A FORÇA DO ATO CRIADOR
Kandinsky e a comunicação intersubjectiva.
‘Os meus livros ‘Do Espiritual na Arte’ e ‘O Cavaleiro Azul’ tinham por objectivo principal despertar as faculdades de viver o espiritual nas coisas materiais e abstractas que nos permitem viver experiências infinitas e necessárias para o futuro.’, Wassily Kandinsky
A partir de 1909, Wassily Kandinsky (1866-1944) começou a dividir os seus quadros em três grupos: ‘Impressões’, com referência ainda a um modelo naturalista; ‘Improvisações’, que reflectiam emoções espontâneas; e ‘Composições’, que diziam respeito a um grau mais elevado e mais complexo, alcançado após longos trabalhos preparatórios.
Kandinsky acredita que a arte nasce de uma necessidade interior, do conteúdo – só é autêntica se possuir uma ressonância imensa e apenas subsiste se tiver uma alma (conteúdo) no seu corpo (forma). Para Kandinsky, é importante saber se a forma surgiu de uma necessidade maior e mais profunda, porque cada obra encerra toda uma vida. Em ‘Do Espiritual na Arte’, Kandinsky explica que toda a forma tem um conteúdo intrínseco próprio – não um conteúdo objectivo ou de conhecimento (como aquele que permite conhecer e representar o espaço através de formas geométricas), mas sim um conteúdo-força, uma capacidade de agir como estímulo psicológico. A leitura da tese de Wilhelm Worringer, ‘Abstraktion und Einfühlung’ (1907) veio fortalecer ainda mais esta ideia, de que a arte não necessita de um motivo figurativo – mas sim de uma orientação fortemente espiritualista e assim poder contestar o fundamento racionalista e implicitamente realista, por exemplo do cubismo (porque, para Kandinsky o cubismo era um processo que ainda queria conservar a materialidade aparente das coisas). Kandinsky defende que a esfera da arte se distingue nitidamente da esfera da natureza e que a determinação das formas artísticas depende exclusivamente de impulsos interiores. Kandinsky interessava-se por teorias ocultas, leu continuamente obras de Rudolf Steiner e Helena Petrovna Blavatsky. Mas interessou-se principalmente pela música e pela arte teatral contemporâneas.
Giulio Carlo Argan em ‘Arte Moderna’ (2002), argumenta que, para Kandinsky, a categoria do significante (forma material que origina o signo) é incomensuravelmente mais ampla e mais aderente à realidade da existência do que a categoria do racional. Kandinsky deseja, por isso, uma comunicação intersubjectiva, de homem para homem, sem intermédio do objecto ou da natureza. E Argan continua ao confirmar que uma forma é significante por assumir um significado, todavia não se torna significante a não ser na consciência de quem a percebe. O espiritual é o não-racional, é a totalidade da existência, na qual a realidade psíquica não se diferencia da realidade física. O signo é algo que nasce de um impulso profundo e portanto é inseparável do gesto. Segundo Argan, Kandinsky deseja sobretudo remeter-se a um estágio inicial de pura intencionalidade. E assim, produzir impressões que interessam ao sujeito, não pelo modo de representarem objectos, mas pela existência maior de se constituírem através de extâses e movimentos, tensões e distensões. E é justamente a condição existencial do homem primitivo, a que Worringer se refere, que mais importa para Kandinsky – uma existência que recebe imagens incoerentes da realidade, a partir das quais deduz imagens conceptuais que orientam um mundo de fenómenos que parece agitado, caótico e incognoscível. Estabelece-se assim uma continuidade entre o não objectivado e o não subjectivado. Kandinsky vai além do episódio psíquico, toca na condição primária do ser. A expressão gráfica da condição primária e essencial da existência é uma maneira de tomar consciência dela e assim tomar consciência de toda uma realidade que escapa à consciência (ordem racional dos fenómenos). A arte, então para Kandinsky, é a consciência de algo que de outra forma não se teria consciência – e permite ampliar a experiência que o homem tem da realidade e abrir novas possibilidades. Uma obra de arte não é uma transmissão de formas mas sim de forças: é a existência do artista que se liga directamente à dos outros (modo estético=modo de existir).
Segundo Kandinsly, na mente da sua época pesava o materialismo. Kandinsky, juntamente com outros pensadores e filósofos do seu tempo, partilhava o sentimento da mudança dos tempos, bem como a convicção de que a humanidade necessitava de uma introspecção espiritual. Após a leitura do clássico teosófico ‘As Forma do Pensamento’ de Annie Besant e C.W. Leadbeater (1908), Kandinsky foi incitado a apresentar formas luminosas cercadas por uma aura – para ele, tratava-se da representação visual do espiritual em cores e formas abstractas. Kandinsky tentou assim encontrar os fundamentos da relação, interior e secreta, entre o estímulo da cor e a reacção psicológico-espiritual sobre o espectador. Para Kandinsky a representação de conflitos, de ordem pictórica é o tema central a que se dedica. O objectivo da criação não é assim a procura pela harmonia das cores, mas sim a representação do antagonismo provocante entre os contrastes – como acontece, por exemplo, no Quadro com Arco Preto. Acreditava na possibilidade das cores conseguirem projectar todas as áreas de experiência e de conhecimento do homem.
‘A vida espiritual, à qual a arte também pertence, traduz-se por um movimento complexo mas límpido, para cima e para a frente, e que se pode reduzir a um simples elemento. É o próprio movimento do conhecimento. Qualquer forma que adquira, conserva sempre o mesmo sentido profundo e a mesma finalidade.’, Kandinsky
Kandinsky diz que para o criador, que quer exprimir o seu universo interior, a imitação das coisas da natureza não deve ser um fim em si mesma. Logo que transpareça, a experiência íntima do artista e o poder emotivo que a torna comunicável com os outros, a arte inicia o caminho que lhe permite reencontrar o que havia perdido – o objecto da sua busca já não é o objecto material concreto, mas o seu próprio conteúdo, a sua essência e a sua alma.
Ana Ruepp