A FORÇA DO ATO CRIADOR
O corpo e o mundo visível do pintor.
‘A natureza está no interior’, Cézanne.
Em ‘O olho e o espírito’, de Merleau-Ponty (2004) afirma-se que o pintor oferece o seu corpo para pintar. O corpo do pintor é emprestado ao mundo para assim converter o mundo em pintura. E para compreender estas transformações é necessário encontrar o corpo operante e actual do pintor, que é uma intercepção de visão e movimento.
Ora, o corpo faz parte do mundo visível e só vê aquilo para que olha – e por isso o mundo visível e todos os movimentos físicos do sujeito criador que aí acontecem, são partes totais do mesmo Ser. A visão do sujeito é concebida como uma operação do pensamento que constitui, perante um espírito, uma representação do mundo (ideal ou inerente). O corpo do pintor está imerso no visível, graças ao seu corpo, também ele visível, e aquele que vê não se apropria daquilo que vê, apenas se aproxima através de um determinado olhar. O movimento do sujeito no mundo é a sequência natural e maturada de uma visão.
O enigma do pintor consiste em que o corpo do sujeito é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele vê-se vendo, toca-se tocando, é visível e sensível para si mesmo. Um ser que se vai constituindo por inerência em relação àquilo que vê, àquilo que toca e ao que é sentido. Visível e móvel o corpo do pintor pertence às coisas e está preso à textura do mundo. As coisas do mundo visível são um anexo ou prolongamento do corpo. A visão do sujeito criador faz-se do meio das coisas e assiste-se a uma indivisão do que se sente e do que faz sentir.
Logo que o sistema de trocas entre o visível e o invisível é estabelecido, todos os problemas da pintura aí se encontram. Uma vez que o corpo e as coisas são feitas da mesma matéria, é necessário que a visibilidade manifesta das coisas se desdobre no corpo, numa visibilidade secreta. Qualidade, luz, cor e profundidade que estão perante o corpo, só estão na obra porque despertam um eco nesse mesmo corpo. Surge então algo visível, essência ou ícone do real visível. A obra é o interior do exterior e o exterior do interior. É uma visibilidade imanente do imaginário. O imaginário está ao mesmo tempo muito próximo e muito distante do real – próximo porque pode manifestar através do corpo, o diagrama, o âmago e a analogia desse real.
O olho vê o mundo e aquilo que falta ao mundo para ser obra e o que falta à obra para estar completa. Existe na obra criada uma enorme proximidade entre o olho, o corpo e o espírito. E por isso, a pintura celebra, desde sempre o enigma da visibilidade. O mundo da pintura é um mundo visível, completo mas parcial. A pintura confere existência visível ao que a visão crê invisível. O pintor enquanto pinta confessa que a sua visão é espelho ou concentração do universo – e a obra é assim analogia, génese e metamorfose do ser na sua visão. Nem todos os meios com que trabalha são propriamente reais.
E sendo assim, a interrogação da pintura refere-se à génese secreta das coisas no corpo. O papel do pintor consiste em projectar o que vê e em ser trespassado pelo universo. E pinta para se emergir. Na pintura há uma verdadeira inspiração e expiração do ser – é acção tão pouco discernível onde não se distingue quem pinta e o que é pintado.
Ana Ruepp