A FORÇA DO ATO CRIADOR
‘As contradições do realismo das ideias são inevitáveis e insolúveis.’, Jean-François Lyotard, ‘A Fenomenologia’, 1954
No ensaio ‘Against Interpretation’ (1964), Susan Sontag (1933-2004) declara que a consciência do mundo ocidental em relação à arte ainda se situa na teoria dos filósofos Gregos de que a arte é uma simples imitação ou representação de algo. Esta visão gera, no conceito de obra de arte, a separação entre ‘forma’ e ‘conteúdo’ – conteúdo aparece como determinante e a forma como acessório. Sontag assegura que nenhum de nós consegue recuperar a inocência que existia antes de toda a teoria da arte, e que existia no momento em que a arte não precisava de se justificar a ela própria. Estamos todos presos a um tempo em que é necessário fundamentar a arte. E a ideia de que a obra de arte é principalmente o seu conteúdo ainda prevalece.
Segundo Sontag, o enfâse demasiado dado ao conteúdo relaciona-se directamente com o projecto de interpretação da obra de arte. Por interpretação, Sontag entende um acto da mente, consciente que ilustra um determinado código e determinadas regras, como se de uma tradução se tratasse. A necessidade de interpretar uma obra de arte advém da pressuposição antiga de que é necessário resolver a discrepância entre a obra e a exigência do fruidor – o estilo anterior de interpretação era persistente e respeitador de maneira a construir um outro significado sobre a obra literal.
‘The kitsch-man wants to fill his spare time with maximum excitement (derived from, among other things, ‘high culture’) in exchange for minimum effort.’, Matei Calinescu, ‘Five Faces of Modernity’, 1987
Porém, nos nossos dias, a necessidade de interpretar advém de uma clara agressividade em desprezar qualquer interesse pelas aparências, de modo a cultivar um falso interesse pela designada ‘high-culture’. O estilo de interpretação que prevalece escava, de maneira a tentar encontrar a verdade real que existe por detrás de uma obra – e a ideia de que para entender é preciso interpretar, pode destruir qualquer tipo de sensibilidade. E desta forma, existe um perigo iminente em criar um mundo sombra feito de interpretações e significados. A interpretação da obra de arte é uma maneira de dispor o conteúdo ao nível do intérprete e pode não acrescentar nada – por ser uma adaptação, uma redução ao universo limitado do intérprete que só analisa e retira da obra o que lhe convém. A interpretação pode assim camuflar e mascarar a obra – e torna a arte gerenciável, conformável e substituível.
Ora, a validade das interpretações funda-se na organização psíquica do fruidor – como adequar então o saber do intérprete à verdade da obra?
‘Ideally, it is possible to elude the interpreters in another way, by making works of art whose surface is so unified and clean, whose momentum is so rapid, whose address is so direct that the work can be… just what it is. Is this possible now?’, Susan Sontag, ‘Against Interpretation, 1964.
De Kooning afirmou que o conteúdo da obra é um pequeno vislumbre de algo, um encontro com um instante. Segundo Lyotard, a coisa (neste caso a obra de arte) é um fenómeno que une simultaneamente o sujeito que cria ao sujeito que frui. E o que importa na fruição da obra é circunscrever-se a si própria, sem pressuposto, descrevê-la apenas tal como se nos apresenta. Há sempre um pré-reflexivo, um irreflectido perante um determinado fenómeno sobre que se apoia a reflexão. O objecto em si deve assim, ser percepcionado irreflectidamente – a sensação sobre a matéria e os seus princípios deve sobrepor-se a toda e qualquer interpretação. Porque na verdade, segundo Sontag, a obra de arte não é concebida de modo a ser percepcionada em diversos níveis. A meditação sobre a coisa pode ultrapassar as incertezas da lógica e colocar essa mesma coisa num plano meramente físico. E só deste modo se revela o fundamental, a essência e a verdadeira intencionalidade da obra. Nesta medida, a transparência é o mais elevado e liberal valor na arte, porque significa experienciar a luminosidade da obra em si, deixando as coisas serem o que são.
Ana Ruepp