céus, no sentido de que dificilmente poderá sofrer como se interroga o desamparo, ou pensar como a esperança não é satisfação nem optimismo, mas é a resposta generosa que os pobres dão ao desespero... O desassossego é a condição de quem, nesta vida, como Paulo de Tarso, vê tudo como que refletido num espelho; ou, como frei Tomás de Aquino, depois de uma vida de trabalho intelectual incansável, percebe que "tudo o que escrevi é palha". Temos fé mas não vemos o objecto da nossa fé, por enquanto apenas entramos no reino do céu pelo amor dos outros. O Reino, minha Princesa de mim, não é deste mundo, na medida em que este mundo não exalta os humildes, nem sempre dá de comer a quem tem fome, nem gosta de sofrer prejuízo por amor da justiça. Mas o Reino começa já neste mundo, porque o Verbo se fez carne e habita entre nós, está bem vivo em cada humano gesto de fraternidade ou misericórdia, no coração de todos em cada vez que se faz ao mais pequenino aquilo que gostaríamos de fazer a Deus ou, melhor dizendo, que Deus gostaria que lhe fizéssemos. Não há espada nem decreto, guerra santa, apologética ou código canónico que o construa ou expanda. Só pelo amor mútuo, pela busca comprometida da justiça e da paz, se reconhecerá esse Império, que é o da vontade misericordiosa de Deus. Por outro lado, perdoa-me o desabafo, não consigo deixar de ver alienação religiosa na prática de certas devoções, designadamente as que se prendem a promessas feitas a santos ou a aparições. O milagre cristão, para mim, faz-se pela incarnação de Deus em Jesus Cristo, acontece e repete-se pelo processo de conversão dos homens ao amor dos outros, à construção da justiça e da paz, sinal do Reino. Aí habita a minha fé. Tudo o mais é acessório, e pode, em certos casos, ser alienante, sobretudo na medida em que se pensarsentir que este ou aquele acto de devoção ou promessa obterá ao oferente um favor especial, bonificação à margem da economia geral da salvação. Cheira-me sempre - Deus me perdoe - a crendice pagã e interesseira. É oposta à abertura mística que por não se submeter à instrumentalização da relação religiosa - seja esta qual for - é a atmosfera de respiração do cristianismo. O general marquês de Montholon, que esteve com Napoleão em Santa Helena, escreve em carta publicada em 1840: Enquanto homem, Napoleão era crente. Enquanto rei, julgava a religião uma necessidade, um poderoso meio para governar... Mas creio que foi um padre corso, chamado Virgili, a testemunhar que Napoleão lhe teria dito, sobre Jesus Cristo: Tudo nEle me espanta, ultrapassa-me o seu espírito, confunde-me a sua vontade. Entre Ele e seja o que for deste mundo não há termo possível de comparação! Dou-te a mão, Princesa, e digo : Há! Há o amor que nos alimenta a vida. Só esse traduz a fidelidade, porque só ele é deste mundo e do outro.
Alison e Peter Smithson e o tecido urbano carregado de sentido.
‘We are thinking of architecture’s capacity to charge the space around it with an energy which can join up with other energies, influence the nature of things that might come...‘, Peter Smithson, 1999
Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003) carregam os espaços vazios com sentido e com a densidade do pensamento, dando ao Homem a capacidade de aí desenvolver o seu intelecto, os seus talentos, os seus afectos e as suas sensibilidades. Através de esquemas desenhados transmitiam ideias de associação, uso, identidade, movimento e ordem. Concentraram o seu trabalho no tema do ‘espaço que fica entre’, falando do vazio que resulta entre os edifícios dispostos no território. Muitas vezes esquecido em termos de uso e ocupação, este espaço resulta simplesmente da disposição aleatória dos edifícios, não podendo ser considerado como vazio (no sentido positivo e generativo que Alison e Peter Smithson pretendem afirmar). Objectiva-se o vazio belo e ambíguo (possível de receber diversas interpretações) – o vazio como uma experiência sensível e essencial, que possibilita a criação, a expressão, um ritual e a simplificação – ‘the shock of nothing…’.
Alison e Peter Smithson com a produção de uma obra teórica especulativa (‘Urban Structuring: Studies of Alison and Peter Smithson’, 1967, ‘Without Retoric: An Architectural Aesthetic, 1955-72’) abriram a arquitectura às ciências sociais, à época do consumo e à arte. Os propósitos sociais afirmam-se através da supremacia da permissa ‘House, Street, District, City’ em detrimento de ‘Habiter, Travailler, Cultiver le Corps et L’Esprit, Circuler’. Em 1953, no CIAM de Aix-en-Provence os Smithsons revelam o conceito de ‘Streets in the sky’ – ‘Streets will be places… identifying man with his house and his street’ e pretendem também tornar a arquitectura particular a uma topografia, a um clima, a um lugar, a uma actividade e a uma pessoa. O consumo Pop torna-se forma no desenvolvimento do projecto da ‘House of the Future’, a casa modelo concretizada para a exposição ‘Daily Mail Ideal’, em 1956. E a abertura da arquitetura à arte acontece através do facto dos Smithsons serem co-fundadores do Independent Group (com Nigel Henderson e Eduardo Paolozzi) na ICA em Londres. Os Smithsons, ao colaborarem com o fotógrafo Nigel Henderson para a grelha CIAM 1952-53 e mostrando a vida comunitária de Bethnal Green, constituem pela primeira vez as noções de identidade e associação. Esta colaboração permitiu aos Smithson alicerçar ideias até 1965.
Para os Smithsons ‘os espaços que ficam entre’ deveriam promover conectividade, identidade e associação. A transformação do tecido urbano é pois urgente. Em 1953, na conferência CIAM, Alison e Peter Smithson atacaram as décadas do velho dogma da zonificação das cidades, proposto por Le Corbusier na Carta de Atenas – onde cada cidade é pensada de acordo com áreas especificas para habitar, trabalhar, circular e cultivar o corpo e o espírito. A cidade idealizada pelos Smithsons deveria sim combinar as diversas actividades numa mesma zona. E propunha habitação, não em altura, mas construída com ‘streets in the sky’, encorajando assim os residentes ao sentido de pertença e de vizinhança (‘Belonging' is a basic emotional need – its associations are of the simplest order. From 'belonging'- identity- comes the enriching sense of neighbourliness. The short narrow street of the slum succeeds where spacious redevelopment frequently fails.’, Team X)
Alison e Peter Smithson, como fundadores do Team X lideraram a última conferência dos CIAM, em 1956. Os Smithson receavam a criação de uma paisagem urbana hostil à harmonia social. Seduzidos pela obra ‘Architectural Principles in the Age of Humanism’, do historiador Rudolf Wittkower, os Smithson acreditam numa arte feita à escala do Homem e não a favor de uma preocupação transcendental de procura pela geometria pura, baseada nos valores absolutos da arquitectura sagrada. Interessa sim apreender e explicar como se processa um projecto de arquitectura à escala urbana e como abrir buracos na cidade. Os Smithsons trabalham a favor de uma sociedade meritocrática, isto é por um sistema de igual oportunidade, competitivo que privilegia a demonstração de talentos e de capacidades, onde a posição social e o poder político são muito pouco determinantes.
Ora, os Smithsons procuraram definir um espaço urbano cheio de expressão, porque em cada cidade existe por definição um padrão específico e um modelo de associação único para cada pessoa, para cada lugar e para cada tempo.
O que ultimamente se tem passado em Jerusalém é preocupante, mas sobretudo muito triste: as provocações e retaliações homicidas de judeus e palestinos muçulmanos relativas à ocupação ou utilização de lugares santos para eles - e para cristãos também - radicam não só no pretenso estatuto da cidade como capital do estado sionista de Israel ("Jerusalém completa e unificada é a capital de Israel" diz a lei do estado ocupante, ao arrepio de decisões das Nações Unidas) e na reivindicação palestiniana de que ela seja a capital do estado a que os palestinos têm direito, nem apenas na submersão do diálogo inter-religioso, nem na deterioração do convívio étnico. O caso tem raízes históricas, com pesadas responsabilidades de potências ocidentais, que não devem ser escamoteadas. Todos sabemos, por exemplo, que, para efeitos de enfraquecimento, pelo interior, do Império Otomano, seu inimigo na Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico fomentou levantamentos de súbditos (judeus e árabes) daquele, prometendo-lhes estados independentes. Tal como, durante séculos, durante e depois dos tempos bíblicos, houve quezílias, destruições e exílios, mas também períodos de entendimento mútuo e partilha (mesmo sob domínio otomano), estes sempre que o poder hegemónico foi permitindo e fomentando o convívio e a paz entre etnias, confissões religiosas, facções políticas... O povo, os povos, afinal, talvez prefiram a harmonia possível ao afrontamento brutal. Também na música, o concerto é um despique que se resolve nas consonâncias procuradas, e na final que se conseguir alcançar. Não vou agora repetir relatos do que hoje se passa, nem narrativas do que se passou. Há livros de história e reportagens jornalísticas que contam coisas, talvez demasiadas coisas, pois cada qual procura puxar a brasa à sardinha, poucos quiçá fazendo apelo ao universalmente humano desejo de coexistência na tranquilidade. Pensossinto que, se não se manipulassem multidões, aspirações e opiniões, talvez, terra a terra, a cidade dos homens pudesse ser de todos, por tanto, tão pouco ou tão muito, sentida por cada um como sua. Que assim não seja, ou tão difícil pareça poder sê-lo, resulta sobretudo de não haver prioridade da consulta aberta dos povos, que são muitos e partes legitimamente interessadas, sem interferência de títeres, que são poucos e partes ilegitimamente interesseiras. Os nossos sistemas políticos - ditaduras, sublevações, terrorismos ou democracias - sofrem desse mal endémico que é pretender, pela força do poder instalado ou revolucionário, ou pela matreirice do "marketing" eleitoral, impor vontades e destinos alheios ao que as gentes do dia a dia, feito de trabalho, família e comunidade, desejam. Os anseios dos povos são assim dados lançados no tabuleiro dos jogos do poder. Num jogo que mal disfarça a ganância financeira de uns, a soberba pretensiosa e dominadora de outros, o egoísmo totalitário de todos eles... Serei muito estúpido, mas não acredito na distribuição da riqueza pela ditadura marxista, nem pelo funcionamento dos mercados. Talvez ela fosse possível pelo funcionamento organizado de um ou do outro sistema, desde que sempre inspirado pelo sentido da partilha comunitária... Mas todos já sabemos que, por muito que essa beleza se apregoe, nunca assim aconteceu, e até pode piorar pelos tempos que correm. E também nos parece que, apesar de necessário e indispensável , o princípio ético da solidariedade e da justiça, não funcionará ao deus dará... Há certamente uma reforma das mentalidades que deve ser feita. Mas será possível fazê-la sem o adequado enquadramento institucional? Esta questão é quase como aquela de quem surgiu primeiro, se o ovo, se a galinha. Ser eminentemente social, o homem não muda em abstracto, e as instituições são a incarnação comunitária de ideias. Assim, por exemplo, esse conceito que se vai desenvolvendo, a partir das propostas de Michael Porter e Mark Kramer do lucro como criação de valor participado ( investimento em inovação e competividade a longo prazo, avaliação do impacto social e ambiental que deverá beneficiar da riqueza criada) não passará de uma aspiração enquanto não se lhe encontrarem práticas consignadas na lei que tutela a actividade empresarial. Tal como nunca se conseguirá uma reforma dos mercados financeiros, sem a terminação institucional das transacções bolsistas especulativas, que tanto têm viciado o valor das empresas e a correcta e transparente apreciação dos investimentos a fazer. E quanto mais forem nominativas as subscrições (em vez da distribuição vagabunda que facilita todas as manobras e reforça a manipulação de valores pelos grandes accionistas que, ainda por cima, detêm o poder de eleger os órgãos sociais e, por aí, influenciarem decisões e relatórios) tanto mais social será a empresa e responsável a participação beneficiária dos respectivos lucros. A economia privada tem vantagens indiscutíveis, pela responsabilização adveniente da propriedade, pela inovação fomentada pela concorrência. Por isso mesmo essa propriedade deve ser transparente e partilhada pela valorização democrática do capital e do trabalho; e deve a concorrência seguir regras de jogo limpo. Será que a questão fulcral do nosso destino global tenha hoje a ver mais com o vermo-nos nos espelhos dos outros , com raivas de ressentimentos ou com aspirações de emulação? Não só no interior de cada uma das nossas comunidades divididas por desigualdades, como ainda - e cada vez mais, por força dos media que nos mostram um mundo comum em desequilíbrio de direitos e benesses - na ordem internacional? Meditemos sobre os índices de satisfação (ditos de felicidade) das nossa "sociedades de afluência" e na curiosa comparação que Niall Ferguson faz entre a colonização da América do Norte e a da que se situa a sul do Rio Grande norte-americano. Professora na Sorbonne, Claudia Senik publicou agora (Paris, Seuil, outubro de 2014) L´Économie du Bonheur, que introduz assim: A modernidade democrática fez da felicidade uma ideia nova, um princípio constitucional, quase um dever. Desde que o indivíduo é reconhecido como figura central da sociedade, a sua felicidade torna-se objectivo supremo. Mas se a felicidade é a medida de qualquer escolha, importa encontrar-lhe uma métrica, mesmo aproximativa... ...Trata-se do nível de felicidade subjectiva, declarado pelos indivíduos em resposta a inquéritos feitos à população... ...O inquérito dos economistas concerne particularmente o papel da riqueza enquanto fundamento da felicidade. Dará o dinheiro a felicidade? O crescimento torna mesmo as pessoas mais felizes? Em caso contrário dever-se-á optar pelo decrescimento ou, pelo menos, medir o bem-estar para além do PIB? Poderiam então as políticas públicas utilizar a quantificação da felicidade como uma espécie de bússola? Este tipo de medida permite compreender porque é que os franceses sobrem de tanto "défice de felicidade", apesar de condições de vida objectivamente satisfatórias. Estamos aqui perante outro sinal dos tempos: em sociedades de abundância e consumo, onde o dinheiro parece ter-se tornado o único substituto dos valores que prezávamos - e medida de tudo, até mesmo do estatuto social e da consideração pessoal - eis que as pessoas se interrogam sobre o que é ser feliz... Bem sei que muitos se sentem infelizes por se pensarem discriminados relativamente aos que mais têm e usufruem, donde resulta ressentimento, inveja, sofrimento de injustiça. Ou, ainda, se sentem explorados, enganados e prejudicados por um sistema mercantil que os envolve de publicidade e promessas e os arrasta para o endividamento... Penso que uma das virtudes de maior justiça distributiva e frugalidade seria, precisamente, a de tornar uns menos soberbos, outros menos revoltados, e todos mais razoáveis e fraternos. Tal como Claudia Senik, gosto de recordar aquele discurso de Robert Kennedy, em 1968, quando era candidato às presidenciais norte-americanas e o mataram, como antes a seu irmão John: O PIB não reflete a saúde dos jnossos filhos, a qualidade da sua educação, nem o prazer das suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia, a força dos nossos casamentos, a inteligência do debate público, a probidade dos nossos funcionários. Não mede a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem a nossa devoção ao nosso país. De facto, mede tudo menos aquilo que faz com que valha a pena viver a vida, e diz-nos tudo sobre a América menos porque é que nos orgulhamos de ser americanos. A abrir o capítulo III do seu Civilisations, já nestas crónicas referido, o escocês Niall Ferguson, professor em Harvard e Oxford, interroga-se sobre as razões do maior êxito civilizacional da América colonizada pelos britânicos, em comparação com a América latina. Vou apenas traduzir aqui duas citações com que o autor sugere o seu pensamento. A primeira é de John Locke que, em 1669, na qualidade de secretário do conde de Shaftesbury, redigiu as Constituições fundamentais da Carolina (hoje dois estados dos EUA). Diz aquele filósofo: A liberdade define-se como a liberdade de cada um para regular e comandar a sua ideia, a sua pessoa, os seus actos, as suas posses, e tudo o que lhe pertence, no âmbito das leis a que está submetido; portanto, de não depender da vontade arbitrária de outrem... ...O fim principal e capital, em vista do qual os homens se associam em repúblicas e se submetem a governos é, portanto, a preservação da sua propriedade. Claríssimo: nascemos livres, e os pactos sociais são expressão da nossa livre vontade, a propriedade privada sendo garante dela. Mas nem a liberdade individual, nem a propriedade privada são um privilégio de alguns, antes são um bem comum a todos e que todos devem comumente preservar. A outra citação é de Simon Bolivar, o "libertador" da América espanhola do sul, no sec. XIX : Somos os vis descendentes desses predadores espanhóis que desembarcaram na América para a sangrarem até ao fim e se reproduzirem com as suas vítimas. Mais tarde, os rebentos ilegítimos dessas uniões uniram-se com os dos escravos importados de África. Surtos de tal mestiçagem racial e dotados de moral tão exemplar, como poderíamos permitirmo-nos colocar as leis acima dos chefes e os princípios acima dos homens? Sabendo embora como a consciência da mestiçagem pode por vezes determinar ressentimento no mestiço, não posso nem quero atribuir-lhe qualquer culpa de desacatos ou injustiças. Mas guardo, de Bolivar, o reconhecimento, também, de que as leis e os princípios devem sempre colocar-se acima dos homens e dos seus chefes. Os princípios do humanismo: liberdade, igualdade (na dignidade), fraternidade que, no cristianismo, dão pelo nome genérico de valor divino do humano. As leis que os reconheçam e proclamem, e garantam o seu respeito e aplicação. Outro dia falaremos de diferendos e progresso do direito positivo internacional. Por agora, deixo outra pergunta: será possível que a ONU se imponha ao respeito e as suas decisões sejam exequíveis, enquanto a sua própria organização, como muitas das suas regras de funcionamento, não respeitarem os princípios universais acima enunciados? Enquanto teimar ser uma Animal Farm do George Orwell: All animals are equal, but some animals are more equal than the others...?
Sentem-se confluências de preocupações em nós, mas sobretudo perplexidades insistentes e que nos obrigam à dedicação quase exclusiva de as descodificar. Nem todas serão algum tipo de saber sobre o qual nos devamos debruçar, contudo atentos ao devir, desconfiados ou desencantados pelas supostas virtudes de um hoje que navega de cabotagem, não raro somos operadores interpretativos de um bosque que se consubstancia híbrido dos nossos actos.
Este bosque tem pontos de mira onde a consistência não vacila na adequação do intelecto à realidade. Ainda assim, é visão, e, a cautela, é passível de evitar o exagero.
Assumimos uma perspectiva ecléctica no interpretar, mas não no resultado dessa interpretação, e afigura-se-nos que, independentemente de profissões de fé, o príncipe do cadeado de todos os tempos e das insofismáveis ligações com o que conhecemos, capacidade tem ele de se surpreender, sem caminhos redutores, ou mão, que sempre usámos em nós por sua generosidade, acendendo a nossa luz, precisamente por não termos fechado as anteriores.
Muitas vezes combatemos, o que não desejamos aceitar, através de aditamentos, como se assim se evitasse a doença do combate adiado, no combate protelado, como se a realidade não fosse outra e que pertencesse a que a cada um, sua doença, e desta razão bastante, se ocupe cada qual.
Assim e afinal as perplexidades a que nos referimos acima, nunca serão autopsiadas e as danças dos esqueletos indiferenciados vão gerando o termo da história que há muito começou.
Tornaram-se previsíveis ocorrências naturais tais como as de aderir a um modo de vida de termiteira. Esta a normalização da normalidade de cabotagem, arredados de pressentir que, até o que já é comum, não se tornou necessariamente num normal já normalizado.
Quem admitiria que dentro de si deuses nascidos sem amor se conformassem faustosamente a serem os senhores absolutos do jogo da vida que se joga?
E deste caos sobreviverão outros deuses que nos ajudarão a percepcionar o cerne do porquê das coisas? Será deles que nos chegará a última ideia de Deus, que não entende na morte a fractura?, ou a obstinação do seu silêncio é o amor celebrado fatalmente entre o trágico e o efémero?
Sentem-se confluências de preocupações em nós, mas sobretudo perplexidades insistentes e que nos obrigam à dedicação quase exclusiva de as descodificar, mas, descodificar para as entender e vencer salvando núcleos que por defeito de os reconhecer, os possamos ter afastado dos olhos do sentir.
E acrescento: ante a ideia da ausência de desejo de aceitar a parceria judiciosa da termiteira e um recolhimento ao não-ser, saibamos antes promover a transgressão, aquela que separa águas no esteio do pensamento que nasce a cada dia.
Atente-se ainda que o narcisismo dos homens convoca as influências que lhes convém numa espécie de presunção de um sentido que vale a pena. Está este homem impregnado da lógica do sistema que domina.
E de Kafka esta verdade:
Os leopardos invadiram o templo e beberam o vinho dos vasos sagrados. Esse incidente repetiu-se com frequência. Por fim, chegou-se a calcular, de antemão, a hora do aparecimento das feras. E a invasão dos leopardos foi incorporada ao ritual.
Quereremos servir de ponto útil ao que sem razão tem de ser?, ou desafiar o desafio e o tumulto do presente, sem o compartimentar à submissão do relógio,
Poderá falar-se já em encenadores, no teatro português do seculo XVIII? A expressão será prematura quanto a encenadores tal como hoje os entendemos: mas a profissionalização do espetáculo teatral a partir dos finais de 700, com forte incidência no inicio dos anos de 800, implica, isso sim, a existência de uma atividade de direção de cena e de espetáculo. E da mesma forma, e aí sem a menor duvida e com ampla documentação, ocorre a proliferação de atores e de autores.
Refiro aqui sobretudo o chamado teatro de cordel, expressão de um espetáculo popular que invadiu as ruas de Lisboa na época, com para cima de 1500 títulos, de que restam algo como 500 a 600 edições, de uma boa centena de autores: e a expressão deriva da venda ambulante dessas peças, tal como as identifica Nicolau Tolentino de Almeida na sátira “O Bilhar”.
“Todos os versos leu da Estátua Equestre/ E todos os formosos Entremezes/ Que no Arsenal ao vago caminhante/ Se vendem a cavalo num barbante”
Ou a nota que assinala a venda ao publico da “Comédia Nova intitulada A Amizade em Lance” editada por um tal António Gomes em 1794:
“Na mão de Romão José, cego, na esquina das rua dos Padres de São Domingos no Rossio, voltando para a Praça da Figueira, ou em sua casa”…
São pois dezenas de arores e centenas de peças. Mas o que aqui nos importa é assinalar que este movimento, em tudo preparatório da grande renovação romântica do teatro português impulsionada por Garrett, como veremos mais tarde, teve nestes dramaturgos, hoje mais ou menos esquecidos, e neste atores, um prenuncio extremamente significativo, da renovação cénica e do espetáculo em Portugal.
E sobretudo porque o movimento se e assim se pode chamar, coexiste com a exigência literária – e não tanto cénica, note-se bem – do chamado Teatro da Arcádia Lusitana ou Olissiponense, fundada em 1756 e prolongada até ao seculo XIX através da Nova Arcádia: mas o movimento marca muito mais pela analise teórica, expressa em numerosíssimos “prólogos “ “ discursos” e dissertações sobre a arte do teatro. E afinal, a produção, que varia entre as duas peças de Correia Garção, as de Domingos dos Reis Quita, ou as largas dezenas de Manuel de Figueiredo, entre outros, debatidas em colóquios pelo Árcades “identificados” por pseudónimos latinos, ficam quase sempre aquém de uma verdadeira expressão de espetáculo que o teatro deve necessariamente conter. E alguns como que fazem a transição : assim, José Manuel Rodrigues da Costa, em cerca de 15 peças, de certo modo partilha a exigência da Arcádia com a popularidade do cordel.
Importa ainda referir que esta expressão teatral mais literária do que cénica tem um único precedente de qualidade e relevo, António José da Silva –o Judeu, cujas tragédias de forte expressão barroca, escritas na primeira metade do seculo XVIII, ficam aquém, numa visão contemporânea do teatro espetáculo, da comédia dramática – as ainda hoje notáveis “Guerras do Alecrim e Mangerona” (1737)… Veja-se este diálogo:
“D. Fuas – Aonde vás, tirana? Procuras acaso o teu amante? Oh, murcha seja a tua manjerona. Que como planta venenosa me tem morto./ D. Nise – Homem do demónio ou quem quer que és, que em negra hora te vi e amei, que desconfianças são essas? Que amante é esse, que quem me andas aqui apurando a paciência, e sem quê, nem para quê, descompondo aminha mangerona?/ D. Fuas – Pois quem era aquele que saiu da caixa a dizer-te mil colóquios? / D. Nise – Que sei eu quem era? Salvo fosse…Mas retira-te que aí vem gente”.
E a comédia de costumes segue nesta ambiguidade de posições e confrontações. Em qualquer caso, o que quero agora referir é que o teatro de cordel marca a afirmação profissional da arte do espetáculo, através de centenas de atrizes e atores que ao longo sobretudo da segunda metade do seculo XVIII “preparam” a profissionalização e a formação académica que em 1836 Garrett e Paços Manoel consagram na reforma do teatro português. E alguns desses autores ainda hoje merecem destaque.
Faço aqui uma evocação de Nicolau Luis da Silva, o qual, ao longo da segunda metade do seculo XVIII, fez representar sobretudo no Teatro do bairro Alto, centenas de traduções e adaptações, mas, ao que se saiba hoje, apenas uma peça original sua, “OS Marido Peraltas e as Mulheres Sagazes”. Inocêncio F. da Silva transcreve, no Dicionário Bibliográfico Português” , uma descrição contemporânea de Nicolau Luis:
“Morava no fim da rua da Rosa, toucado com uma cabeleira de grande rabicho, que ninguém viu na rua senão embuçado em capote de baetão de toda a roda, notável pelo desalinho e desmazelo do seu vestuário, trazendo consigo um grande cão de água, que o acompanhava sempre, e sorvendo repetidas pitadas de simone, com toda a placidez e majestade catedrática”…
E quem eram os atores que representavam estas peças? Alguns nomes ficaram para a História: António José de Penha, Francisca Eugénia, Vitorino José Leite, Joana Inácio da Piedade, e tantos mais.
Garrett ainda apanhou esta geração: mas a ele se deve, como veremos a seguir, a “modernização romântica” de atores, encenadores e salas, de peças . dramas e comédias.
«A Teoria do Mito na Filosofia Luso-Brasileira Contemporânea» de António Braz Teixeira (Zéfiro, 2014) é uma reflexão panorâmica que nos permite tomar contacto com a relação entre os mitos e a construção das identidades culturais como realidades complexas que põem em contacto as raízes e a evolução social, política e cultural.
PRIMADO DO SÍMBOLO Analisando o pensamento de José Marinho, o autor refere que «a imagem é a matriz de toda a simbólica», enquanto atributo do mito, acrescentando que «a funda relação entre mito e memória e a raiz mítica de todo o agir revelam que, no homem, a memória e a vontade têm natureza simbólica, significando, a primeira, que no passado ou como passado algo extremamente importante existe e a segunda que algo, igualmente de suma importância, deve ou pode ser alcançado ou realizado pelo agir humano, o que ajudará a compreender que o mundo mítico e o mundo simbólico, enquanto mundo das imagens captadas na sua mais pura, radical e primordial originalidades ou proximidade da origem, sempre acabe por persistir e perdurar, na mais visível e direta expressão simbólica, e nas suas manifestações mais patentes e explícitas ou nas suas significações implícitas, latentes ou veladas, a ponto de se poder dizer que “tudo o que se mostra, apercebe ou concebe, no espaço e no tempo, é símbolo”». Com efeito, memória e vontade relacionam-se pela afirmação das raízes que alimentam a ação – projetando-se em símbolos. Deste modo, e como salienta Almada Negreiros, o mito aparece como o momento correspondente às idades divina e heroica de Gianbattista Vico, enquanto o símbolo representa já a idade humana, como o número (motivo de especial atenção da parte de Almada), no momento em que a humanidade descobre a liberdade e a igualdade perante a lei. Mito e razão articulam-se, pois, enquanto o mito e o símbolo se constituem em vias de acesso e revelação da verdade humana «e daquele sagrado essencial que é a outra face do espírito indivisível que só o sensível torna patente». Isto, enquanto Afonso Botelho nos diz que o mito pode definir-se como «um drama divino que se repete ou representa segundo o tempo atualizável do teatro, segundo um tempo irreversível da História”, ou como «uma história de regresso».
MITO COMO MODELO EXEMPLAR Não podemos, porém, esquecer o que Dalila Pereira da Costa nos lembra, confirmando a lição de Mircea Eliade, para quem o mito é uma «tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar». Por outro lado, António Quadros fala-nos do mito como «uma história sobrenatural, exemplar e simbólica». Daí que importe deixar claro (como bem disse Afonso Botelho) que «o verdadeiro mito é sempre e só o mito da origem, ainda que múltiplas e diversas sejam as formas que tenha revestido e por mais oculto que se apresente na “misteriosa cosmogonia e na abscôndita teogonia”». Mito fundante seria o da referência paradisíaca da Ilha dos Amores, utopia criadora citada por Camões, como regresso aos tempos iniciais, além do mito firmante, que teria a ver com a sobrevivência do amor e da saudade, enquanto lembrança e desejo, como antídoto existencial do medo e da morte. Unamuno referia Portugal e os portugueses, por isso, como ponto de encontro entre o lirismo e a história trágico-marítima. O medo e a audácia vivem paredes meias. Eudoro de Sousa tem razão em falar do mito que «tem o seu lugar na profundidade que se antevê, para além do limiar do pensamento». «Vida é sonho», diria Pedro Calderón de la Barca… Vergílio Ferreira prefere, por isso, este mesmo sonho ao inconsciente de Hartmann. Para Eudoro, deste modo, o símbolo é a «coisa» elevada «ao plano da trans-objetividade, que é onde decorre o drama simbolizante, que transforma as coisas em símbolos». E Adolpho Crippa diz que o mundo da cultura é um espaço sagrado, razão pela qual tem de ser vinculado a um projeto criador, assente na universalidade da dignidade humana. Já para Vicente Ferreira da Silva, o mito envolveria a abertura de um regime de Fascinação, constituindo a tradução humana de um processo que a transcende. E o cristianismo (como reconheceu António Quadros) pôs em causa o mito como «biografia divina», já que Deus se nos revela diretamente através do mistério e da presença espiritual de Cristo… A consciência mítica torna-se reflexiva, passando do passado exemplar para a voluntariosa construção da História. E o certo é que José Marinho, no caso do «sebastianismo» português aparta-o do carácter de verdadeiro mito, preferindo dizer tratar-se de uma lenda profética. Por outro lado, o mito não é uma explicação, mas a explicitação de um mistério de origem, que deverá servir como auxiliar crítico da reflexão humana.
UMA LONGA HISTÓRIA António Braz Teixeira faz uma análise do pensamento de diversos autores luso-brasileiros – desde Teófilo Braga a Urbano Zilles, passando por Oliveira Martins, Aarão de Lacerda, Teixeira Rego, Agostinho da Silva, Almada Negreiros, José Marinho, Eudoro de Sousa, Vicente Ferreira da Silva, Milton Vargas, Renato Cirell Czerna, Adolpho Crippa, Gilberto Kujawski, Vilém Flusser Vergílio Ferreira, António Quadros, Afonso Botelho e Dalila Pereira da Costa. E é assim que presenciamos um caminho determinado e persistente, na sequência do historicismo de Vico e do idealismo de Schelling – visando um esforço de compreensão da especificidade do mito no pensamento de hoje. Para cada um dos autores, encontramos os seus contributos e a indicação do modo como consideraram os mitos como chaves interpretativas e como fatores de reflexão crítica – como, aliás, nos demonstra hoje Eduardo Lourenço ao partir da leitura crítica dos mitos para a concretização da vontade humana, considerando os mitos como preciosos reveladores das origens e da iniciação, para culminarmos na formação de uma vontade consciente, ilustrada e aberta, capaz de ser emancipadora dos constrangimentos e limites. Transformar o amador na coisa amada, aparecer a unidade perfeita onde a dualidade existia, entre transcendência e imanência. E o tema do messianismo do Bandarra e do sebastianismo merece especial atenção, não como empolamento do irracional, mas como motivo de melhor compreensão da mitologia e da filomitia, que conduzem a uma tensão entre as explicações primordiais e a procura de saídas para os dias presentes, para além do fatalismo e das explicações redutoras. De facto «nenhum povo considerado nos seus limites históricos, dispõe de poder nem de “vigência universal” para criar mitos já que, sendo o verdadeiro e autêntico mito sempre originário, não se refere nem pode referir-se singularmente a um homem ou a um povo…». Eis, pois, a força crítica dos mitos, não para os tornar horizontes impossíveis, mas sim desafios de emancipação.
A carta que me enviou foi uma das suas cartas mais belas que li, e tão sentida!, que bem me recordei de ter rezado a Jesus em Masai Mara pois de tudo tão vasto, só Ele podia estar ali a escutar-me melhor, numa espécie de Igreja de terra a céu aberto. Também Lhe falei quando não sabia o que fazer de tanto ser o meu crescer. Tudo era despropositado para pegar num prato: ou encolhia o braço ou partia-se a loiça e a adolescência era tão estranha que até os seios se anunciavam sem pejo, como se sempre tivessem ali, naquele nada, cativos, no lugar e expressão. E assim um dia , muito europa de longos cabelos em dorso de Zeus, fui ao mar, ao qual sempre pertenci, e quando bem no meio do oceano, por ali desci , tentei entender as múltiplas línguas do silêncio, e que de tão puras, no agora de então, me bastava olhá-las e entender que o amor se faz assim de singulares e parcas falas. Mas os tempos passam e o tal esquecermo-nos de nós, dói e dói enquanto o corpo se transforma e nos é tão alheio e desengraçado, quanto em nós tropeça, nosso, ainda assim, e ei-lo aqui. E o veio que o segura na queda?, será o mesmo que em nós segurará no tal depois?, e agora nos faz desconhecer se existirá quem nos entende neste embaraçante tudo ser no entretanto? Enfim, a esperança dança, dança, e nós, olhando-a não esquecemos do fiquem sabendo que existi, e muito, ao ponto de escrever que a minha melhor faceta foi ter vivido presa a uma solução que fui ditando ao poeta, e ele:
“É teu o branco cabelo que muito na tua consciência penetra e conclui, na tua indubitável sinceridade, que esta é ainda tua época de vida, untada pela existência de um soneto que foi razão suficiente e nada explica. Jesus! E eu poeta, neste conjunto que quero favorável de condições a ti, a ti, mal dominada pelos cânones, venho para que partilhes comigo, o canto solidário, apuradíssima epopeia, apta ao elemento humano, fulcro da acção, e dizer-te pela minha mão na tua, que fervilham hipóteses meu amor, em campos hoje muito controversos, mas escritos em documentos comprovativos da data do teu nascimento da qual me não aparto.
Deixa, aceita que em ti me alongue, na calma que persigo espessa desde o tronco da alma, desde a frescura das águas frias, e tu vencida, e tu vitória, e tu memória, pois te seguro a mim, e só assim me chega o estar sem medo.”
Sua amiga que deste modo lhe agradece a carta, num abraço de Natal
No capítulo IV do seu Le Petit Prince, escreve Antoine de Saint-Exupéry: Tenho fortes razões para crer que o planeta donde vinha o principezinho era o asteroide B612. Esse asteroide só foi enxergado uma vez ao telescópio, em 1909, por um astrónomo turco. Fizera então uma grande demonstração da sua descoberta a um congresso internacional de astronomia. Mas ninguém acreditou nele, por causa do fato que vestia... ...Felizmente para a reputação do asteroide B612, um ditador impôs ao seu povo, sob pena de morte, que se vestisse à europeia. O mesmo astrónomo voltou a fazer aquela demonstração em 1920, elegantemente vestido. E dessa vez todos foram da sua opinião. Já em crónica anterior conversámos sobre Ataturk (o tal ditador) e a modernização da Turquia que, entre outras medidas relativas a usos e costumes - a par da imposição do alfabeto e escrita latina em substituição do árabe ou da separação da religião e do estado - proibiu, aos homens, o uso do fez, desencorajou o porte do véu islâmico pelas mulheres e liberalizou o divórcio. Se é certo que o hábito não faz o monge, talvez possa ajudar a rezar e muitas vezes terá servido para apresentar o lobo em cordeiro. O texto de Saint-Exupéry mal disfarça alguma subtil ironia sobre a questão, sendo todavia mais generoso do que o nosso Eça de Queiroz, quiçá saudoso de certo orientalismo, na sua apreciação do trajar ocidentalizado dos japoneses sob a "restauração" Meiji. Contudo, Eça é objectivo e sagaz na percepção final de uma profunda transformação civilizacional: Nada representa ou deve representar melhor um estado do que o seu chefe ; e ainda há pouco eu considerava duas estampas que pintam com um relevo desolador (para o artista) a transformação do velho em novo Japão. Numa é o micado, ainda imperador omnipotente e hierático, meio homem, meio deus, alçado no seu trono, que mais parece altar, todo envolto num manto de seda cor de palha, com uma mitra de laca branca, onde faíscam pedrarias, imóvel e de olhos baixos à maneira de um ídolo, enquanto o fumo do incenso se eleva das caçoletas, e velhos dáimios e samurais magníficos, vestidos de brocados, de bronzes dourados, os dois sabres na cintura, as duas antenas de ouro tremendo no elmo, se prostram ante a majestade do filho do sol, tocam com a fronte as finas esteiras claras juncadas de flores de nassari. Na outra estampa de cores vivas, é ainda o mesmo micado, anos depois, mais pequeno e como diminuído, com uma farda vermelha de general inglês que lhe faz rugas no sovaco, um capacete branco de general prussiano que lhe tomba para os olhos, umas calças azuis de general francês que lhe fogem dos tornozelos, sentado de esguelha numa poltrona, dentro de uma estação de caminho de ferro, enquanto em redor se agitam funcionários constitucionais, de chapéus de bico, de chapéus altos, de chapéus-coco, apelintrados e contrafeitos, e ao longe uma locomotiva fumega e vai partir por sob um arco de lona que ostenta este lema estupendo: "Viva a Constituição!" Este é o Japão novo. É lúgubre.Mas é forte - porque, com os nossos horrendos chapéus de bico e as nossas pantalonas agaloadas, adoptou também os nossos couraçados, as espingardas "Lebel", as metralhadoras, toda a nossa organização e ciência militar. E como não lhes falta inteligência destra para aplicar os nossos princípios e usar o nosso material, e como os seus oficiais são educados nas escolas, nos arsenais, nos campos de manobras da Europa, em breve o Japão pitoresco se tornou no Japão formidável, e, apesar de as fardas malfeitas lhe darem um ar de Xéxé do Entrudo, ficou sendo a grande potência do Extremo Oriente. O espetáculo do mundo em que hoje vivemos mostra-nos dirigentes e diplomatas chineses em elegantíssimos trajes impecavelmente ocidentais, um Oriente em que Pequim concorre com Hollywood, e cujas multidões vão enchendo monumentais salas de concerto para religiosamente escutarem a "nossa" música clássica, um presidente russo, herdeiro dos sovietes, que em fatos europeus se move em cenários de grandiosidade czarista, cidadãos ocidentais abundantemente tatuados, cobertos de adornos baratos e primitivos, negligentemente vestidos e comportados - ou ainda outros, muito engomados e engravatados a ganharem fortunas trabalhando pouco e enganando muito... E logo deparamos com hordas miscigenadas de jihadistas cobertos de negro como antigos guerreiros berberes, equipas nacionais de futebol europeu, que fazem vibrar de patriotismo os povos do velho continente, com jogadores oriundos de todos os outros continentes, enquanto hinduísmo e budismo vão fascinando gente ocidental que até - quando pode - se vai casar a Pukhet ou a Bali... No seu recente La Chute de l´Empire Romain, Max Gallo, académico francês, interroga-nos, pelo espelho da queda de Roma, sobre a morte da nossa civilização... Mas será que estas morrem? Ou antes, como tudo, delas também nada se perde, e depois nada verdadeiramente se cria, mas tudo se transforma? Contra a noção clássica da desfeita catastrófica do Império Romano, historiadores, hoje, já falam de uma Antiguidade Tardia como prólogo da nossa Idade Média. A narrativa de Max Gallo segue o destino trágico - no sentido grego de luta contra o inexorável destino - de Galla Placídia, filha de Teodósio I, irmã de Valério e Honório, que entre si dividiram o império em metades (oriental e ocidental), mãe de Valentiniano III, o último imperador do ocidente, filho do general Constâncio, segundo esposo dela. Antes já morrera Teodósio, que seria o III do nome, e seu pai, o rei Ataulfo, visigodo familiar de Alarico, o tal que vencera Roma. Galla acreditara que seria possível salvar o Império pela incorporação dos bárbaros que o tinham ameaçado... No capítulo 17, Gallo escreve: Todas as manhãs, Galla Placídia, queda-se muito tempo imóvel, de braços cruzados, diante da grande cruz de pau preto, no centro da qual os mosaístas de Ravena num mosaico compuseram o seu retrato. Está rodeada de sua filha Honória e de seu filho Valentiniano. Proíbe a escravos e criadas que entrem no quarto e perturbem pela sua presença esse momento de recolhimento, oração e serenidade. O general Constâncio não está representado no mosaico. As duas crianças, de que é pai, não lhe pertencem. Elas são de linhagem imperial. Ele não passa de um general ao qual o imperador Honório consentiu em conceder o título de patrício, que o associa à família imperial. De olhos fixos naquele mosaico, Galla Placídia ganha forças para impor a sua vontade a Constâncio e ao imperador Honório. Todos os dias enfrenta o seu esposo e o seu irmão, lembra-lhes que devem ter em conta os seus conselhos. Sente-se a mais combatente. Quem viveu seis anos entre os Bárbaros, até se tornar sua rainha? Sabe bem que Constâncio e Honório sentem medo e desprezo por Godos e Visigodos. Inquietam-se com esse reino visigodo da Aquitânia, constituído entre Tolosa e Bordéus. E todavia foram esses Godos que expulsaram os Vândalos da Espanha e os perseguem em África. São esses Godos que combatem os Francos, com os Burgúndios a traçarem feudos no norte e no leste da Gália. Ora o que é o Império do Ocidente se não a Gália, a Espanha, a África, a Itália? E o que é hoje, ou poderá ser, a civilização ocidental sem o resto do mundo? E que seremos todos sem cidadania livre, igual e fraterna? O cavalo de Troia poderá ficar para sempre fora de portas? Não sou Cassandra, não posso nem quero prever qualquer destruição por disfarçado maligno. Mas creio que, em lugar e vez da miopia de interesses financeiros, classistas e políticos, que nos desgoverna, precisamos de Eneias que inventem na globalização uma nova Roma para todos.