OLHAR E VER
Burt Lancaster em «Il Gattopardo».
14. DESENCANTOS
I. Li algures que Avigdor Lieberman, ministro israelita dos negócios estrangeiros, enviara à senhora sua homóloga no governo de Estocolmo, Margot Alström, uma mensagem em que dizia que a Suécia deve compreender que as relações no Médio Oriente são muito mais complicadas do que o modo de montagem de um móvel Ikea... Ao que a mesma senhora retorquira que teria muito gosto em lhe mandar um móvel Ikea em kit, para que compreenda como a respectiva montagem exige um parceiro, cooperação e um bom manual... A insistência do governo de Israel na expansão de colonatos a sul e leste de Jerusalém, e a sua intenção de declarar o seu estado como pátria da nação judaica, surgindo como sinais de recusa de um estado e de uma pátria palestina, têm vindo a minar os apoios de que beneficia nos EUA e na UE: além do reconhecimento, pela Suécia, do Estado Palestiniano - que motivara a missiva acima referida - já catorze países europeus haviam votado a favor do estatuto da OLP como observador na ONU, e mais uns poucos (vg. França, Irlanda, Reino Unido) viram assembleias legislativas recomendarem aos seus governos o reconhecimento puro e simples do Estado Palestiniano. E é facto também que, além do ressurgir de um sentimento de judeofobia (conhecido por antissemitismo), muitos judeus da diáspora europeia, por receio ou por desacordo e vergonha, se vão afastando das sinagogas e outras reuniões, das práticas e das festas tradicionais, de tudo aquilo que possa identificá-los como judeus. Não por deserção da sua cultura, das suas famílias e linhagens, nem, entre os praticantes, da sua religião. Mas por não quererem ser tomados por apoiantes de governos e políticas que, recentemente, cada vez mais se orientam por objectivos nacionalistas e hegemónicos da mais radical ideologia sionista. Têm razões de ter medo de ataques e sevícias, porque mesmo nos estados de direito em que vivem, e de que são inteiramente cidadãos, se repetem casos lamentáveis de ataques a pessoas e assembleias, de profanação de templos e cemitérios. Mas, sobretudo, sofrem, além do medo, a humilhação de serem confundidos com os arautos de ideias, sentimentos e propósitos de que não partilham.
II. Outras notícias nos contam que os movimentos terroristas desencadeados em nome do islão vêm provocando também alguns efeitos inesperados no próprio mundo muçulmano. Assim, escreve Umar Yussef Suleiman em raseef22.com: Nestes últimos três anos, houve tantas violências confessionais na Síria, no Iraque e no Egipto, como nos cem anos anteriores em todo o Médio Oriente. Isso provoca desencanto entre os jovens árabes, não só face aos movimentos islamistas, mas a toda a sua herança religiosa. Assim, em reacção ao radicalismo religioso, uma onda de ateísmo se propaga actualmente na região. A afirmação segundo a qual "o Islão é a solução" parece cada vez mais claramente uma ilusão... ...A eferverescência actual do mundo árabe é comparável à da Revolução Francesa. Esta começara pela rejeição dostatus quo. À partida, era dirigida contra Maria Antonieta e, no fim, levou à queda das instituições religiosas e à proclamação da república. Aquilo a que assistimos no mundo muçulmano é um movimento de fundo para mudar o quadro intelectual, e não somente o presidente. E para isso serão necessários anos de luta.
III. Otman Abu al-Qayan, guerrilheiro do Daech (Estado Islâmico), morreu em combate, aos 26 anos. Como outros que, até mais jovens, muitos vindos de muito longe, mais desencantados do que islâmicos, todos os dias vão tombando, alguns sem que, talvez, alguém pense que jaz morto e arrefece o menino de sua mãe... Otman era árabe e muçulmano, mas cidadão de Israel, onde se formara em medicina e trabalhava, com consideração e estima de todos, como interno, num hospital. Não são precisas mais palavras do que as que confidenciou um colega seu, clínico no mesmo hospital: Fomos fulminados quando soubemos a notícia da sua morte. Disseram-nos que tinha partido para a Síria, e entrado no Daech depois. Não queríamos acreditar, era inverosímil. Tanto mais que ele ainda não completara 26 anos e o seu estágio de interno corria bem. Parecia assegurado o seu futuro. O que é que poderá levar alguém como ele a abandonar a família, o país, o trabalho e a profissão, para integrar uma organização como o Daech, que é tudo o que há de mais distante dos valores do verdadeiro islão? E como pôde ele fazer aquilo sabendo que era previsível que isso teria consequências para os seus colegas árabes que trabalham em hospitais israelitas?
IV. Muita gente, em França e não só, se emocionou recentemente com dois casos de adesão ao Daech: o de Maxime Hauchard, normando e francês dos quatro costados, de 23 anos de idade; e o de Mickaël Dos Santos, francês filho de portugueses. O primeiro, diz-se, tem tido um percurso sanguinário ao serviço da jihad, a que se converteu, sem se ter tornado muçulmano; o segundo, também acusado de degolações, e sensivelmente da mesma idade, era um pacífico e simpático rapaz, católico praticante, que se converteu ao islão, ao que parece por influência de amigos muçulmanos, no meio dos quais acabou por ser recrutado para o EI. Conta a sua ex-namorada francesa que foi o único namorado que apresentou aos pais, em 2008, tinha ela 18 e ele 16 anos: Trazia sempre uma cruz ao pescoço. Era tímido, meigo, um tanto influenciável. Quando os amigos o desafiavam para uma parvoíce, ele ia com eles... E lembrará ainda que aquele meiguinho, quando, em 2009, começou a converter-se ao islão, já lhe ia dizendo que ou te convertes também, usas véu, deixas a escola e de andar com rapazes, ou acabamos tudo...A conversão levou três meses, e romperam o namoro. O jornal Le Monde, de onde respiguei estas informações, publica dois artigos de opinião sobre esta matéria. Ambos os autores são académicos e investigadores com experiência em consultadoria internacional. Um, Jean-Luc Marret, sem afastar factores de ordem social (desemprego, convívio ou inserção em comunidades ou grupos de desadaptados) nem uma certa militância islâmica, reconhece ainda a pertinência de factores de ordem psicológica:" falta de autoestima, incapacidade de gerir a frustração, recurso à violência desinibida, ou, ainda, a expressão fantasma da solidariedade para com os muçulmanos percebidos como oprimidos". O jihadismo como transição coxa para a idade adulta, passa pela procura de referências em linha, de grupos ou redes radicais, e pelo desconhecimento ou recusa de normas colectivas...E, depois de se interrogar sobre o recurso a medidas tradicionais de reinserção (penas de prisão exemplares, trabalho social, reeducação, terapia familiar e pessoal), levanta a questão final de saber se o menosprezo das ideias de adesão à República e à Nação,a supressão de ritos republicanos de integração (em particular o serviço militar obrigatório), não terão contribuído para produzir jihadistas. E finalmente, resta ainda saber se os jihadistas franceses não serão também um dos mais terríveis resultados do multiculturalismo, que enfatiza mais a excepção do que a parecença. Já o outro articulista, Samuel Laurent, insiste na presença crescente do islão radical, designadamente do salafismo, na Europa, particularmente em França, onde se organizam e expandem redes guiadas e doutrinadas por ideólogos como o britânico Anjem Choudary: qual avassaladora maré, essas redes vão recrutando essas gentes em nome de um islão que elas não podem compreender, porque está revelado por um livro em árabe, que não entendem. Ou seja: jovens, sobretudo, são fracturados da nossa sociedade, pela força de uma ideologia activa que procura expandir um califado de islão radical. Mas no meu espírito permanece a pergunta: não será por desencanto connosco que eles se sentem tentados por uma solução tão radical das suas vidas, ao ponto de entrarem numa vertigem de ódio e totalitarismo? Onde estão as nossas referências, isto é, esses marcos da nossa cultura, isso a que chamávamos valores?
V. Seja-me permitido digredir um pouco : subjacentes a estas alienações, não estará outra, sua causa mais profunda? Não será a nossa incapacidade de viver a tradição, isto é, de receber, amar e transmitir heranças de cultura e valores, a primeira alienação? Quantos de nós jamais pensaram, disseram ou ouviram que é preciso amar a tradição, que não basta recebê-la e transmiti-la tal qual? No tempo e no modo, ou nos modos dos tempos, devemos aprender que o coração vital da tradição é o amor. Porque só o amor converte, transforma, ou seja, transpõe um valor, que é essência, de um pensarsentir, que é existência, para outro pensarsentir, outra cultura da sua própria vida... Tudo é movimento, e o ser sobrevive na transformação. Qualquer de nós, nasce cresce e envelhece, não fica sempre na forma que aconchegada vive no ventre de sua mãe. A simples equação de qualquer situação ou problema, a avaliação da pertinência ou impertinência de normas e medidas, sobretudo de modelos de comportamento, é necessariamente condicionada pela evolução da circunstância, em que vão mudando os instrumentos e instituições da economia e da política, os meios de comunicação e organização social, os hábitos de consumo e alimentação, a medicina do corpo... Amar a tradição não é ser saudosista de um passado prestigiado pela nossa imaginação, quiçá mais livre no conforto artificial da vida moderna. Tampouco é ser conservador, no sentido de pretender que a família, o estado, a igreja, por exemplo, são instituições imutáveis na sua forma, definitivamente encerradas nos modelos em que as conhecemos e julgamos eternos, ignorando que, ao longo da sua própria história, foram sofrendo crises que as modificaram. Não sou relativista, nem partilho o cinismo do "Leopardo" que diz ser preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma. Acredito, sim, que o amor de Deus, como Jesus ensina, é inseparável do amor dos outros, e que este único princípio deve guiar a nossa consideração do que está mal e deve ser corrigido, ou bem e deve ser melhorado, da abertura possível e necessária a que nos sintamos todos mais próximos e menos excepcionais, mais acolhedores e menos exclusivos, mais rigorosos porque menos intolerantes. Esta última consideração, parecendo contraditória, apenas chama a atenção para o facto de se sentirem como justas as normas, e como de equidade os acordos, que se entendem ou sejam racionalmente aceitáveis, pelo que devemos exigir-nos mais caridade na explicação e menos intransigente soberba na propensão, tantas vezes pouco razoável, para a imposição. O "segredo" da simpatia geralmente despertada pelo papa Francisco reside na sua compreensão da fraqueza humana e da misericórdia de Deus. O apelo à exigência da conversão não se faz pela afirmação insistente de regras inamovíveis, nem com ameaças e castigos. Faz-se pela descoberta do que é belo e bom, do amor esquecido. O desencanto é, afinal, o cansaço de uma espera iludida. Numa sociedade que permitiu à ganância e ao desejo de gozo irreflectido que acenassem ilusões sem alma, desesperaram-se muitos, e a estes nem sempre têm acudido valores de esperança que, tantas vezes, ficaram ocultos ou se fizeram detestar pelo monolitismo com que os seus supostos "proprietários" os apresentaram. Tanto se aliena a tradição quando de seus valores nos esquecemos, como quando os não deixamos crescer pela idade dos tempos e mesquinhamente os "guardamos" em armários de bafio. Haja mais ar e menos desencantos.
Camilo Martins de Oliveira